“É claro que o episódio direto do Amapá tem uma responsabilidade da empresa que em 2009 ganhou a licitação, mas há também responsabilidade do órgão que tem que fiscalizar e garantir que as empresas cumpram suas obrigações”, disse o especialista Ildo Sauer
O especialista em energia, Ildo Sauer, ex-diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP), afirmou, ao analisar o apagão que atingiu o estado do Amapá, com dois blecautes totais nos dias 3 (durante 4 horas) e 17 de novembro (por 7 horas), que o episódio revelou “a ponta de um iceberg, que está latente”. Ele alertou “que a situação no Brasil todo não é muito diferente”.
“É claro que o episódio direto do Amapá tem uma responsabilidade da empresa que em 2009 ganhou a licitação”, disse Ildo Sauer, em entrevista ao HP. “Essa empresa, uma empresa espanhola, ganhou a licitação, construiu a rede e não cumpriu com suas obrigações. Foi à falência, foi substituída por um fundo de investimento, uma empresa nitidamente sem familiaridade com a tecnologia”.
“Então, a responsabilidade direta é dessa empresa, que quase um atrás, retirou de funcionamento um transformador para manutenção, ele não retornou até agora. A metodologia de confiabilidade é que tendo três transformadores, dois são suficientes para atender a carga – são mais ou menos 150 MW cada um deles, a carga é 240 MW, então dois atendem a carga simultaneamente e o terceiro fica de reserva. Esse terceiro foi para manutenção, não retornou. Houve um outro problema que provavelmente está vinculado à ausência de manutenção preventiva centrada em confiabilidade. O segundo transformador teve um incêndio e esse incêndio promoveu também a danificação do terceiro transformador. Então ficou sem nada”.
Segundo Sauer, há problema de projeto e há responsabilidade da empresa, mas “há também responsabilidade do órgão que tem que fiscalizar e garantir que as empresas cumpram suas obrigações. Esse órgão se chama Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e em paralelo também o Operador Nacional do Sistema (ONS), que é quem comanda a operação das usinas, o fluxo de carga para atender as regiões, devia estar notificado de que aquela subestação não estava com o nível de confiabilidade aceitável”.
“De maneira que a responsabilidade direta é da empresa, a de supervisão da Aneel, acima de tudo, porque sabia que este transformador estava fora e que o sistema estava vulnerável, e também do Operador Nacional do Sistema”, afirma o especialista.
“Quando eu falo que esse é a ponta do iceberg, isso tem a ver com algo mais profundo. Tem a ver com a forma de organizar, definir responsabilidades, no sistema elétrico brasileiro. A estrutura de governança. A forma de planejar, a forma de contratar, os itens que estão nos contratos, a forma de fiscalizar e a fragmentação extremamente grande”, disse Sauer.
Segundo ele, são cerca de 66 empresas que distribuem energia, uma grande quantidade de empresas são donas de usinas hidrelétricas, termelétricas, eólicas, solar, entre outras. Tema ONS, a empresa EPE que não tem subordinação direta, que faz estudos para o Ministério de Minas e Energia, a Aneel, a Agência Nacional da Água, que define os fluxos mínimos dos rios.
“Temos então uma grande quantidade de empresas de padrões técnicos que foram agregados ao longo das reformas liberalizantes, pró-mercado, iniciadas nos anos 90 com o governo Collor, implantadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, com essa estrutura, com essa organização. A frente Brasil Popular que ganhou as eleições em 2002, em grande parte por causa do racionamento de 2001/2 não respondeu, não implantou as propostas que foram colocadas no debate durante a campanha eleitoral. Os ajustes comandados pela senhora Rousseff, como ministra, como chefe da Casa Civil, e depois como presidente, evidentemente não foram suficientes para recuperar o grau de coordenação, o grau de confiabilidade, o grau de comando hierárquico necessário de cima para baixo para que o sistema realmente possa funcionar com confiabilidade”, disse Ildo Sauer.
Sauer desmonta a falácia de que com a privatização do setor as tarifas iriam ficar mais baratas e o serviço melhor.
“A promessa feita, quando começou a reforma nos anos 90, de que no Brasil nós íamos privatizar, para abater a dívida pública, e que nós teríamos melhoria na qualidade de energia e redução dos preço, nada disso foi cumprido. Nós temos hoje uma das tarifas mais caras do mundo, em termos de paridade de poder de compra, a qualidade é precária e tivemos vários apagões”, disse Ildo, lembrando o episódio em 2013 em Florianópolis.
Segundo ele, existem regiões no mundo que com a coordenação adequadamente estruturada, com comando e controle da agência reguladora controla qualidade e preços, como em alguns estados americanos. Por outro lado ele citou a Inglaterra, “que depois de seguir o exemplo do Chile, de Pinochet – a senhora Tatcher foi a primeira a embarcar nas privatições dos anos 70 – agora está revendo isso”.
O especialista ressalta que quem foi chamada a salvar o Amapá do apagão foi a “mal falada” Eletronorte, a subsidiária da Eletrobrás que está encabeçando a lista das estatais que Bolsonaro pretende entregar à iniciativa privada.
“Quem foi chamado para resolver o problema de Macapá agora foi a Eletronorte, tão mal falada, mas que na hora do aperto era o instrumento de que o governo dispunha”, ressaltou Ildo.
Para Ildo Sauer, a resposta que foi dado diante do apagão foi “extremamente precária”.
“Depois do acontecido, o prazo em que se poderia reorganizar essa subestação é muito menor do que está acontecendo, primeiro porque Macapá tinha antigas termelétricas, como eu mencionei precárias, têm capacidade de geração superior a necessária ao Estado, as três hidrelétricas de médio porte do Rio Araguari. Transformadores semelhantes aquele existe no Brasil e no mundo inteiro, é questão de organizar a logística e agir imediatamente. É claro que Macapá tem dificuldade de acesso, não tem rodovia do resto do país que chegue até lá, mas tem o Rio Amazonas, tem o Oceano Atlântico e tem a via aérea. A Aeronáutica brasileira dispõe dos aviões Hércules EC-130 e o Hércules brasileiro, grande projeto da Embraer – o KC-390, que poderiam servir para transporte . Mas isso exige planejamento, exige ação e, aparentemente, o Ministério de Minas e Energia e os demais órgãos do governo não foram capazes de organizar uma resposta imediata que aquela situação gerada por uma irresponsabilidade de uma empresa, e por falta de supervisão. A resposta precisava ser imediata e também não foi”.
“Quando a gente fala que Macapá é a ponta do iceberg, assim como o raio de Bauru de 99 sinalizou para o que veio depois, o racionamento de 2001/2002, infelizmente, a situação brasileira não tem diretamente a ver com o papel nem da Aneel nem da ONS, como eles estão cumprindo. É a logica com que o o sistema foi reestruturado dos anos 90 para cá, 95 especialmente, como as reformas necessárias em 2003 até 2016 não foram feitas, ao contrário, agravamos a situação com a famigerada MP 587, aquela que transferiu a energia das empresas estatais para interesses privados, vendendo abaixo do custo, na tentativa de reduzir a explosão tarifária”, ressaltou o especialista.
“Além da tragédia com consequências gravíssimas para a qualidade de vida, organização do serviço público, dos mercados, da conservação de alimentos, da saúde, no meio de uma pandemia, que assola hoje, lamentavelmente, o estado do Amapá, a pior notícia é que isso não é fruto de um mero acidente, isso é consequência da desestruturação, da forma precária como são definidas as responsabilidades, fragmentadas em múltiplos agentes, Enel, Ana, ONS , EPE, Câmara de Comercialização de Energia. Tudo isso que antes estava concentrado em poucas organizações, controladas pela Eletrobrás, com controle mais rígido, com forma de planejar. Havia uma estrutura organizada”.
Para Sauer, além da tragédia do Amapá, “há muita preocupação e a necessidade de reflexão sobre que medidas vão ser tomadas para corrigir as distorções geradas na estrutura de organização, gestão, planejamento e operação do sistema energético brasileiro”.