
A jovem saudita Rahaf Mohammed al Qunun, que se trancou em quarto de hotel dentro do aeroporto de Bangkok para não ser deportada, recebeu a proteção da agência da ONU para os refugiados, a Acnur, anunciou a polícia de imigração tailandesa. A deportação fora pedida pelo regime saudita, que impõe às mulheres a tutela de uma figura masculina e que só recentemente aboliu a proibição de dirigir.
O caso de Rahaf chamou a atenção do mundo mais uma vez sobre a situação de profunda discriminação sobre as mulheres na ditadura feudal, após ela denunciar pelas redes sociais que temia ser morta pela própria família, e dito ter ficado reclusa “por meses” e submetida a abusos “físicos, emocionais e verbais”. No vídeo que viralizou, ela denunciara que os irmãos, a família “e a embaixada saudita no Kuwait” a estavam esperando e que iriam “matá-la”. E, depois do caso Khashoggi, poucos acharam que a jovem poderia estar exagerando sobre sua denúncia de que poderia ser morta.
De acordo com o estatuto da tutela, as mulheres sauditas dependem da permissão de um parente do sexo masculino para viajar, obter um passaporte, casar e até mesmo deixar um abrigo para vítimas de abuso. A “desobediência” é passível de punição com prisão.
A justificativa é que se trata de um preceito de origem divina, depreendido de um verso do Alcorão: “os homens são os protetores e provedores das mulheres, porque Deus deu a uns mais [força] do que a outros, e porque eles as sustentam com seus recursos”.
Segundo Rahaf , sob o regime saudita ela “não podia estudar nem trabalhar” e fugiu durante uma visita da família ao Kuwait, onde as restrições são menos drásticas. “Quero me libertar, estudar e trabalhar no que quiser”, acrescentou, relatando a cólera do pai após ter compartilhado sua história e fotos nas redes sociais.
A ideia inicial da jovem era pedir asilo à Austrália. Após a proteção da Acnur, Rahaf também recebeu de volta seu passaporte. Segundo o porta-voz tailandês Surachate Hakparn, ela deixou o aeroporto na segunda-feira (7) e deverá receber uma decisão da Acnur sobre seu caso “nos próximos dias”.
Hakparn asseverou que Rahaf não será devolvida contra a sua vontade, pois a Tailândia “é a terra dos sorrisos e não vamos mandar ninguém para a morte”. A Human Rights Watch revelou que a gota d’água para a fuga da jovem foi a imposição de um casamento arranjado.
O estatuto da tutela masculina vem sendo mantido, apesar do regime saudita haver assinado há 18 anos a Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Quando muito, Riad fez concessões como a liberação nas escolas públicas da prática de esportes pelas meninas ou a presença feminina nos estádios.
Muitas vezes, a própria família se encarrega da repressão às que se dedicam a atuar pela revogação do nefasto estatuto da tutela. Caso de Miriam al Otaibi, que passou três meses na prisão em 2017, após ser acusada de “desobediência” pelo pai e ter fugido de casa. Samar Badawi ficou presa por sete meses em 2010 por ordem de um juiz, depois de ter sido abusada fisicamente pelo próprio pai e se refugiado em um abrigo. Caso semelhante ao de Rahaf ocorreu em 2017, quando Dina Ali Lasloom, que tentava escapar de um casamento forçado, foi deportada de volta a Riad, ao fazer conexão nas Filipinas a caminho da Austrália.
Em 2016, a campanha “Mulheres Sauditas Querem Abolir o Sistema de Tutela” foi coroada com uma petição com 14 mil assinaturas, entregue à Corte Real. Documento que foi considerado pela principal autoridade religiosa saudita um “crime contra a religião do Islã e uma ameaça existencial à sociedade saudita”. Mas que acabou levando o rei Salman a baixar um decreto atenuando a tutela, ao possibilitar o acesso das mulheres a serviços públicos sem precisar do ‘sim’ do tutor. Quase ao mesmo tempo em que afinal autorizava as mulheres ao volante, a ditadura feudal saudita mandou prender dezenas de ativistas pelos direitos femininos e pela abolição da tutela, com acusações como “contatos suspeitos” com estrangeiros e “traição”.