Em manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, rebateu as alegações da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no recurso em que pede para suspender a sentença que condenou o ex-presidente a 12 anos e um mês de prisão, proferida pelo Tribunal Regional Federal (TRF-4), no caso do triplex de Guarujá, no litoral paulista.
O parecer de 80 páginas da procuradora foi enviado ao STF no último dia 26 de julho e anexado ao processo nesta terça-feira, 31 de julho. Aqui.
O recurso lulista questiona a decisão do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, que considerou prejudicado um recurso diante da decisão do TRF-4 de não admitir recurso com pedido de efeito suspensivo ao STF. A defesa de Lula recorreu da decisão de Fachin e pediu que o recurso fosse analisado pela Segunda Turma do STF. Fachin contrariou Lula e decidiu enviar o recurso para análise no plenário do Supremo, o que desagradou a defesa e esta voltou a recorrer.
Para conhecimento, a Segunda Turma do STF é formada por Edson Fachin, Celso Mello, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. Por causa dos votos destes três últimos, a Segunda Turma restituiu os privilégios do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e permitiu que ele voltasse para um presídio no Rio de Janeiro. Cabral, condenado cinco vezes, a um total de mais de 100 anos de cadeia por corrupção passiva, lavagem e organização de quadrilha, réu em 22 processos, foi preso em novembro de 2016.
O trio também soltou José Dirceu (PT) e o ex-tesoureiro do PP, Cláudio Genu. Absolveu Gleisi Hoffmann, presidente do PT, e tornou elegível Demóstenes Torres, cassado pelo Senado por usar o cargo para beneficiar o contraventor Carlinhos Cachoeira. Toffoli também concedeu “prisão domiciliar” ao deputado Jorge Picciani (PMDB) – que chefiava o segundo maior esquema de propinas do Rio. A defesa lulista aposta na generosidade do trio da Segunda Turma com os corruptos para soltar Lula também.
Raquel Dodge desmonta os argumentos lulistas um a um no seu parecer. Segundo a defesa, a condenação de Lula pelo TRF-4 apresenta vários vícios, como a ausência de juízo natural para processar e julgar a ação penal, falta de imparcialidade do magistrado, alegação de que não teria sido tratado com impessoalidade pelo MP, violação do princípio da não culpabilidade, do devido processo legal e da ampla defesa, violação ao princípio da individualização da pena, corrupção virtual, entre outras. Ela rebate a parcialidade do juiz Sérgio Moro e todas as outras acusações da defesa lulista.
Para Raquel Dodge, o recurso de Lula não preenche as condições mínimas de “admissibilidade e plausibilidade jurídica”, além de se basear em supostas violações a normas infraconstitucionais. A titular da PGR pede que o recurso sequer seja analisado pelo plenário do STF e, caso seja aceito, pede que seja rejeitado.
Dodge sustenta que a jurisprudência do STF só admite esse tipo de recurso quando há afronta expressa à Constituição Federal. E, segundo a PGR, não é o caso. Ao pretender que o STF reexamine provas e fatos, diz Dodge, – o que é incabível nessa fase do processo, segundo a Súmula 279 do próprio Supremo –, Lula revela inconformismo com a análise das provas feita pela 13ª Vara Federal de Curitiba e pela 8ª Turma do TRF-4, de forma unânime.
A procuradora mostra que há fartura de provas contra Lula. “Com efeito, no curso da chamada Operação Lava Jato, foram colhidas provas de um grande esquema criminoso de corrupção e de lavagem de dinheiro, no âmbito da empresa Petróleo Brasileiro S/A – Petrobras”, diz.
“As maiores empreiteiras do Brasil, especificamente a OAS, Odebrecht, UTC, Camargo Correa, Techint, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior, Promon, MPE, Skanska, Queiroz Galvão, IESA, Engevix, SETAL, GDK e Galvão Engenharia, formaram um cartel através do qual, por ajuste prévio, sistematicamente frustraram as licitações da Petrobras para a contratação de grandes obras, e pagaram sistematicamente propinas a dirigentes da empresa estatal calculadas em percentual sobre o contrato. O ajuste prévio entre as empreiteiras eliminava a concorrência real das licitações e permitia que elas impusessem o seu preço na contratação, observados apenas os limites máximos admitidos pela Petrobrás (de 20% sobre a estimativa de preço da estatal)”.
“Receberam propinas dirigentes da Diretoria de Abastecimento, da Diretoria de Engenharia ou Serviços e da Diretoria Internacional, especialmente Paulo Roberto Costa, Renato de Souza Duque, Pedro José Barusco Filho, Nestor Cuñat Cerveró e Jorge Luiz Zelada. Surgiram, porém, elementos probatórios de que o caso transcende a corrupção – e lavagem decorrente – de agentes da Petrobrás, servindo o esquema criminoso para também corromper agentes políticos e financiar, com recursos provenientes do crime, partidos políticos. Aos agentes e partidos políticos cabia dar sustentação à nomeação e à permanência nos cargos da Petrobrás dos referidos Diretores. Para tanto, recebiam remuneração periódica. Entre as empreiteiras, os Diretores da Petrobrás e os agentes políticos, atuavam terceiros encarregados do repasse das vantagens indevidas e da lavagem de dinheiro, os chamados operadores. Assim, constatou-se a existência de uma grande organização criminosa, em que há um núcleo integrado pelos dirigentes das empreiteiras, outro pelos executivos de alto escalão da Petrobrás, um terceiro pelos profissionais da lavagem e o último pelos agentes políticos que recebiam parte das propinas”.
“A vantagem indevida do crime de corrupção passiva a que Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado nos autos da ação penal n. 5046512- 94.2016.4.04.7000/PR foi debitada da conta corrente geral de propinas entre o Grupo OAS e agentes do Partido dos Trabalhadores, conta essa, por sua vez, alimentada com valores oriundos de contratos do Grupo com a Petrobrás”.
Sobre a alegação da defesa de que houve prejuízo ao direito à ampla defesa: “Ora, o ora requerente confunde “direito à ampla defesa” com “direito à defesa ilimitada”, exercida independentemente de sua utilidade prática para o processo, em razão do mero “querer” das partes. Enquanto o primeiro direito é, de fato, albergado pela ordem jurídica pátria, o segundo, não apenas não se encontra nela previsto, como é por ela rechaçado. Nas palavras de Douglas Fischer e Eugênio Pacelli, “a ampla defesa não pode ser confundida com a possibilidade de a defesa escolher a forma que entender mais adequada para a prova, mesmo que sem qualquer utilidade prática. Ampla defesa não é o que a defesa quer, mas o que pode fazer à luz da concretização de todos os princípios constitucionais no processo penal. Portanto, não está em jogo apenas a ampla defesa, mas também o devido processo legal (que é devido pra ambas as partes), em que um dos princípios reguladores também é a celeridade processual”.
Outros trechos do documento da procuradora:
“Segundo afirmou ao Juízo a quo José Adelmário Pinheiro Filho: “o apartamento era do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde o dia que me passaram para estudar os empreendimentos da BANCOOP, já foi me dito que era do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de sua família, que eu não comercializasse e tratasse aquilo como uma coisa de propriedade do Presidente”.
“Por outro lado, a real titularidade do imóvel foi mantida oculta mediante diversos atos comprovados de ocultação e dissimulação (como fraudes documentais nos documentos de aquisição), de 2009 até pelo menos o final de 2014, ou mais propriamente até a presente data, tudo com perfeita ciência de Luiz Inácio Lula da Silva. Aliás, era clara a preocupação de Luiz Inácio Lula da Silva em não se vincular nem ao apartamento nem às reformas que nele foram feitas, justamente a fim de manter oculta sua relação com o bem”.
“Restou comprovado que Luiz Inácio Lula da Silva atuou diretamente na nomeação e na manutenção de PAULO ROBERTO COSTA, RENATO DUQUE, NESTOR CERVERÓ e JORGE ZELADA nas Diretorias de Abastecimento, Serviços e Internacional da PETROBRAS, com ciência e anuência acerca do uso dos cargos para a arrecadação, junto a empresários com contratos públicos, de propinas para distribuição a agentes e partidos políticos. Com efeito, no intuito de conquistar o apoio de grandes bancadas na Câmara dos Deputados e de contemplar os interesses arrecadatórios e escusos do Partido dos Trabalhadores – PT, Luiz Inácio Lula da Silva e JOSÉ DIRCEU passaram a distribuir as principais Diretorias da PETROBRAS, notadamente de Abastecimento, de Serviços e Internacional”.
“No entanto, não se pode desconsiderar que os crimes de corrupção e lavagem de capitais praticados por Luiz Inácio Lula da Silva, sendo parte de um cenário criminoso maior, têm também uma outra motivação: manter o esquema de cartel e corrupção na Petrobrás funcionando. Assim, os crimes se retroalimentavam, com motivações cíclicas: a corrupção era importante para que o cartel existisse; o cartel era importante para conseguir recursos para pagar a propina. Os motivos dos crimes, umbilicalmente ligados à manutenção do esquema ilícito, devem, portanto, ser valorados negativamente”.
“Luiz Inácio Lula da Silva praticou crimes de corrupção passiva e de lavagem de capitais valendo-se do cargo de Presidente da República, chefe maior da nação, ou seja, aquele que deve ter maior retidão na sua conduta e conduzir o país com zelo, eficiência e, acima de tudo, probidade. Ao usar o cargo para obter vantagem financeira, e, em contrapartida, viabilizar a ocorrência de um dos maiores esquemas de corrupção da história mundial, Luiz Inácio Lula da Silva demonstrou desprezo pelos ideias republicanos que prometeu cumprir como Chefe de Estado e, com isso, frustrou as expectativas de milhões de brasileiros, que nele depositaram confiança ao o elegerem”.
“Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para o mais alto cargo do Executivo Federal com um ferrenho discurso anticorrupção, alardeando sua honestidade e prometendo combate aos dilapidadores dos cofres públicos. Elegeu-se em virtude de sua retórica de probidade e retidão. Tais fatos elevam sobremaneira o grau de censurabilidade da conduta do recorrente e devem ser punidos à altura”.
“Ademais, a consciência da ilicitude é inegável, já que Luiz Inácio Lula da Silva se valeu de sofisticados mecanismos financeiros para ocultar a corrupção que praticou e para praticar o crime de lavagem de capitais, em meio a complexa organização criminosa. Ademais, em face da posição que ocupava e da alta remuneração percebida, o requerente estava numa posição social muito privilegiada dentro da sociedade brasileira. E, ciente de que a propina que recebeu era parte de um esquema de corrupção na PETROBRAS, o domínio, ainda que parcial, sobre as consequências prejudiciais à Estatal é evidente”.
“Veja-se, ainda, que não procede a alegação da defesa de que a função pública ocupada por Luiz Inácio Lula da Silva ao tempo da prática do crime de corrupção passiva é elementar do tipo inscrito no art. 317 do CP, não podendo ser valorada como uma circunstância judicial negativa. O tipo legal em referência possui como elementar a condição de funcionário público, e não, obviamente, a de ocupante do cargo de Presidente da República. Esta última condição, quando presente, justamente por não ser elementar do tipo de corrupção e ser relevante para que se afira, por exemplo, o grau de reprovabilidade da conduta criminosa, pode ser valorada pelo Juízo de modo a impactar, positiva ou negativamente, na avaliação das circunstâncias judiciais”.
AVESNALDO SENA