Procuradora-geral denuncia impunidade
STF vai concluir no dia 2 votação para restringir foro. Placar já está 8×0
A procuradora geral da República, Raquel Dodge, disse algo importante sobre o apodrecimento da oligarquia política, no Brasil:
“Não há qualquer sentido na existência do foro privilegiado. As consequências têm sido um sistema em que há apropriação de recursos públicos, corrupção generalizada e enraizada nas nossas estruturas de poder. Um dos elementos que, ao longo dos anos, vinha mantendo, e permitiu que a corrupção se espraiasse em todo o Brasil, e se tornasse sistêmica, é certamente o sistema do foro privilegiado. Não só porque define lugar especial para esses réus, mas também porque alimenta a ideia de que o juiz federal, de primeira instância, não tem credibilidade suficiente para julgar essas pessoas.”
Como notou a procuradora, os juízes de primeira instância, que assomam ao cargo por concurso público, tendem a ser mais “imunes” a influências políticas deletérias. Ela apresentou dois exemplos, presentes ao mesmo seminário, um evento promovido por alunos e ex-alunos brasileiros da escola de Direito da Universidade de Harvard, nos EUA: os juízes Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, e Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro – ambos responsáveis por julgar processos advindos da Operação Lava Jato e/ou operações derivadas dela.
“É preciso caminhar para o sistema oposto”, disse Raquel Dodge, depois de apontar que, tanto o foro privilegiado – que impede governantes e parlamentares de serem investigados e julgados na instância inicial da Justiça – quanto a tentativa de fazer com que os condenados só comecem a cumprir pena após o esgotamento de todos os recursos, são tentativas de tornar inócuo o julgamento na primeira instância da Justiça: afinal, para que serviria um juiz de primeira instância, como Sérgio Moro, se os ladrões que ele condena jamais fossem para a cadeia?
“Nos acostumamos a um modelo em que a autoridade do juiz e do tribunal de segunda instância era muito fragilizada em um sistema de quatro instâncias. Ficava-se sempre aguardando a resposta de cortes superiores”, disse a procuradora.
Com a mudança do STF, em 2016, restaurando o cumprimento da pena – inclusive a prisão – após a condenação em segunda instância, “esse sistema tem restabelecido o que em qualquer país é muito importante, a autoridade do Judiciário desde a primeira instância. É um fator que tem sido compreendido pela população como relevante e acho que é muito essencial. Cada juiz precisa ter a autoridade da sua própria decisão garantida”.
Existe algo, em tudo isso, ainda a elucidar: como, ao mesmo tempo em que se instalava no país um regime de corrupção, em que partidos assaltavam a Petrobrás e os fundos de pensão dos trabalhadores das estatais, mudou-se, em 2009, a jurisprudência da Justiça, impedindo a prisão, mesmo após a condenação em primeira e em segunda instância?
Esse sistema de impunidade, em que ninguém, desde que tivesse dinheiro para infindáveis recursos, era preso, durou de 2009 até 2016, quando, por iniciativa do saudoso ministro Teori Zavascky, do STF, a prisão após a condenação em segunda instância – sempre regra na história do país – foi restabelecida.
Terá sido uma coincidência que esse “sistema penal de faz-de-conta” – na expressão do ministro Joaquim Barbosa – tenha sido imposto ao tempo em que se instalava (a partir de 2004) o esquema de pilhagem contra a Petrobrás e os fundos de pensão?
Não estamos sugerindo que os ministros do STF que, em 2009, votaram a favor da proibição à prisão de condenados em tribunais de segunda instância (Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais) fizessem parte, monetariamente, do esquema corrupto.
O problema é que leis, doutrinas e jurisprudências – isto é, interpretações da lei – dependem do contexto político em que são feitas, como lembrava o grande jurista brasileiro Nelson Hungria.
O que estamos dizendo, portanto, é que a maioria do STF, nessa época, cedeu à “ideologia” secretada pela oligarquia política, hegemonizada, naquele momento, pelo PT. Pois nada é tão coerente com os atos de Lula, Temer, Cunha, Vaccari, Geddel, Palocci e outros cartolas da corrupção, quanto a impunidade garantida por uma jurisprudência do STF – contra toda a história do Direito brasileiro.
Trata-se de um infecção tão profunda do establishment político que, agora, ainda estão tentando fazer com que o país regrida a essa terra sem lei (pois lei que não é aplicada, não existe).
Da mesma forma, o foro privilegiado. Como disse o juiz Moro, presente ao mesmo evento que Raquel Dodge, o foro privilegiado tornou-se um “escudo” dos ladrões contra a própria coletividade que assaltaram – isto é, contra a polícia e a Justiça.
Em sua intervenção, o juiz Marcelo Bretas também apontou a necessidade se “reduzir” a extensão do foro privilegiado para combater a impunidade. Bretas frisou, também, que admitir a prisão de um condenado apenas depois que todos os recursos tenham se esgotado, leva a que se espere por “décadas até a execução da pena. Basta que [o condenado] tenha condições financeiras de custear todos os recursos, e são dezenas que estão à disposição”.
“Não é concebível que um juiz jante com um réu e o absolva no dia seguinte – ou o condene, não importa. Ou julgue parentes, sócios e amigos”, disse Bretas, que condenou, também, “a relação promíscua entre membros do poder empresarial e Poder Judiciário”.
Bretas acrescentou que falava de casos “hipotéticos”. Portanto, não falava de Gilmar Mendes, acostumado a jantar com Temer – apesar das denúncias da Procuradoria Geral da República contra este. Nem do caso Barata, em que Mendes concedeu vários “habeas corpus” a Jacob Barata Filho, chefe da máfia dos ônibus do Rio de Janeiro. Gilmar Mendes foi padrinho de casamento da filha de Barata Filho.
“A sociedade civil está pressionando as instituições e temos que corresponder à sociedade civil”, disse o ministro Luís Roberto Barroso. “Provavelmente nenhum país do mundo teve a coragem de expor um problema maior como esse para enfrentá-lo. O que é novo no Brasil é a reação da sociedade civil. As pessoas não estão mais aceitando o que era inaceitável”.
“Há pessoas representantes da velha ordem que querem manter as coisas como sempre foram nas altas esferas do governo”, disse Barroso. “É uma batalha contínua. As pessoas não querem ser punidas pelas várias coisas erradas que fizeram por tantos anos, porque tinham certeza de que não seriam punidas”.
O ministro se disse otimista: “Estou muito convencido que nada será como antes no Brasil. Estamos na iminência de uma profunda revolução pacífica no Brasil”.
“Não devemos pensar que vamos mudar o Brasil com leis criminais e punição”, acrescentando que é preciso uma mudança no sistema eleitoral: “o Brasil precisa desesperadamente de uma reforma política para reduzir os custos eleitorais. A eleição para a Câmara dos Deputados custa quatro a cinco vezes a quantidade que o deputado poderá receber legitimamente nos quatro anos como parlamentar”.
CARLOS LOPES