Nos últimos tempos, jamais se falou tanto no “sistema acusatório”, instituído pela Constituição de 1988 na Justiça brasileira.
O motivo, obviamente, são as mensagens, reveladas pelo site The Intercept Brasil, entre o então juiz Sérgio Moro, atual ministro da Justiça, e o procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Operação Lava Jato.
O que significa “sistema acusatório”?
Significa, principalmente, que aquele que acusa não pode ser o mesmo que julga.
Como escreveu a procuradora geral da República, Raquel Dodge, “o sistema acusatório é o oposto do sistema inquisitorial, que se distingue exatamente pela concentração das funções de acusar e julgar em um só agente estatal, o juiz inquisidor” (cf. Mandado de Segurança nº 36422, LJ/PGR nº 744/2019, 31/07/2019, p. 9, grifos nossos).
Além disso, “para que o princípio central que anima o sistema acusatório seja realmente alcançado (garantir julgamentos por juízes imparciais e neutros), não basta que o juiz que julgue não seja o mesmo que acuse, é necessário também que o juiz que julgue não seja o mesmo que investigue os fatos que, a seguir, constarão da acusação” (idem, p. 10, grifo nosso).
O problema não é que somente Moro transgrediu esse sistema, ao oferecer uma testemunha – oferta, por sorte, não consumada – a Dallagnol.
A instalação do inquérito nº 4781 (o chamado inquérito das fake news) pelo atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, inclusive com a nomeação de um relator – o ministro Alexandre de Moraes – é uma transgressão do sistema acusatório da Constituição de 1988 tão ou mais grave.
Como disse a procuradora geral da República, “a investigação por Ministro do STF previamente escolhido, de fatos genéricos, de modo sigiloso, sem a participação do Ministério Público, é prática compatível com o sistema inquisitorial, mas não com o sistema acusatório” (idem, p. 23).
Esse inquérito está servindo de pretexto até para aquilo que nada tem a ver com ele – como a decisão de seu relator, Alexandre de Moraes de suspender as investigações da Receita Federal em relação a 133 contribuintes, inclusive afastando do serviço público dois auditores fiscais.
Ou seja, “decisões exaradas de ofício sobre temas que não constam do objeto daquele procedimento [o inquérito nº 4781]” (v. nota dos membros da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão da PGR, 02/08/2019).
O fato de que a esposa de Dias Toffoli e o ministro Gilmar Mendes estavam entre os 133 investigados, não faz dessa investigação uma “fake news” – portanto, ela não dizia respeito ao inquérito nº 4781, do qual Moraes foi nomeado, ilegalmente, relator.
Essa decisão saiu no mesmo dia em que a Folha de S. Paulo publicou mensagens, obtidas pelo site The Intercept Brasil, em que o destrambelhado (para dizer o mínimo) procurador Dallagnol pede informações sobre Dias Toffoli, algo que ele sabia totalmente ilegal – ele mesmo diz, em uma das mensagens, que a prerrogativa de investigar ministros do STF é da Procuradoria Geral da República, mas, ao lado disso, colocou a abreviatura “rs”, ou seja, “risos” (v. HP 02/08/2019, STF foi investigado ilegalmente por Deltan Dallagnol).
Porém, os delitos e a estupidez de Dallagnol não podem apagar que a decisão do ministro Alexandre de Moraes nada tem a ver com o inquérito das fake news, ele mesmo um absurdo jurídico (v. HP 19/04/2019, Inquérito de Dias Toffoli fere prestígio do Supremo).
Em mandado de segurança junto ao STF, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) resume as ilegalidades desse inquérito em oito pontos. Aqui, mencionaremos os quatro que nos parecem mais importantes:
1) o inquérito nº 4781 é inconstitucional, pois somente o Ministério Público, de acordo com a Constituição (texto abaixo), pode requisitar a instauração de um inquérito policial e somente a polícia, evidentemente, pode abrir um inquérito policial; os juízes – inclusive os ministros do STF – não podem fazê-lo;
[Art. 129 da Constituição. São funções institucionais do Ministério Público: VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;]
2) o inquérito nº 4781 é uma violação ao sistema acusatório da Constituição de 1988, porque as funções de investigação, acusação e julgamento estão reunidas em um só órgão, o STF, sem qualquer participação do Ministério Público Federal;
3) o inquérito nº 4781 viola o Princípio do Juiz Natural, já que o relator foi nomeado pelo presidente do STF, ao invés do inquérito ser distribuído – ou seja, sorteado entre os membros do Tribunal – como determinam os artigos 37, caput, e 5º, inciso XXXVII, ambos da Constituição, além do artigo 67 do Regimento Interno do STF;
4) o inquérito nº 4781 viola diretamente o artigo 129, I, da Constituição, pois não existe ação pública sem que seja promovida pelo Ministério Público.
[Art. 129 da Constituição. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;]
Somente para exemplificar, na prática, o que está acontecendo:
“No caso do Inquérito nº 4781, repita-se, algumas medidas cautelares [busca e apreensão de computadores, “tablets”, celulares e outros dispositivos eletrônicos; bloqueio de contas em redes sociais] foram determinadas pelo Ministro Relator sem qualquer participação da PGR [Procuradoria Geral da República].
“Isso significa que o próprio Ministro Relator avaliou a pertinência dessas medidas para investigação. Em seguida, tal qual determina o art. 74 do RISTF [Regimento Interno do STF], esse mesmo Ministro julgará o resultado da investigação, materializado na peça acusatória.
“Aqui, um agravante: além de investigador e julgador, o Ministro Relator do Inquérito 4781 é vítima dos fatos investigados – que seriam ofensivos à ‘honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares’.
“Não há como imaginar situação mais comprometedora da imparcialidade e neutralidade dos julgadores – princípios constitucionais que inspiram o sistema acusatório” (cf. Mandado de Segurança nº 36422, LJ/PGR nº 744/2019, 31/07/2019, p. 15, grifos nossos).
O VERDADEIRO KAFKA
A gestão de Toffoli, na presidência do STF, será, ao que tudo indica, um equivalente da gestão Bolsonaro no Executivo.
Toffoli é, evidentemente, um despreparado para o cargo, com uma carreira em que houve um único cliente digno de registro, o PT.
Não escreveu obras jurídicas que o recomendem, sua atividade docente beira o ridículo, se é que não se precipitou nele (para o leitor que quiser conferir, recomendamos o próprio currículo oficial de Toffoli, no site do STF), e sua participação nas sessões do STF é de uma mediocridade abissal.
A instalação do inquérito nº 4781; ou a decisão de, para beneficiar um dos filhos de Bolsonaro, suspender todas as investigações do país que têm por base os dados suspeitos detectados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) – uma franca ilegalidade; ou o “pacto” que quis promover com Bolsonaro, são apenas alguns exemplos da capacidade de Toffoli como presidente do STF.
Há mais uma questão, além das acima resumidas.
Esta tem relação com a obra do grande escritor tcheco, de língua alemã, Franz Kafka – aquele que o ministro da Educação de Bolsonaro acha que é um prato árabe –, autor do torturante romance “O Processo”.
A diferença é que, nesse romance, somente um indivíduo, Josef K., é submetido a uma investigação e processo sem objeto.
No caso do inquérito inventado por Toffoli, aponta a procuradora geral da República, Raquel Dodge, há um atentado ao Estado Democrático de Direito, estabelecido pela Constituição de 1988:
“Não pode haver investigação penal prospectiva, instaurada sem objeto específico, ocorrido em data e lugar indeterminados.
“No caso em exame [o inquérito nº 4781], investiga-se ‘a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares’.
“Não se sabe em que consistem essas ‘notícias’ e ‘ameaças’; nem de onde elas partiram; nem quem as perpetrou; nem quando isso ocorreu.
“(…) O que não pode ocorrer (…) é a instauração de investigações sem que se tenha um mínimo de elementos de prova quanto a uma prática delitiva específica, na expectativa de que, no seu curso, encontre-se algum fato criminoso.”
E ela continua, com a descrição das consequências:
“… a circunstância de que o Inquérito 4781 investiga não um fato específico (…) acaba conferindo ao STF o poder de investigar toda e qualquer pessoa que pratique tais condutas e ofenda a ‘honra’ dos Ministros e de suas famílias, o que, aliás, será avaliado pelos próprios Ministros, vítimas dos supostos ilícitos.
“Tal circunstância coloca, de certo modo, um número indeterminado de pessoas na condição de permanente alvo potencial da aludida investigação. A situação de insegurança social que daí decorre é patente.”
De tal forma, acrescentamos nós, que até investigações da Receita são suspensas – e auditores fiscais são punidos sem que exista processo contra eles – em um inquérito cujo objetivo é investigar supostas “fake news”.
Neste sentido, a procuradora está certa ao escrever:
“… a Constituição de 1988, ao estabelecer o primado da democracia, também instituiu o sistema penal acusatório e um conjunto de garantias individuais necessárias para assegurar um julgamento penal justo, como o juiz natural, a anterioridade da lei penal, o contraditório, a ampla defesa, o habeas corpus, e o devido processo legal.
“A expressão máxima – mas não única – do sistema penal acusatório está contida no art. 129-I da Constituição, que separa nítida e inexoravelmente as funções de acusar e julgar, até então passíveis de serem acumuladas pelo juiz, ao atribuir privativamente ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública.
“Não é pouco. A Constituição promoveu uma transformação radical de sistemas, instaurando uma nova era penal no Brasil, que tem sido responsável pela transformação do sistema de justiça, tornando-o mais confiável e fazendo a lei valer para todos, de modo justo.”
A última parte talvez seja demasiado otimista. Mas aqueles que querem transgredir esse sistema – seja Bolsonaro ou Toffoli – não o fazem para torná-lo mais justo.
C.L.
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