“Bolsonaro se coloca como o anti-iluminista, vinculado à necropolítica, o seu limite é o limite da morte, para ele, o inimigo é para torturar, matar. Ele é o contrário de tudo que nós defendemos em nome da tradição judaica”, afirma, em entrevista concedida ao HP, o professor Michel Gherman, diretor do Instituto Brasil Israel e coordenador – em conjunto com a professora Mônica Grin – do Núcleo de Estudos Judaicos da UFRJ. Gherman é antropólogo formado pela Universidade Hebraica de Jerusalém e historiador pela UFRJ
Nathaniel Braia – Como se vinculam os acontecimentos políticos do Brasil e a comunidade judaica em nosso país?
Michel Gherman – No Brasil, o que está se projetando é a figura de um político pária no cenário internacional. O aliado de Bibi Netanyahu, aqui é hoje repudiado amplamente, desde aqueles que defendem a ecologia, até os que defendem os direitos humanos. O amigo de Netanyahu aqui é uma pessoa que consegue criar uma unidade internacional contra si.
– Como você vê a relação que se estabeleceu entre setores da comunidade judaica brasileira e Bolsonaro?
– Em primeiro lugar, há uma sedução que pegou muita gente dentro da comunidade judaica, que é a de que Bolsonaro é amigo dos judeus. Essa sedução é perigosíssima. Porque Bolsonaro não tem nenhuma relação com os judeus, pelo menos não com os judeus reais, mas com o judeu imaginário que ele cria para poder aparecer de forma que lhe é vantajosa em grupos específicos. É inegável que Bolsonaro está mergulhado em perspectivas fascistas, mas eu vejo até coisas piores, ele vem das sombras, da resistência medieval ao iluminismo, é um homem que se coloca como o anti-iluminista, vinculado à necropolítica, o seu limite é o limite da morte, o inimigo é para matar, é o contrário de tudo que a gente defende em nome da tradição judaica.
– É verdade. Destaco duas declarações neste sentido. Uma do filho dele que disse que com democracia não “dá pra ajeitar o Brasil” e a de seu guru, o Olavo de Carvalho que disse que “sem alguns assassinatos não dá para consertar o Brasil”…
– O próprio Bolsonaro falou sobre isso, prender, botar pessoas na “Ponta da Praia” […ponta da praia com o tempo virou uma gíria entre militares linha dura para designar lugar clandestino para interrogatório com tortura e eventual morte, explica o professor de história da UFRJ Carlos Fico, especializado na ditadura militar brasileira; in matéria da Folha de São Paulo de 29/12/2018].
Bolsonaro é um câncer, é uma degeneração da Civilização Ocidental, é uma perspectiva de morte, de exilar pessoas…
Agora falar estas coisas em nome dos judeus, em nome de Israel, para mim, é uma das questões mais sérias que poderia acontecer, uma das tarefas históricas que a comunidade judaica e os sionistas têm diante de si é se desvincularem desta perspectiva. Se não houver uma desvinculação clara, vamos pagar um preço histórico, caríssimo, isso será cobrado a quem se mantiver aliado a isto. Bolsonaro é um câncer, é uma degeneração da Civilização Ocidental, é uma perspectiva de morte, de exilar pessoas, muda a percepção da civilização judaico-cristã. É uma coisa que ele e seu grupo inventaram, para garantir sua manutenção no poder.
– Há uma movimentação na comunidade judaica brasileira. Recentemente você esteve presente aqui em São Paulo em um evento de lançamento da revista do Observatório Judaico de Direitos Humanos. Como você observa este movimento?
– Eu acho que se a gente não fala agora, o silêncio vai nos cobrar de forma mais clara por esta omissão. Neste sentido, iniciativas como a Revista do Observatório, acontece neste momento, com o papel histórico de fundamentação de um novo judaísmo, um judaísmo que tem que dizer a Bolsonaro, e dizer a toda a comunidade judaica que é preciso gritar, “Não em nosso nome”.
Porque o judeu que vota em Bolsonaro, apoia Bolsonaro, deve assumir o risco do que ele está cometendo sem olhar ao seu redor. Se ele quer apoiar Bolsonaro, que o faça, mas não em nome do judaísmo.
– Qual o significado de termos 59% dos judeus votando em Bolsonaro no segundo turno?
– É preciso observarmos isso melhor. A comunidade judaica, em centros como Rio, São Paulo e Porto Alegre, está vinculada às camadas A B e C da população. Se observarmos os setores A e B da população em geral, podemos perceber que a maioria dos judeus votou no Bolsonaro, mas uma maioria menor dos que os não judeus destas camadas que, em geral, votaram nele. Pessoas destas classes votaram nele à razão de 70%, 10% a mais. Isso é muito importante.
Os que votam, em geral, no Bolsonaro, o fazem desde uma perspectiva de classe, com base verdadeira ou não, mas em uma tal perspectiva.
É preciso, a esta altura, percebermos que a exigência que se faz dos judeus de se afastarem do nazismo, diante do que foi o holocausto, é uma exigência de dar pedagogia à história. Mas a história não é exatamente escola, história é experiência, história é processo. Então os judeus que votaram em Bolsonaro ainda têm pouco a ver com essa compreensão da história, os judeus que votaram em Bolsonaro o fizeram geralmente por questões de classe social.
Então, um parêntese, a pergunta é: o que acontece com esta burguesia brasileira, que abre mão de todos os valores civilizatórios em favor de uma extrema direita torpe que acaba de chegar ao poder?
Portanto, podemos perceber que o quadro é um pouco melhor do que se imagina. Entre os judeus (a grande maioria de classes mais abastadas), votaram 59%. Então podemos nos perguntar: porque que um cidadão que ostenta a bandeia de Israel como referência, não consegue trazer para o seu lado 75%, 80% dos judeus? Então não se pode dizer que é exato afirmar generalidades como “os judeus foram os que mais votaram em Bolsonaro”…
– Você já citou, como momento histórico, a quantidade de judeus que estavam do lado de fora da Hebraica do Rio de Janeiro, quando Bolsonaro estava lá dentro e, em repúdio a seu discurso, seguravam a bandeira de Israel.
– É verdade. A primeira manifestação pública contra Bolsonaro aconteceu na frente da Hebraica do Rio de Janeiro. Agora, o que não podemos deixar acontecer, nós que atuamos em entidades como o Observatório Judaico dos DH, do grupo Judeus pela Democracia, Associação Sholem Aleichem – ASA, é permitir a exclusividade da fala em nome da comunidade judaica às entidades-teto dessa comunidade.
…a mobilização de setores da comunidade judaica para afirmar que Herzog não se suicidou, que ele havia sido assassinado, foi fundamental para garantir a presença honrosa dos judeus no processo de democratização.
A Conib (Confederação Israelita Brasileira) , a Fisesp (Federação Israelita do Estado de São Paulo) e a Fierj (Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro), não falam em nome dos judeus progressistas que estão se dando as mãos em defesa da democracia.
– Mas, no evento que aconteceu em São Paulo, em favor dos direitos humanos, a Fisesp mandou um representante.
– Sim. A Fisesp está entendendo que existe uma diversidade política no seio da comunidade judaica e está disposta a um diálogo, manter canal aberto com os judeus progressistas de São Paulo. Até agora, infelizmente, a Fierj se nega a isso.
– Mas há os que se colocam no campo de defesa da nossa democracia que, no entanto, não percebem isso, essa movimentação e sua importância. Olham para esta Federação de São Paulo, como se fora um inimigo.
É um problema. É preciso que se entenda que é um momento de criação de frentes, de junção de forças. Neste sentido, se Federação Israelita do Rio de Janeiro quiser participar dessa frente, ela é muito bem-vinda também. Mesmo com todas as besteiras que ela produziu até agora, ela seria bem-vinda. Se tivesse gente assim nessa Federação seria ótimo. Gostaria que tivessem, que nos procurassem…A Federação Israelita de São Paulo traz um diálogo possível e tem que ser articulado mais diálogo. Organizados amplos debates. Temos que ir atrás de gente que está procurando entender o outro lado. A Conib nem se fala. A Conib está em um momento de garantia democrática no país que é impressionante. Palmas para a Fisesp, palmas para a Conib. Agora, o que existe como dado absoluto até o momento é que as comunidades judaicas são vistas como restritas a unidades representativas. Então os do Rio seriam representados pela Fierj, os de São Paulo, pela Fisesp. Mas, ao que tudo indica, estamos caminhando para uma pluralidade representativa. Como já está acontecendo, por exemplo, nos Estados Unidos.
– Gostaria que você falasse da importância da movimentação que está acontecendo dentro da comunidade judaica norte-americana que pode influenciar até dentro de Israel.
Os Estados Unidos hoje se apresentam, diferente do modelo de século XVI que tem na cabeça de Bolsonaro. É também a visão da 4ª Cavalaria que investia contra os índios norte-americanos. Mas há aí uma sociedade civil atuante neste início do século XXI. Pessoas que se colocam diante dos fatos que estão acontecendo e que, de certa maneira, pleiteiam o resgate dos valores civis que venceram na Guerra Civil norte-americana. É assim que a comunidade judaica norte-americana se identifica cada vez mais profundamente com estes valores essenciais norte-americanos. Neste sentido, a grande maioria dos judeus nos Estados Unidos vota em candidatos do Partido Democrata.
Em termos de votação, na eleição em que Trump disputou, passou dos 70% contra ele. E mais, com Trump, há um número crescente que começa a se ver na defesa dos valores ocidentais que levaram, por exemplo, a vitória de Lincoln. E Trump não representa isso. Então, há uma resposta nesse sentido ao desafio que Trump apresenta à democracia norte-americana. Então, os judeus dos Estados Unidos começam a olhar para Israel e ver uma aliança muito desconfortável para eles entre Bibi e Trump.
Espero que isso avance mais. Espero que se comece a reivindicar os valores que Israel proclamou quando de sua fundação e que estão sendo totalmente negados por Bibi e sua entourage hoje. Mas já há uma grande movimentação. Temos hoje, setores à esquerda, representados pela figura de Bernie Sanders, candidato à presidência dos Estados Unidos que advoga uma revolução política, mas há também outros setores, a exemplo dos que se reúnem em torno da organização JStreet, o que ultrapassa a esquerda judaica e confere um caráter muito mais amplo a toda essa movimentação contra essa aliança antidemocrática Trump-Netanyahu.
Neste sentido, o que nós podemos produzir aqui no Brasil, é algo similar ao que vemos acontecer nos Estados Unidos: apesar dessa propalada aliança Trump – Netanyahu, o que amplos setores lá estão dizendo é: “essa aliança não nos representa”.
Aqui também. Formou-se uma aliança Bolsonaro-Netanyahu que se diz representar os judeus e uma aliança com Israel. O que entidades como o Observatório estão dizendo é que esse judeu é imaginário. O judeu real, não cabe nessa visão imaginária que Bolsonaro quer desenhar para nós.
Por isso, eu acho que um movimento que precisa se desenvolver, em contraposição a isso, é um diálogo entre os judeus brasileiros progressistas e os melhores elementos da sociedade civil israelense. O que eles precisam entender lá, em Israel, através desse diálogo, é que Bolsonaro está longe de representar uma aliança positiva para os israelenses. Não é. O que é Bolsonaro? É a ameaça à democracia brasileira, é a destruição da Amazônia, é o genocídio dos índios brasileiros. Uma aliança com isso só pode ser prejudicial a quem se vincular a isso, inclusive Israel.
– Você fala em um judeu imaginário criado pelo bolsonarismo. Qual seria, então o risco dessa corrente para o judeu real?
Não acho que em contraposição a essa visão de Bolsonaro exista um judeu real. Pois são muitos judeus diferenciados. O que existe é a negação deste judeu imaginário. O judeu real, é exatamente igual ao cidadão comum na sociedade brasileira, ou seja, ele come, vota, sonha, ele tem esperanças. O que Bolsonaro quer, é que o cidadão coma menos, não sonhe, não tenha esperanças.
O judeu corre exatamente o mesmo risco que aflige a todos os brasileiros, o de trocar a esperança pelo ódio, o amor pelo medo. Então eu acho que, sendo judeus, temos que pensar como brasileiros e Bolsonaro está colocando o Brasil no lugar de risco a que nos leva a política da morte e está fazendo isso usando o nome do judeu. Basta lembrar que temos que nos posicionar quando, por exemplo, Bolsonaro se refere a que Vladimir Herzog deveria ser enterrado como suicida. E ele não o foi porque houve uma mobilização dos judeus em 75 para que isso não acontecesse. Dá para se imaginar como os judeus seriam vistos, sem isso, em 1978. Quer dizer, a mobilização de setores da comunidade judaica para afirmar que Herzog não se suicidou, que ele havia sido assassinado, foi fundamental para garantir a presença honrosa dos judeus no processo de democratização. Então, hoje temos Bolsonaro, mas haverá um pós-Bolsonaro. A pergunta é, em que lugar os judeus querem estar no pós-Bolsonaro?
– Não sei se você concorda, mas essa fachada pró-judaica do bolsonarismo pode, de uma hora para outra, assumir nova face e setores dessa direita começarem a manifestar um recrudescimento do antissemitismo.
– Mas isso já está acontecendo. O judeu que eles propalam, que eles visualizam, é uma espécie de judeu bíblico, anterior ao surgimento do iluminismo, quando da superação da mentalidade de gueto. O judeu que eles admitem é o judeu anti-iluminista, diferente do judeu inserido na sociedade brasileira. Esse também é o Israel que eles apresentam. Uma percepção monolítica do judaísmo, monolítica de Israel.
O fato é que judeus de pensamentos diversos podem sentar à mesa e conversar e viver um diálogo, o lugar da democracia, da conversa superando o conflito, da vida substituindo a morte. O que Bolsonaro quer fazer é exatamente o contrário disso. É colocar a morte no lugar da democracia. E, para isso, ele acaba apontando o caminho de volta ao gueto para os judeus. É recolocá-lo lá. Um gueto pintado de dourado, com eles afirmando que somos filhos de Davi, mas é gueto. Ou seja, não é que pode se tornar antissemita. Não, já é antissemita.
E a pergunta é, se a comunidade judaica vai estar disposta a defender os judeus sionistas progressistas que vão ser atacados pelos bolsonaristas. O alerta é: a gente ainda não passou por isso, mas com este poder aí, vai passar. E muito em breve, amanhã, porque o antissemitismo já há. O antissemitismo anti-iluminista.
– Fale-me sobre o encontro que deve acontecer em Haifa nos dias 10, 11 e 12 de janeiro de 2020
– Este é um encontro sobre Brasil e Israel. São encontros realizados na Universidade Hebraica de Jerusalém, é uma forma de se discutir o Brasil, comparando questões brasileiras com as questões israelenses e palestinas. Nos últimos anos a gente começa a perceber que esta comparação é importante. E nós já decidimos fazer na cidade de Haifa. Porque Haifa é uma Universidade mais aberta, menor, e está em uma cidade com uma população árabe muito grande, onde achamos que podemos começar uma nova parceria. O tema do debate deste ano é o “Uso político que a extrema direita – com foco na extrema direita evangélica – faz sobre Israel, o judaísmo e seus símbolos”.
– Como surgiu a ideia desse encontro?
– Na verdade, surgiu de uma série de seminários, a partir de 2009, com o professor James Green da Universidade Brown dos Estados Unidos e professor visitante na Universidade de Jerusalém. Ele começou a fazer encontros em Israel sobre estudos brasileiros, houve o primeiro encontro, sob o tema, que hoje pareceria irônico, do Brasil como ator global; depois veio Democratização do Brasil. Em 2014, se discutiu a nossa história por ocasião dos 50 anos da instalação da Ditadura. E assim, vários encontros aconteceram. Como esses eventos acontecem em Israel, nós propusemos analisar também a realidade israelense e levamos os participantes do encontro mais recente para visitar a Universidade Al Quds (que fica na Jeusalém Árabe) e foi espetacular.
– Eu conheço o professor Munther Dajani, que é de lá, da Universidade Al Quds…
– Sim, nós nos encontramos com ele. Nós discutimos que não fazia sentido nós irmos do Brasil para Israel sem fazer conexão com os temas de Israel e da Palestina. Começamos a vislumbrar parcerias em Israel e nas Universidades da Palestina.
Acontece que agora, Israel não é mais um tema externo ao Brasil, passou a ser um tema interno da política brasileira. O drama que estamos vivendo é que há um Israel imaginário atuando na política interna brasileira. Neste momento, percebemos que é chegada a hora de discutirmos Israel, discutindo a política brasileira.
– Qual a amplitude desse encontro?
– Esse encontro é um encontro aberto. Estamos levando do Brasil três palestrantes, o professor Omar Ribeiro da Unicamp, dedicado a Antropologia e Religião, o professor Christian Dunker, psicanalista, do departamento de Psicologia da USP, o pastor Henrique Vieira, um pastor progressista, e agora fomos informados do interesse de Jean Wyllis de participar. Mas, nós abrimos. É um encontro para as pessoas se inscreverem e participarem.
– Vivemos um processo eleitoral em Israel. Você que está organizando este encontro em Haifa, que já estudou em Jerusalém, o que, na sua opinião acontece em Israel neste momento?
– Muita coisa acontece. Se configuraram dois campos bem amplos. Um deles é a favor de uma perspectiva autoritária, uma versão vinculada com a extrema direita no mundo, que tem pretensões claras de acabar com as estruturas democráticas em Israel em nome de um projeto político …… Bibi Netanyahu, durante a campanha, começa a acusar a população árabe de querer aniquilar os judeus, assim como, nas eleições passadas, falou em árabes indo em massa para votar, na eleição de abril deste ano, lotou as sessões de votação árabes de câmeras de filmar. Mas a diferença importante é que Netanyahu está cada vez mais próximo de ser efetivamente processado podendo ser condenado por corrupção. Então, Bibi, está fundamentalmente lutando pela sua liberdade pessoal. Ele está articulando com aqueles que aceitam os maiores absurdos possíveis para garantir o poder a Bibi.
Mas, mesmo em setores da direita, já há expressões que não aceitam este esquema. O filho de Menachem Begin, David Begin, manifestou que não vota no Likud [partido de Netanyahu] nestas eleições, outro likudista histórico, Michael Eitan, já disse que não vota em Netanyahu. Há os setores abertamente fascistas, como o grupo Poder Judaico, Otzmá Yehudit, ou a Yemina. Então está colocado este campo com um projeto antidemocrático.
E, do outro lado, se coloca uma proposta democrática no sentido mais amplo que se possa imaginar, englobando desde a social-democracia, até centristas de direita que estão na verdade lutando para que a política israelense não seja a da necropolítica; para que prevaleça a política institucional democrática, regida pela representatividade. Ou seja, o debate em Israel é hoje um debate sobre qual Israel a gente vai ter para os próximos anos. Não podemos esquecer, no entanto, que essa disputa se dá com a máquina de governo ainda nas mãos de Bibi Netanyahu.
Em síntese, Netanyahu tentou passar a ideia de que não é possível para Israel ser democrático e judaico ao mesmo tempo. Que a alternativa para Israel é a beligerância com os palestinos e a negação de qualquer participação cidadã dos árabes israelenses
– Como isso se configurou nas eleições de agora, do dia 17?
É bom ressaltar que, ainda com uma margem menor do que gostaríamos, Netanyahu e essa ultradireita que o apoia saíram derrotados nas eleições de 17 de setembro.
Netanyahu perdeu as eleições porque as transformou em um plebiscito. Ele apresentou a posição de que os palestinos são a expressão do antissionismo e que ceder a seus pleitos seria negar a existência de Israel ou sua condição judaica.
Em síntese, Netanyahu tentou passar a ideia de que não é possível para Israel ser democrático e judaico ao mesmo tempo. Que a alternativa para Israel é a beligerância com os palestinos e a negação de qualquer participação cidadã dos árabes israelenses. Mas, a maioria dos israelenses percebeu essa contradição que – na essência – nega as teses democráticas presentes nos termos da fundação do Estado de Israel e não o aceitaram. Por isso, Netanyahu, que exacerbou esse comportamento nos últimos dias antes das eleições, tentando levar, nas palavras dele, a ‘uma guerra total a Gaza’ ou declarando que ‘os árabes vão nos aniquilar, homens, mulheres e crianças’ foi derrotado por posições mais moderadas e que expressaram a vontade de avançar na construção de um Estado democrático legítimo em Israel e em paz com seu conjunto de cidadãos e vizinhos.
– Há uma mudança no quadro internacional. Há mudanças em gestação nos Estados Unidos que podem afetar este bloco que se cinde em torno de Netanyahu.
– Na verdade, o que Netanyahu vende hoje é sua capacidade de articular com uma grande potência sob comando da direita. Ele diz também que tem muito bons contatos com a Inglaterra, mas que, agora, está mergulhada em preocupações internas. Na Itália, o aliado seu, Salvini, perdeu na manobra eleitoral. A Hungria está cada vez mais isolada no cenário europeu e internacional. Na Polônia, a extrema direita está sob risco de derrota nas próximas eleições. Na Ucrânia, um outro aliado seu perdeu as eleições.
Com relação aos Estados Unidos, que Bibi Netanyahu considera um grande aliado com os interesses de Israel, que propalava até uma amizade pessoal entre ele e Trump, mas o que se vê, de forma cada vez mais clara, é que não se estabelece uma unidade entre os setores de direita em nível mundial. Estes setores se voltam e se movem em torno de questões locais. Exatamente porque eles não são multilaterais, cada um desses líderes está preocupado com sua questão. O Trump por exemplo está percebendo perdas. Pesquisas indicam que 60% não querem que o Trump seja reeleito e há uma movimentação maior para que as pessoas saiam para votar nos Estados Unidos.
Ele faz uma série de movimentos aparentemente desconexos, mas sua tentativa é mudar a imagem, encontros com o líder da Coreia do Norte, fala em conversas com o Irã, envia assessores para conversar com o Talibã, no Afeganistão… Acaba de ser demitido outro aliado de Netanyahu, o beligerante Bolton e, logo em seguida, Israel foi acusado de direcionar dispositivos de espionagem telefônica em direção à Casa Branca. Ou seja, Netanyahu começa a ficar descalçado em sua demonstração de força, de capacidade de articulação.
Isto que aconteceu com o Bibi Netanyahu eu chamo de efeito Bolsonaro: onde ele toca, os aliados perdem. No Paraguai, o presidente e seu vice andaram dando as mãos a Bolsonaro e quase foram para o impeachment.
É importante, a esta altura que se diga que o candidato de oposição a Netanyahu, o Benny Gantz, é um ex-chefe do Estado Maior do Exército de Israel, de centro, não é exatamente uma pessoa de esquerda. Então, nada impede de que até a Casa Branca esteja fazendo seus cálculos agora, é o pior momento para Bibi.
Então, um fator na derrota de Netanyahu, também se expressa em mudança na condição dele de dar aquilo que o israelense médio busca como fator importante, se não decisivo para ele: a sensação de segurança. E quando a rede de segurança ofertada por ele parece se desfazer, sua situação se complica.
– Dentro de tudo isso que você falou, é possível nos perguntarmos se há algo de judaico na perspectiva de entendimento com os palestinos?
– O judaísmo que eu entendo é o judaísmo do debate, da possibilidade de compreensão do outro, é o judaísmo de Emmanuel Levinas, de Martin Buber, de Hanna Arendt, é o judaísmo que possibilita a ideia de que o mundo pode ser aquele onde a troca substitua a ocupação. Onde o debate se instaure no lugar da conquista. É um mundo em que há espaço para os judeus junto com os não judeus na modernidade. Mas também é o mundo da Torá oral [Torá é nome hebraico dos cinco livros que integram o pentateuco]. Também é o mundo diferente dos neopentecostais que admitem a Bíblia e ponto. Os neopentecostais não percebem que há uma Bíblia e seus complementos que são inúmeros comentários em volta dela. E perder o debate, é perder páginas escritas na história. Esse é o meu judaísmo e eu estou bem acompanhado. Estou acompanhado de Rabi Akiva, de Rav Meir, de grandes nomes da Guemarah [uma das coleções da discussão talmúdica], dos princípios talmúdicos do debate, da discussão. Não se pode perder as fontes. E as fontes não devem ir parar na mão da estreiteza direitista. A esquerda judaica precisa recuperar as fontes, fora disso é um suicídio. Pois as fontes pós-bíblicas, as fontes da literatura judaica dizem que nós temos razão. O trabalho é muito grande; entre outras coisas estamos diante do desafio de rejudaizar a esquerda judaica. A esquerda judaica não tem que ter medo do judaísmo, como o judaísmo dela. Enquanto isso não acontecer, eles vão dizer que são mais judeus que nós, e eu garanto que não são.