“A era em que um pequeno grupo de nações decidia pelo mundo inteiro acabou”, declara Putin

Putin no fórum de Valdai (kremlin.ru)

“A subordinação da maioria à minoria, característica das relações internacionais durante o período de dominação ocidental, está dando lugar ao multilateralismo”, afirmou o presidente russo

O presidente russo Vladimir Putin afirmou, no 22º fórum anual do Clube de Discussão Internacional Valdai, em Sochi, que o mundo multipolar já existe e está em plena efervescência, denunciou a histeria na Europa pela militarização e guerra à Rússia e manifestou a disposição de Moscou para restaurar as relações com os Estados Unidos. O tema em discussão no Valdai era Um Mundo Multipolar e Policêntrico.

“Vivemos em uma época em que tudo está mudando — e mudando muito rapidamente, eu diria, radicalmente. Nenhum de nós, é claro, consegue prever o futuro completamente. No entanto, isso não nos isenta da responsabilidade de estarmos preparados para qualquer coisa que possa acontecer. Em tais períodos da história, cada um carrega uma responsabilidade particularmente grande por seu próprio destino, pelo destino de seu país e pelo destino do mundo inteiro. E os riscos são extremamente altos”, destacou Putin.

“Repito, os dias em que um pequeno grupo das nações mais poderosas decidia como o resto do mundo deveria viver acabaram para sempre.”

“A subordinação da maioria à minoria, característica das relações internacionais durante o período de dominação ocidental, está dando lugar a uma abordagem multilateral e mais cooperativa. Ela se baseia em acordos entre os principais atores e na consideração dos interesses de todos.”

“Afinal, ninguém pode, essencialmente, atingir seus objetivos sozinho, isoladamente. O mundo, apesar da escalada de conflitos, da crise do modelo de globalização anterior e da fragmentação da economia global, permanece coeso, interconectado e interdependente.

MULTIPOLARIDADE

O relatório anual do Clube Valdai, observou o presidente russo, dedicou-se desta vez ao problema de um mundo multipolar e policêntrico. A multipolaridade existente já define a estrutura dentro da qual os Estados operam.”

Praticamente – ele continuou – nada é predeterminado, o mundo multipolar é “muito dinâmico”. As mudanças acontecem rapidamente, como já disse, e “às vezes de repente, praticamente da noite para o dia”. Reagir imediatamente, em tempo real, como dizem, é necessário.

“E o mais importante, este espaço é muito mais democrático. Talvez nunca antes no cenário global tenha havido tantos países influenciando ou buscando influenciar os processos regionais e globais mais importantes.”

Putin enfatizou que “as especificidades culturais, históricas e civilizacionais de diferentes países desempenham um papel mais importante do que nunca” e chamou a “buscar pontos em comum e interesses compartilhados”.

Ninguém – ele sublinhou está disposto a jogar segundo regras estabelecidas por uma pessoa em algum lugar distante, como cantou um cantor famoso: “lá, além da neblina” — ou lá, além dos oceanos.

“Nesse sentido, quaisquer soluções só são possíveis com base em acordos que satisfaçam todas as partes interessadas ou a esmagadora maioria. Caso contrário, haverá apenas retórica vazia e um jogo de ambição infrutífero. Portanto, alcançar resultados requer harmonia e equilíbrio.”

Por fim, as oportunidades e os perigos de um mundo multipolar são “inseparáveis”. É claro que “o enfraquecimento dos ditames que caracterizaram o período anterior e a expansão do espaço de liberdade para todos são, sem dúvida, uma bênção”. No entanto, em tais condições, “encontrar e estabelecer esse equilíbrio mais duradouro é muito mais difícil, o que por si só representa um risco claro e extremo.”

“Esta situação global, que tentei descrever de forma bastante resumida, é um fenômeno qualitativamente novo”, disse Putin. As relações internacionais estão passando por uma “transformação radical”.

“Paradoxalmente, a multipolaridade foi uma consequência direta das tentativas de estabelecer e manter a hegemonia global, uma resposta do sistema internacional e da própria história ao desejo obsessivo de alinhar todos em uma única hierarquia, com os países ocidentais no topo. O fracasso dessa empreitada foi apenas uma questão de tempo, como sempre dissemos, aliás. E, pelos padrões históricos, aconteceu, e aconteceu muito rápido.”

“Sim, o poder dos Estados Unidos e seus aliados atingiu seu ápice no final do século XX. Mas não há, nem jamais haverá, poder capaz de governar o mundo, ditando a todos o que fazer, como fazer ou como respirar. Houve tentativas, mas todas fracassaram.”

“Ao mesmo tempo, vale a pena notar que muitos acharam a chamada ordem mundial liberal aceitável, até conveniente em alguns aspectos. Sim, a hierarquia limita as oportunidades daqueles que não estão no topo da pirâmide — no topo da cadeia alimentar, por assim dizer —, mas sim em algum lugar lá embaixo, na base da pirâmide.”

OBEDECE QUEM TEM JUÍZO

“Quais são as regras? Simplesmente aceite as condições propostas, integre-se ao sistema, receba a sua parte — e seja feliz, sem se preocupar com nada. Outros pensarão e decidirão por você.”

“Alguns acreditavam, presunçosamente, que tinham o direito de dar sermões a todos. Outros preferiam jogar com os poderosos, ser objeto dócil de barganha e troca, a fim de evitar problemas desnecessários e garantir um bônus pequeno, mas garantido. Aliás, ainda existem muitos políticos assim na parte antiga do mundo — a Europa.”

“Aqueles que se opunham, aqueles que tentavam defender seus interesses, direitos e pontos de vista, eram considerados, na melhor das hipóteses, excêntricos, e ouviam: nada vai funcionar para vocês de qualquer maneira — é melhor se resignarem, admitirem que, contra o nosso poder, vocês não são nada, um mero nada. “

“Nada de bom resultou disso. Nenhum problema global foi resolvido, mas novos problemas são constantemente adicionados. As instituições de governança global criadas na era anterior ou não funcionam ou perderam muito de sua eficácia — de uma forma ou de outra.”

Antes, Putin se referira à longa trajetória da Rússia desde a dissolução da União Soviética. “Trinta e cinco anos atrás, quando o confronto da Guerra Fria parecia estar chegando ao fim, esperávamos o alvorecer de uma era de cooperação genuína”. Parecia – ele acrescentou – que não restavam “obstáculos ideológicos ou de outra natureza para abordarmos conjuntamente os problemas comuns à humanidade e administrarmos e resolvermos disputas e conflitos inevitáveis com base no respeito mútuo e na consideração dos interesses de todos.”

Como exemplo dessa busca por um terreno comum com o Ocidente, isto é, o imperialismo sob égide dos EUA, Putin citou as tentativas, em 1954 e em 2000, de sugerir o ingresso na Otan, prontamente negado desde Washington. Uma delas pilotada pelo próprio Putin.

30 MIL SANÇÕES

Vocês sabem quanto esforço nossos oponentes têm despendido nos últimos anos, para ser franco, para expulsar a Rússia do sistema global, para nos levar ao isolamento político, cultural e informacional e à autarquia econômica. Em termos de número e alcance de medidas punitivas impostas contra nós, vergonhosamente chamadas de sanções, a Rússia detém o recorde absoluto da história mundial: 30 mil, e talvez até mais, de restrições diversas.

“Esses esforços fracassaram completamente. A Rússia demonstrou ao mundo um grau notável de resiliência, uma capacidade de resistir à mais poderosa pressão externa. E, nesse sentido, sentimos, é claro, um orgulho legítimo — orgulho pela Rússia, por nossos cidadãos e por nossas Forças Armadas.”

“Acontece que o próprio sistema global do qual queriam nos expulsar, nos espremer, simplesmente não deixa a Rússia ir. Porque precisa da Rússia como parte muito significativa do equilíbrio geral.

Alguns, no entanto, esperam teimosamente atingir seu objetivo: infligir, como dizem, uma derrota estratégica à Rússia.

“Parece que eles já fizeram muito barulho, ameaçaram um bloqueio total, como eles próprios disseram – não hesitaram em escolher as palavras – fazer o povo russo sofrer, elaborando planos, um mais fantasioso que o outro.”

Dirigindo-se a esses “teimosos de raciocínio lento”, Putin comentou achar que é hora de se acalmarem, fazerem um balanço, entenderem a realidade e, de alguma forma, construirem relações em uma direção completamente diferente.

Para o presidente russo, o mundo de hoje é um sistema extremamente complexo e multifacetado, é precisamente devido isso que “a negociabilidade geral tende a aumentar”. “Estou convencido de que testemunharemos um renascimento da refinada arte da diplomacia. E sua essência reside na capacidade de dialogar e negociar com vizinhos, parceiros com ideias semelhantes e — não menos importante, mas mais difícil — com oponentes.”

A COMUNIDADE DOS BRICS

“É nesse espírito — o espírito da diplomacia do século XXI — que novas instituições estão se desenvolvendo. Entre elas, estão a crescente comunidade dos BRICS, organizações das maiores regiões, como a Organização de Cooperação de Xangai, e [organizações] eurasianas, bem como associações regionais menores, mas não menos importantes.”

“Todas essas novas estruturas são diferentes, mas compartilham uma qualidade crucial: não operam de forma hierárquica, subordinando-se a uma única autoridade suprema. Não são contra ninguém, são a favor de si mesmas.”

“Repito: o mundo moderno precisa de acordos, não da imposição da vontade de outrem. A hegemonia, qualquer que seja o tipo, simplesmente não consegue e não vai dar conta da escala das tarefas.”

“Tendências de bloco, deliberadamente programadas para o confronto, são, sem dúvida, agora um anacronismo que não serve a nenhum propósito.” Vemos, por exemplo, o zelo com que nossos vizinhos europeus tentam remendar e tapar as rachaduras que surgiram no edifício europeu. No entanto, eles querem superar as divisões e fortalecer a unidade instável da qual outrora se gabavam, não abordando eficazmente os problemas internos, mas inflando a imagem de um inimigo.

“Além disso, eles estão recriando um inimigo familiar, inventado há séculos: a Rússia. A maioria das pessoas na Europa não consegue compreender por que tem tanto medo da Rússia que, para enfrentá-la, precisa apertar cada vez mais o cinto e esquecer seus próprios interesses, simplesmente entregá-los e adotar políticas que são claramente prejudiciais a si mesmas.”

HISTERIA EM MASSA NA EUROPA

“Mas as elites governantes de uma Europa unida continuam a fomentar a histeria: a guerra com os russos está praticamente à porta. Elas repetem esse absurdo, esse mantra, repetidamente.”

“Sinceramente, às vezes observo o que eles dizem e penso: bem, eles não podem acreditar no que estão dizendo — que a Rússia está planejando atacar a OTAN. É impossível de acreditar. E, no entanto, eles convencem seu próprio povo.”

“Então, que tipo de pessoas são essas? Ou são incrivelmente incompetentes se realmente acreditam nisso, porque é impossível acreditar em tal absurdo, ou são simplesmente desonestos, porque eles próprios não acreditam, mas estão tentando convencer seus cidadãos disso. Que outras opções existem?”

“Francamente, sinto-me tentado a dizer: acalme-se, durma em paz e, finalmente, resolva os seus próprios problemas. Veja o que está acontecendo com a economia, a indústria, a cultura e a identidade europeias, com as enormes dívidas e a crescente crise dos sistemas de segurança social, a migração descontrolada, o aumento da violência. Observe como a Europa está deslizando para a periferia da competição global.”

“Estamos monitorando de perto a crescente militarização da Europa. Isso é só conversa fiada ou está na hora de tomarmos medidas de contenção? Ouvimos, e você sabe disso, a Alemanha, por exemplo, falando sobre como o exército alemão deveria voltar a ser o mais poderoso da Europa. Bem, estamos ouvindo com atenção, entendendo o que eles querem dizer.”

“Acredito que ninguém duvida que a resposta da Rússia não tardará a chegar. A resposta a essas ameaças, para dizer o mínimo, será muito convincente.”

“Nós mesmos nunca iniciamos um confronto militar. É insensato, desnecessário e simplesmente absurdo; desvia a atenção dos problemas e desafios reais. E, mais cedo ou mais tarde, as sociedades responsabilizarão seus líderes pelo fato de suas esperanças, aspirações e necessidades estarem sendo ignoradas por essas elites em seus países”, observou Putin.

NAPOLEÃO E HITLER

“Mas se alguém tiver o desejo de competir conosco na esfera militar — como dizem, o livre-arbítrio — que tente. A Rússia já provou inúmeras vezes: quando há uma ameaça à nossa segurança, à paz e à tranquilidade dos nossos cidadãos, à nossa soberania e à nossa própria condição de Estado, respondemos rapidamente. Não há necessidade de provocar. Nunca houve um caso em que não terminasse mal para o provocador. Não há necessidade de esperar exceções aqui: não haverá nenhuma.”

“Nossa história provou: a Rússia jamais demonstrará fraqueza ou indecisão. Que aqueles a quem atrapalhamos com nossa própria existência se lembrem disso. Aqueles que acalentam sonhos de nos infligir essa derrota estratégica. Aliás, aqueles que falaram ativamente sobre isso, como se diz, não estão mais entre nós, e estão bem longe. Onde estão essas figuras?”

SEGURANÇA INDIVISÍVEL

“Há tantos problemas objetivos no mundo, relacionados a fatores naturais, artificiais e sociais, que desperdiçar esforço e energia em contradições artificiais, muitas vezes inventadas, é inaceitável, um desperdício e simplesmente estúpido.”

“Nosso país defendeu e continua defendendo consistentemente o princípio da indivisibilidade da segurança. Tenho afirmado repetidamente: a segurança de alguns não pode ser garantida às custas de outros. Caso contrário, não há segurança alguma, não há segurança para ninguém. A euforia e a sede desenfreada de poder daqueles que se consideravam vencedores após a Guerra Fria, como tenho afirmado repetidamente, levaram ao desejo de impor noções unilaterais e subjetivas de segurança a todos.”

“Isso, de fato, tornou-se a verdadeira causa raiz não apenas do conflito ucraniano, mas de muitos outros conflitos agudos do século XX e da primeira década do século XXI. Como resultado, como alertamos, ninguém se sente seguro hoje. É hora de retornar, como dizem, às raízes e corrigir os erros cometidos.”

A HUMANIDADE PERANTE OS DESAFIOS

Mas a indivisibilidade da segurança hoje, em comparação com o final da década de 1980 e início da década de 1990, é um fenômeno ainda mais complexo. Não se trata mais apenas de uma questão de equilíbrio político-militar e de consideração de interesses mútuos.

A segurança da humanidade depende de sua capacidade de responder aos desafios impostos por desastres naturais, catástrofes provocadas pelo homem, desenvolvimento tecnológico e novos e rápidos processos sociais, demográficos e de informação.

A humanidade corre o risco de se tornar redundante em tal situação, uma mera observadora de processos que não pode mais controlar. O que é isso senão um desafio sistêmico para todos nós e uma oportunidade para trabalharmos juntos de forma construtiva?

“Não há respostas prontas aqui, mas acredito que para resolver problemas globais, devemos, em primeiro lugar, abordá-los sem preconceitos ideológicos, sem o pathos didático do “vou explicar tudo para você agora”. Em segundo lugar, é importante reconhecer que este é um empreendimento verdadeiramente comum e indivisível, que requer esforços conjuntos de todos os países e povos.”

“Cada cultura e civilização deve dar a sua contribuição, porque, repito, ninguém sabe a resposta certa sozinho. Ela só pode emergir por meio de uma exploração conjunta e construtiva, da unificação, e não da fragmentação, dos esforços e experiências nacionais de diferentes países.”

“Um mundo multipolar, como já disse hoje, é um retorno à diplomacia clássica, onde a resolução requer consideração e respeito mútuo, não coerção.”

“Que acabou sendo substituída pela diplomacia ocidental de monólogos, palestras intermináveis ​​e ordens. Em vez de resolver conflitos, interesses específicos começaram a ser priorizados, enquanto os interesses de todos os outros eram considerados indignos de atenção.”

“É de se admirar que, em vez de resolução, os conflitos só tenham se agravado, levando a conflitos armados sangrentos e catástrofes humanitárias? Agir dessa forma não resolverá nenhum problema. Há inúmeros exemplos disso nos últimos 30 anos.”

“Um deles é o conflito palestino-israelense, que a diplomacia unilateral ocidental, que ignora descaradamente a história, as tradições, a identidade e a cultura dos povos que ali vivem, não conseguiu resolver. Também não conseguiu estabilizar a situação no Oriente Médio em geral, que, pelo contrário, está se deteriorando rapidamente.”

A TRAGÉDIA DA UCRÂNIA

“Um exemplo terrível e uma tragédia ucraniana. Isso é doloroso para ucranianos e russos, para todos nós. As causas do conflito ucraniano são bem conhecidas e já as expressei inúmeras vezes.”

“Aqueles que encorajaram, incitaram, armaram a Ucrânia, incitaram-na contra a Rússia e, durante décadas, alimentaram o nacionalismo raivoso e o neonazismo no país — honestamente, perdoem-me a falta de educação — não se importam nem um pouco com os interesses russos, nem com os interesses genuínos do povo ucraniano. Eles não se importam com essas pessoas; veem-nas como material dispensável para os globalistas, expansionistas do Ocidente e seus lacaios em Kiev. Os resultados desse aventureirismo irresponsável são claros”.

“As coisas poderiam ter sido diferentes?De fato, isso poderia ter sido evitado se nosso trabalho com o então governo Biden tivesse sido estruturado de forma diferente. Se a Ucrânia não tivesse se transformado em um instrumento destrutivo nas mãos de outros, se o bloco do Atlântico Norte, que avança em direção às nossas fronteiras, não tivesse sido usado para esse propósito. Se a Ucrânia tivesse, em última análise, preservado sua independência, sua verdadeira soberania.”

“E outra pergunta: como resolver os problemas bilaterais russo-ucranianos, que foram consequência objetiva do colapso de um país enorme e de complexas transformações geopolíticas? Aliás, creio que a dissolução da União Soviética esteve ligada à postura da liderança russa da época, buscando evitar qualquer confronto ideológico na esperança de que agora, com o fim do comunismo, a ‘confraternização’ começasse. Não, nada disso. Acontece que há outros fatores em jogo aqui, interesses geopolíticos. E acontece que as diferenças ideológicas não têm nada a ver com isso.”

“O desejo de todos os países de garantir a segurança e o desenvolvimento é legítimo. Isso se aplica naturalmente à Ucrânia, à Rússia e a todos os nossos vizinhos. São os Estados regionais que devem ter a palavra final na criação de um sistema regional. E eles têm a melhor chance de concordar com um modelo de cooperação aceitável para todos, porque isso os afeta diretamente. É o seu interesse vital.”

GOLPE DE ESTADO EM KIEV

“Para outros países, esta situação na Ucrânia é apenas um pretexto e um meio para atingir os seus objetivos geopolíticos, expandir a sua zona de controle e até ganhar algum dinheiro com a guerra. Assim, “rastejaram” até nossa porta com a infraestrutura da OTAN, assistindo com indiferença durante anos à tragédia do Donbass, ao genocídio, essencialmente, e ao extermínio de russos nos nossos territórios ancestrais e históricos, que começou em 2014, após o sangrento golpe de Estado na Ucrânia”.

“Comportamento que contrasta com as ações da maioria dos países globais. Eles se recusam a tomar partido e se esforçam para genuinamente ajudar a estabelecer uma paz justa. Somos gratos a todos os países que se esforçaram sinceramente nos últimos anos para encontrar uma saída para esta situação. Estes são os nossos parceiros — os membros fundadores do BRICS: China, Índia, Brasil, África do Sul”.

“Entre eles estão a Bielorrússia e, incidentalmente, a Coreia do Norte. Entre eles estão nossos amigos nos mundos árabe e islâmico em geral, principalmente Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Catar, Egito, Turquia e Irã. Entre eles estão Sérvia, Hungria e Eslováquia na Europa. E muitos outros países na África e na América Latina.”

“Infelizmente, ainda não foi possível interromper os combates, mas a responsabilidade por isso não é da ‘maioria’ pelo fracasso em pará-los, mas da ‘minoria’, principalmente a Europa, que está constantemente intensificando o conflito.”

“No entanto, acredito que a boa vontade prevalecerá, e não há dúvida disso: acho que mudanças estão acontecendo na Ucrânia também, gradualmente; podemos ver isso. Não importa quanta lavagem cerebral façam, mudanças estão acontecendo na consciência pública e na vasta maioria dos países ao redor do mundo.

O NOVO: A MAIORIA GLOBAL

De fato, o fenômeno da maioria global é um novo desenvolvimento na vida internacional. Qual é a sua essência? É que a esmagadora maioria dos Estados do mundo está comprometida em perseguir seus próprios interesses civilizacionais, sendo o mais importante o seu próprio desenvolvimento equilibrado e progressivo. Isso pareceria natural; sempre foi assim. Mas, em épocas anteriores, a compreensão desses mesmos interesses era frequentemente distorcida por ambições doentias, egoísmo e pela influência da ideologia expansionista.”

“Hoje, a maioria dos países e povos, a maioria global, está ciente de seus verdadeiros interesses. Mas, mais importante, eles sentem a força e a confiança para defendê-los, apesar das influências externas. Eu acrescentaria que, ao promover e defender seus próprios interesses, eles estão prontos para trabalhar com parceiros — isto é, para transformar as relações internacionais, a diplomacia e a integração em uma fonte de crescimento, progresso e desenvolvimento. As relações dentro da maioria global são um protótipo de práticas políticas necessárias e eficazes em um mundo policêntrico.

“Isso significa pragmatismo e realismo, a rejeição da filosofia de “bloco”, a ausência de compromissos rígidos e uníssonos e modelos onde há parceiros “sênior” e “júnior”. Por fim, a capacidade de combinar interesses nem sempre alinhados, mas geralmente não contraditórios. A ausência de antagonismo torna-se o princípio fundamental.”

Uma nova onda de descolonização de fato está ganhando força, à medida que antigas colônias, além da condição de estados, adquirem soberania política, econômica, cultural e ideológica.

ONU 80 ANOS

“Neste contexto, outro aniversário é significativo. Acabamos de celebrar o 80º aniversário das Nações Unidas. Elas não são apenas a estrutura política mais representativa e universal do mundo, mas também um símbolo do espírito de cooperação, aliança e até mesmo fraternidade, que ajudou a unir esforços na primeira metade do século passado para combater o mal mais terrível da história — a implacável máquina de extermínio e escravidão.”

“E o papel decisivo nesta vitória compartilhada — temos orgulho disso — sobre o nazismo pertence, é claro, à União Soviética. Basta olhar para o número de vítimas entre todos os membros da coalizão anti-Hitler, e tudo ficará imediatamente claro, só isso.”

“A ONU, é claro, é um legado de vitória na Segunda Guerra Mundial, a experiência mais bem-sucedida até hoje na criação de uma organização internacional dentro da qual é possível resolver problemas globais urgentes. É comum ouvir hoje em dia que o sistema da ONU está paralisado e em crise. Mas também não há nada melhor do que a ONU. Isso também deve ser reconhecido.”

“O problema não é realmente a ONU, pois seu potencial é vasto. A verdadeira questão é como nós mesmos — essas nações unidas e, agora, infelizmente, divididas — usamos todas essas oportunidades”.

Inegavelmente, a ONU enfrenta desafios – desde 1945, o número de Estados-membros da ONU quase quadruplicou. O potencial inerente ao sistema da ONU está apenas começando a se revelar. Em outras palavras, os países da maioria global agora formam naturalmente uma maioria convincente nas Nações Unidas, o que significa que sua estrutura e órgãos de governo devem ser alinhados a esse fato, o que, aliás, estará muito mais alinhado aos princípios básicos da democracia.

“Não nego que atualmente não há unanimidade sobre como o mundo deve ser organizado ou em quais princípios ele deve se basear nos próximos anos e décadas. Entramos em um longo período de exploração, em grande parte tateando o caminho. Não se sabe quando um novo sistema sustentável e sua estrutura finalmente tomarão forma.”

Para Putin, a base sólida para percorrer tal caminho está, antes de tudo, nos valores que amadurecem nas culturas nacionais ao longo dos séculos. Cultura e história, normas éticas e religiosas, a influência da geografia e do espaço — estes são os elementos fundamentais que dão origem a civilizações, comunidades distintas construídas ao longo dos séculos e que definem a identidade, os valores e as tradições nacionais.

“Se todos seguirem esse caminho, concentrando-se em si mesmos e não se desperdiçando em ambições desnecessárias, será mais fácil encontrar um terreno comum com os outros.”

RESTAURAR AS RELAÇÕES RÚSSIA-EUA

“As atuais interações da Rússia com os Estados Unidos servem de exemplo. Nossos países, como é sabido, têm muitas divergências e nossas visões sobre muitas questões globais se chocam. A chave é como resolver essas divergências e até que ponto elas podem ser resolvidas pacificamente”, destacou Putin

A atual administração da Casa Branca – ele acrescentou – “declara seus interesses e desejos diretamente, creio que você concordará, às vezes sem rodeios, mas sem nenhuma hipocrisia desnecessária. É sempre melhor entender claramente o que a outra pessoa deseja e o que ela está tentando alcançar do que tentar adivinhar o verdadeiro significado em uma série de equívocos, ambiguidades e insinuações vagas”.

Para Putin, “o atual governo dos EUA é guiado principalmente pelos interesses do seu próprio país — como os entende. Acredito que esta seja uma abordagem racional”.

“Mas, desculpem-me, a Rússia também se reserva o direito de se guiar pelos nossos interesses nacionais, um dos quais, aliás, é o restabelecimento de relações plenas com os Estados Unidos. E, independentemente das diferenças, se nos tratarmos com respeito, a negociação — mesmo a mais dura e persistente — acabará por levar a um consenso, o que significa que, em última análise, soluções mutuamente aceitáveis ​​são possíveis”.

FUTURO COMPARTILHADO

A multipolaridade e o policentrismo são realidades de longo prazo. E tal ordem, tal modelo, no mundo moderno só é possível como resultado de um esforço compartilhado, um trabalho em que todos participam, enfatizou Putin.

“Vale a pena lembrar disso àqueles nostálgicos dos tempos coloniais, quando era comum dividir as nações entre iguais e mais iguais. A frase de Orwell é bem conhecida.”

“Nunca foi característico de nós — de nós, da Rússia — ter uma compreensão tão racista dos problemas; tal atitude em relação a outros povos, outras culturas, nunca foi característica da Rússia e nunca será.”

“Defendemos a diversidade, a polifonia e uma sinfonia de valores. O mundo, você certamente concordará, parece monótono quando é monótono. A Rússia teve um destino turbulento e difícil. A própria formação do Estado russo tem sido uma luta constante para superar enormes desafios históricos. A experiência russa é, em muitos aspectos, única, assim como o país que ela criou. Isso não implica exclusividade ou superioridade; é simplesmente uma afirmação da nossa singularidade.”

“Passamos por inúmeras convulsões, dando ao mundo o que pensar — ​​tanto negativas quanto positivas. Mas, graças à nossa formação histórica, estamos mais bem preparados para a situação global complexa, não linear e ambígua em que todos enfrentamos a perspectiva de viver.”

“Em meio a todos os altos e baixos, a Rússia provou uma coisa: ela foi, é e sempre será. Seu papel no mundo está mudando, entendemos isso, mas ela continua sendo uma força constante, sem a qual é difícil, e muitas vezes impossível, alcançar harmonia e equilíbrio.  Mas no mundo multipolar de hoje, essa harmonia, esse equilíbrio de que falei, só pode ser alcançado, é claro, por meio de um trabalho conjunto e comum. E garanto que a Rússia está pronta para esse trabalho”, concluiu Putin.

“TIGRE DE PAPEL”

Na fase de debates, Putin acrescentou algumas ponderações a partir de perguntas dos participantes do Fórum. Entre essas, a notícia de que os EUA poderiam entregar mísseis Tomahawk a Kiev. Observando que nenhuma arma maravilhosa irá mudar a atual situação na Ucrânia, o presidente russo advertiu sobre isso “destruir as relações com os EUA”.

A declaração de Trump sobre “tigre de papel”, também foi comentada a pedido do mediador. “‘Tigre de papel’… Eu já disse que todos esses anos a Rússia tem lutado não com as Forças Armadas Ucranianas, não com a Ucrânia, mas com praticamente todos os países da OTAN”, disse Putin.

“Mas se estamos em guerra com todo o bloco da OTAN, e estamos avançando, e é um “tigre de papel”, o que é a OTAN então? O que ela representa? Mas não importa. O mais importante para nós é ter confiança em nós mesmos, e nós temos confiança em nós mesmo”.

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