LUKAS BLUMRICH
WALTER NEVES
Instituto de Estudos Avançados-USP
É ditado popular que a única certeza da vida é a morte. Nessa sabedoria popular, no entanto, se esconde um significado mais profundo e instigante: a morte é talvez a única constante em todas as culturas e em todos os indivíduos de nossa linhagem. Mas qual a implicação disso? É simples e grandiosa: a relação dos indivíduos com o fenômeno é importante aspecto de comparação entre as diferentes espécies, épocas e culturas e pode nos ajudar a solucionar o que talvez seja o maior dilema da antropologia atual: o que define o humano e, consequentemente, o que é humanidade.
Podemos obter evidências diretas dessa relação por meio do conhecimento de o que cada espécie faz com aqueles que partiram. Apesar dos diversos tipos de atitudes relacionadas com a morte, as evidências mostram que, por enquanto, os humanos parecem ser o único tipo de animal que enterra seus mortos de forma ritualizada, e essa tradição remonta com segurança a no mínimo 130.000 anos.
Para tentar definir o que constitui a primeira evidência razoável de um enterro proposital, é necessário que tentemos traçar sua origem. As atenções se voltam, então, para os animais que possuem um senso de morte, em uma tentativa de localizar em quais momentos da árvore evolutiva essa relação mórbida surgiu e como ela se deu. Hoje, são conhecidos diversos grupos de animais que mostram comportamento peculiar em relação a parentes mortos, como chimpanzés, elefantes, alguns cetáceos, lobos e girafas. Membros da espécie Canis lupus, por exemplo, já foram observados enterrando filhotes mortos. As evidências, no entanto, são maiores nos três primeiros grupos.
Estudos sobre chimpanzés mostram que eles são capazes de demonstrar “compaixão” para com os doentes, feridos ou mortos e que constantemente avaliam as condições de seus companheiros, ajustando seu comportamento a elas. Esses animais chegam a apresentar sinais de “depressão clínica” com a perda de suas mães, conforme relatado na literatura, e não é incomum que mães carreguem seus filhotes jovens por alguns dias após a morte. Além das observações de alterações no comportamento, o stress causado pela morte pôde ser detectado com o aumento de curto prazo de gluco-corticóides nos parentes próximos do morto dessa espécie. Alguns autores afirmam que essas atitudes são muito similares a expressões de luto encontradas em grupos humanos atuais, ideia para a qual também convergem os estudos sobre a tanatologia dos chimpanzés. Eles podem, ainda, permanecer com um cadáver várias horas depois da morte, examinando-o e, finalizadas as interações, passam a evitar o local do ocorrido por dias.
Alguns especialistas, ao descreverem cuidadosamente o comportamento de cetáceos com outros membros da espécie mortos, sugerem que o “enlutamento” de mamíferos adultos na morte de indivíduos jovens é um comportamento comum de espécies altamente sociáveis e de vida longa. Nos diferentes cetáceos observados, totalizando sete espécies, vivendo em três oceanos diferentes, esse comportamento se traduziu em levar os corpos dos mortos à superfície da água, como é feito com recém nascidos para a obtenção de ar.
Os elefantes, conhecidos popularmente por compartilhar diversas “emoções” com os seres humanos, apresentam comportamentos complexos em relação à morte. Conforme relatado por vários pesquisadores, são capazes de apresentar empatia, de serem afetados com as mortes de outros elefantes (parentes ou não) e, mais impressionante ainda, de reconhecer e de se lembrar do local onde ocorreram. Elefantes visitam locais de morte, tocando os restos mortificados e demonstrando curiosidade sobre os restos esqueletais de outros membros da espécie, o que indica possivelmente o sentimento de “compaixão e consciência” sobre a morte. Existem relatos, inclusive, de elefantes que enterraram humanos com folhas após matá-los.
Infelizmente, as observações sobre os comportamentos mórbidos em animais não são extensas, e sugerem um grande potencial para pesquisas futuras. Informação essencial é que tais atitudes foram observadas em grupos totalmente isolados do contato com sociedades humanas. Já sendo constatados tais comportamentos em um pequeno número de estudos, pode-se pensar na possibilidade real de uma distribuição generalizada do “luto” e curiosidade sobre a morte no mundo animal, de modo que nossas relações com a morte podem ser muito mais antigas do que imaginamos. Aqui, no entanto, uma preocupação mais objetiva é saber quando esses comportamentos deixaram de ser puramente instintivos e passaram a envolver simbolização e a fazer parte do imaginário. Com o advento da ritualização propriamente dita, o enterro ganhou mais camadas de profundidade, e, associado a outros rituais, passou a fazer parte da vida cotidiana, como um meio de conexão entre dois mundos e de manutenção de memórias e tradições.
A pergunta que se coloca, portanto, é: desde quando passamos a enterrar nossos mortos de maneira ritualizada? Aqui cabe um parêntese. Sabemos hoje que a única característica que de fato nos aparta dos demais animais, aí incluídos os grandes símios, nossos parentes mais próximos, é o pensamento e o comportamento simbólico. Só a arqueologia pode responder tal questão. Quais são os indicadores arqueológicos que podem demonstrar comportamento simbólico em nossa linhagem evolutiva, a dos hominínios?
O primeiro deles é a descoberta em escavações arqueológicas de evidências materiais de estética e arte. Disso já tratamos em um artigo anterior publicado neste jornal em 20/04/2020. Resumidamente, pode-se dizer que as primeiras manifestações estéticas/artísticas datam de aproximadamente 130 mil anos e se deu pouco tempo depois do surgimento do Homo sapiens, o que ocorreu há cerca de 200 mil anos. As evidências mais antigas de arte referem-se a adornamento corporal, incluindo aí a pintura do corpo, bem como adereços corporais, como colares e pulseiras. Entretanto, pesquisas mais recentes vêm sugerindo, ainda que de forma questionável, que os neandertais também podem ter adornado seu corpo.
Já quanto a sepultamento ritualizado, as evidências arqueológicas mostram que esse comportamento deve ter começado, também, por volta de 130 mil anos, no seio da evolução de nossa espécie, coincidindo, portanto, com o mesmo marco temporal das manifestações artísticas. Ocorre que nesse caso esse comportamento parece ser exclusivamente uma propriedade do Homo sapiens.
Um dos autores deste artigo, Lukas Blumrich, efetuou, recentemente, uma vasta revisão crítica da literatura sobre possíveis sepultamentos neandertais. Concluiu que em mais de 20 sítios arqueológicos nos quais restos esqueletais neandertais foram encontrados, apenas 2 ou 3 podem, com certa licenciosidade poética, terem sido sepultados propositalmente por mãos humanas e não por processos naturais, como por exemplo, o colapso de blocos rochosos que se desprenderam do teto das cavernas que ocuparam. Mais importante, ainda, é que nesses poucos casos, não há a mais mínima evidência de ritualização. Portanto, é possível que os neandertais sepultassem seus mortos ocasionalmente, muito provavelmente de forma instintiva, como fazem alguns animais sobre os quais tratamos no início deste artigo, sem qualquer ligação com uma suposta crença numa vida post-mortem.
Portanto, tanto as evidências estéticas/artísticas como as de sepultamentos ritualizados convergem para o fato de que a existência de algo que podemos chamar de humanidade no planeta remete-se a uma temporalidade modesta de cerca de 130 mil anos (nossa linhagem evolutiva começou seu percurso exclusivo por volta de 7 milhões de anos) e que a fase final do processo de humanização se deu no seio da espécie Homo sapiens, à qual todos pertencemos.