“O que se percebe é que os processos de privatização seguem a todo vapor em nosso País“
PAULO KLIASS*
A política de austericídio que vem sendo praticada há algumas décadas em nosso país pelos sucessivos governos que administraram o Palácio do Planalto tem provocado um conjunto nefasto de consequências. Isso ocorre em termos do aprofundamento das condições de vida da maioria da população, quer seja em termos econômicos ou em termos sociais. A combinação perversa de política monetária arrochada com austeridade fiscal rigorosa provoca a redução da capacidade de realização de despesas primárias por parte do Estado e o aumento extraordinário dos gastos financeiros com o pagamento de juros da dívida pública.
Do ponto de vista da evolução histórica, um dos elementos mais dramáticos de tal conservadorismo na condução da política econômica tem sido a política privatizante levada a cabo desde então. Na verdade, os processos de privatização caracterizam-se por um conjunto amplo de modalidades de aumento da participação do capital privado na esfera que pertencia ao Estado, por exemplo na oferta de bens e serviços públicos de forma geral. Assim, caracteriza-se como uma tentativa de narrativa enganosa o discurso de que “concessão não é privatização”, por exemplo. Trata-se de uma desculpa esfarrapada de quem se vê no incômodo de defender o indefensável, ou seja, o fato de que durante os sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) houve um aumento das estatísticas expressando a elevação da participação do capital privado em um sem-número de atividades tradicionalmente sob a responsabilidade do setor público.
O LONGO PROCESSO DE PRIVATIZAÇÃO
Os processos de privatização podem ir desde as formas mais características de venda completa de um patrimônio público ao capital privado até modelos mais sofisticados de transferência ao setor privado de espaços para acumulação que deveriam ser atribuição do Estado brasileiro. Considerando estes casos mais extremos para ficar mais claro, temos a venda de 100% do ativo de empresas estatais para grupos privados, como foram os simbólicos leilões de venda da Embraer ou da Companhia Vale do Rio Doce, por exemplo. A primeira foi vendida na Bolsa de Valores de São Paulo em 1994, ao passo que a Vale foi vendida 3 anos depois na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Em ambos os casos deu-se a utilização das chamadas “moedas podres” como meios de pagamento. Os títulos eram comprados com deságios enormes no mercado financeiro secundário e os compradores despendiam, na verdade, valores muito mais baixos do que os expressos nominalmente nos papéis aceitos pelo governo nos leilões.
No entanto, o conceito de privatização é mais amplo do que o verificado nestes casos mais simbólicos de alienação integral do patrimônio público ao capital privado. Há casos de venda da participação acionária minoritária do governo em suas empresas ou ainda os processos de ampliação do volume de venda de ações dirigidas exclusivamente aos grupos privados. Com isso, o setor público ainda mantém pelo menos 50% do capital votante nas empresas, mas é inequívoca a vigência de um processo de privatização. Basta ver as limitações a que deve se submeter a Petrobrás em suas ações empresariais depois que foram realizadas operações de lançamento de suas ações na Bolsa de Nova Iorque dirigidas aos investidores estrangeiros. Esse mecanismo foi utilizado tanto por Fernando Henrique Cardoso (FHC) em 1999 quanto por Lula em 2010.
CONCESSÃO E PPP SÃO MODALIDADES DE PRIVATIZAÇÃO
Mas a privatização inclui também outros processos menos evidentes de transferência de patrimônio público ao capital privado ou então de aumento da participação relativa do mesmo em setores marcados pela presença do Estado. Trata-se dos mecanismos da concessão e da Parceria Público Privada (PPP). Em ambos os casos o que se observa é o ingresso do capital em atividades até então não muito procuradas como ramo de acumulação capitalista. Aqui podemos mencionar as ofertas na área da educação e da saúde, mas que pouco a pouco foram sendo ampliadas para a assistência social, para previdência e para a segurança pública. O modelo do pacto federativo envolve a presença crescente do capital em setores oferecidos pelas administrações de estados e municípios.
Outros ramos em que se tem observado a intensificação dos processos privatizantes são os que compõem a infraestrutura. Neste caso, a institucionalidade da máquina do governo federal se sofisticou, por meio do “Programa de Parcerias de Investimentos” (PPI), criado em 2016 por meio da Lei 13.334, que foi lançado durante o golpeachment contra Dilma Roussef. De acordo com a página do programa na internet, ele tem por “finalidade ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria e de outras medidas de desestatização”.
Segundo dados oficiais, já foram concluídos 283 projetos no âmbito do PPI, com grande concentração nas áreas de transportes, energia e infraestrutura urbana. Além disso, ainda estão em andamento outros 223 projetos, com maior concentração nas áreas de transportes, infraestrutura urbana e meio ambiente. Assim, até o momento já foram cadastrados 506 projetos no âmbito do programa de PPPs do governo federal, incluindo uma gama variada de áreas, ramos e setores em que o capital privado é chamado a ocupar espaços para ampliar seu processo de acumulação.
Programa de Parceria de Investimentos – Total de projetos por setor

Fonte: PR/PPI
Observa-se uma concentração em 3 áreas que representam quase 3/4 do total: i) transportes com 46%; ii) infraestrutura urbana com 15%; e iii) energia com 13%. Além disso, chama a atenção no interior do aglomerado “Outros” a existência de projetos envolvendo a área prisional e o ramo de hidrovias. No primeiro caso consta a privatização de presídios, em especial por meio de PPPs, para o município gaúcho de Erechim e para o município catarinense de Blumenau. Por outro lado, o Conselho do PPI também aprovou a inclusão de importantes sistemas hidroviários da Amazônia para serem objeto de privatização. Trata-se dos projetos envolvendo os rios Madeira, Tocantins e Tapajós.
PPI – Total de projetos concluídos e em andamento
| Transportes | 233 | 46% |
| Infr. Urbana | 78 | 15% |
| Energia | 65 | 13% |
| Meio Ambiente | 39 | 8% |
| Saneamento | 26 | 5% |
| Outros | 65 | 13% |
| TOTAL | 506 | 100% |
Fonte: PR/PPI
Além dos projetos acima mencionados, está em curso também a tentativa de privatização dos sistemas de trens urbanos e metrôs nas regiões metropolitanas de Porto Alegre e Recife, ambos pertencentes ao governo federal por meio da CBTU e da Trensurb. Apesar das promessas de Lula na campanha de 2022 de que não iria dar seguimento às tentativas privatizantes de Temer e Bolsonaro, os processos de transferência das referidas empresas estatais ao capital privado seguem seu curso. Postura semelhante mantém o governo federal em relação à privatização das empresas estaduais de saneamento, em especial a Agepisa do Piauí, a Compesa de Pernambuco e a Sabesp de São Paulo. Em todos os casos acima o BNDES participou de forma ativa do processo de transferência das empresas estatais ao setor privado.
Enfim, o que se percebe é que os processos de privatização seguem a todo vapor em nosso País, mesmo neste terceiro mandato de Lula. Se os casos atuais não envolvem a simbologia catastrófica de alienação absoluta e definitiva do patrimônio público ao capital privado em leilões na sede do mercado de ações, o fato é que estamos diante de um dos maiores processos de transferência de ativos públicos aos empreendedores do setor privado.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal











