Engenheiro afirma que a nova política de dividendos desidrata investimentos, acelera falhas operacionais e empurra para a população o custo da rentabilidade dos acionistas.
Durante décadas, a Sabesp foi considerada um investimento estável, capaz de lucrar mesmo em crise hídrica e ainda manter alto nível de reinvestimento. Agora, com a privatização pelo governo Tarcísio de Freitas, a lógica se altera: dividendos caminham para 100% do lucro distribuído a acionistas e a manutenção preventiva perde espaço.
O resultado já aparece na operação. “O objetivo agora é maximizar lucro no menor prazo possível”, diz Amauri Pollachi, especialista em recursos hídricos e conselheiro do ONDAS (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento). Para ele, o padrão observado é claro. “Estamos institucionalizando a falta de água, e isso ainda vai piorar.”
Um ano após a privatização, começam a se tornar visíveis os efeitos do novo modelo: mais falhas no esgoto, episódios recorrentes de despejo não tratado em rios e reservatórios, redução de pressão na rede e atendimento mais lento em reparos. Amauri Pollachi, engenheiro com 30 anos de Sabesp, aponta que a mudança não é pontual, mas estrutural. “A manutenção preventiva está sendo substituída pela corretiva”, afirma. Segundo ele, essa lógica traz risco direto ao abastecimento. “Quando só se conserta depois que estoura, o colapso vira questão de tempo.”
JOSI SOUSA
Leia a entrevista:
HP: O que mudou para os acionistas com a privatização da Sabesp?
Amauri Pollachi: A Sabesp sempre foi um porto-seguro para investidores. Mesmo na crise hídrica de 2014-2015, quando os reservatórios estavam no limite, a empresa teve lucro — menor, sim, mas ainda na casa dos R$ 800 milhões. Em valores atualizados entre 2012 e 2023, ela lucrou perto de R$ 3 bilhões ao ano, em média. Seus dividendos eram elevados, cerca de R$ 1,8 bilhão anuais, e, ao mesmo tempo, conseguia investir R$ 5,3 bilhões por ano em expansão e modernização.
Antes, 25% do lucro iam para acionistas e 75% para investimentos. Foi com essa política que chegamos praticamente à universalização de água e esgoto em mais de 375 municípios até 2022. Portanto, não havia, do ponto de vista técnico e financeiro, justificativa para privatizar com o argumento da ineficiência.
E o que acontece agora?
Agora a lógica é outra. A política de dividendos caminha para chegar a 100% do lucro distribuído aos acionistas a partir dos balanços de 2025 e 2026. O foco é maximizar ganho no menor prazo possível. Só que saneamento é obra de longo ciclo: estação de tratamento dura 50, 80, às vezes 100 anos. Quando se muda o foco para rentabilidade imediata, o primeiro corte é em manutenção e pessoal — e aí começam os problemas.
Quais problemas já são visíveis?
Vemos um aumento preocupante de falhas no sistema de esgoto. Em 2021, registraram-se 33 incidentes; em 2025, antes mesmo de terminar o ano, já eram 52. Isso não é acaso. É resultado de uma estratégia de manutenção apenas corretiva, e não preventiva. A equipe foi reduzida, setores esvaziados. Conserta-se só quando estoura — muitas vezes quando já virou escândalo.
Isso explica os recentes despejos de esgoto não-tratado nos rios?
Sim, em rios e represas, inclusive na Guarapiranga. Sistema de esgoto exige manutenção constante. Quando o objetivo passa a ser lucro, abre-se mão da prevenção. É como dirigir com a luz do painel acesa e fingir que não viu.
Então, a falta de água tende a virar rotina?
Sim. A redução de pressão na rede já está sendo sentida. Isso significa que bairros mais altos ou mais distantes dos centros de distribuição começam a sofrer interrupções frequentes. É o que eu chamo de institucionalização da falta d’água: falta um dia, volta no outro; falta à noite, volta de madrugada — e a população vai se acostumando, como se fosse inevitável.
É inevitável?
É escolha de gestão.
E as tarifas?
Elas virão. E virão pesadas. A empresa não quer adotar políticas de bonificação por economia, como fizemos na crise hídrica passada, porque isso reduz lucro. O aumento deve ser empurrado para depois das eleições. O risco é de uma paulada tarifária para fechar a conta da rentabilidade aos acionistas.
Hoje, quatro ou cinco grupos atuam no saneamento no Brasil. Caminhamos para uma oligopolização?
Em 2015, apenas 238 municípios brasileiros tinham o saneamento privatizado. Em 2025, são 1.820. Cinco grupos controlam 85% das concessões: Aegea, Águas do Brasil, BRK, Equatorial e Iguá. Isso é oligopólio. Os editais já saem moldados para que poucos disputem e, muitas vezes, há acordos de mercado: hoje você ganha, amanhã ganho eu.
A Equatorial, que assumiu a Sabesp, tinha experiência mínima em saneamento. Cuidava de 16 municípios no Amapá, baixa densidade populacional. E agora passa a operar um dos maiores sistemas de água urbana da América Latina.
A reestatização é possível num futuro próximo?
Hoje é difícil, porque o Congresso está alinhado com o projeto privatista. Mas quando as tarifas dispararem, quando faltar água com frequência, quando o esgoto continuar correndo para os rios e o lucro seguir recorde, a pressão social pode tornar a reestatização inevitável
Vivemos o neoliberalismo tardio. O mundo está fazendo esse caminho (reestatização). Centenas de cidades reestatizaram a água após a experiência fracassada de privatização. Tarifas altas, investimentos insuficientes, falta de transparência, queda na qualidade. O Brasil pode chegar a esse ponto também.
Que alerta você faria aos defensores da privatização e ao conjunto da sociedade?
O alerta é simples: se a água vira mercadoria, a sede vira negócio. A Sabesp que universalizou o serviço foi a Sabesp pública, que reinvestia no próprio sistema. A Sabesp privatizada segue outro rumo. O resultado não é teoria: já está nas torneiras, nos rios e no bolso da população.











