A artista plástica, escritora, professora e diretora de teatro e grupos culturais em Embu das Artes (SP), Raquel Solano Trindade, foi uma das grandes defensoras e divulgadoras da cultura negra brasileira. Além disso, foi uma grande lutadora pela igualdade e contra a discriminação racial. Ela nasceu em Pernambuco, veio para São Paulo em 1955 e se radicou em Embu das Artes desde 1961.
O anúncio do seu falecimento ocorrido na madrugada do domingo (15), aos 81 anos, entristeceu uma legião de amigos, alunos, seguidores e admiradores, além de familiares. Todos lembraram o papel multicultural e incentivador da artista.
“Raquel deixa um rico e extenso legado, tanto na preservação, enriquecimento e divulgação cultural, como na sua luta contra o racismo”, disse Alfredo Oliveira, presidente do Congresso Nacional Afro-Brasileiro (CNAB). “Nossa homenagem a ela, grande amiga da nossa entidade. Raquel Trindade, presente!”
Para Ubiraci Dantas, Bira, presidente da Central Geral dos Trabalhadores (CGTB) e vice-presidente do CNAB, raquel é “gente da maior qualidade”. A sua luta, a de Solano Trindade e do professor Eduardo continua firme e forte”.
Raquel era filha do grande poeta Solano Trindade (poeta, pintor, teatrólogo, ator e político), um gigante pela afirmação e superação do preconceito contra o negro. Sua mãe foi a coreógrafa e terapeuta Maria Margarida Trindade.
“Nem todos tiveram a sorte de ter pais como eu tive, que sentavam comigo e falavam que eu tivesse orgulho de ser negra. E que nem todo branco é racista também, fazer o racismo ao contrário. Tem muito branco que é consciente [da igualdade racial], amigo do negro. Depois, o combate ao racismo se faz com educação, para conhecer a sua cultura, sua história, para que saiba que [a igualdade ou desigualdade racial] depende do meio em que é criado, e infelizmente a maioria dos negros está em um meio muito degradante”, disse Raquel em entrevista (2014) para o portal Verbo on Line, do Embu.
O CNAB lembra que a professora e multiartista participou com alegria contagiante do congresso de fundação da entidade, ocorrido em 1995, onde ela fez um dos discursos mais aplaudidos e recitou o poema do seu pai “Tem gente com fome”. Esteve presente também na homenagem (junho de 2014) ao fundador do CNAB, professor Eduardo de Oliveira, falecido em 2012, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, promovida pelo Sindicato dos Escritores. Outra presença marcante foi no espetáculo “Se tem gente com fome, DAI DE COMER!”, em homenagem ao seu pai, que lotou o Cine-Teatro Denoy de Oliveira, no dia 10 de setembro de 2016. O Evento foi organizado pela UMES (União Municipal dos Estudantes Secundaristas), grupo Ô DE CASA e CasIlêOca e idealizado por Fabiano Pavio, professor de capoeira e coordenador do projeto Capoeira da UMES.
Assessor jurídico da Coordenadoria de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial de Jundiaí (SP, o professor Ademir Silva, lamentou a morte de Raquel. “Eu tive a oportunidade de por inúmeras vezes compartilhar da sabedoria e sensibilidade da artista, ativista e professora Raquel Trindade, com destaque para a participação dela como professora convidada da Faculdade de Artes da Universidade de Campinas (Unicamp), por emérito saber”.
Na mesma entrevista ao portal do Embu, Raquel lembrou fatos que marcaram sua vida, como quando foi lecionar na Unicamp. “O problema lá não foi racial. Tinha sido convidada pelo Antônio Nóbrega para [o departamento] dança, para fazer o candomblé, a dança dos orixás. O [então diretor] Celso Nunes gostou e me convidou para artes cênicas, e passei a dar [aula de] folclore, teatro negro no Brasil e sincretismo religioso na graduação, e fez muito sucesso. Eu não tenho nível universitário, tenho segundo clássico [ensino médio apurado]. Entrei como técnico-didata e passei a professor-adjunto, e muitos professores não gostaram, eles todos com mestrado, doutorado, e eu sem “ado” nenhum, criou-se um clima. Um professor, a quem ensinei tudo de folclore, depois de estar já dez anos lá, na hora de fazermos um relatório, pôs tudo como se fosse trabalho dele, o diretor na época deixou cair os papéis, e vi que ele tinha me tirado do meu trabalho. Fiquei muito triste. Eu estava com câncer, e muito desgostosa, pedi demissão”, contou.
Outros trechos:
“O negro em geral sofre tudo que é preconceito. São muitas histórias, mas uma discriminação [entre as mais sérias] que sofri foi aqui no Embu mesmo, na época em que Geraldo Cruz [prefeito do PT, em 2001] me convidou para trabalhar – junto com o Assis, o [artista plástico] Gileno Bahia – no Turismo, que tinha como secretário o Jean Gillon [morto em 2007, aos 87 anos]. Geraldo tinha me pedido para reunir o pessoal e fazer um Carnaval bonito, e ele [secretário] virou para mim e disse: ‘Vou botar uma mesinha na rua para você atender essa gentinha lá fora’. Eu falei: “Você é louco, isso é apartheid, não vou fazer isso!” Quando ele entrou [na secretaria], eu o vi comentar com uma pessoa: “Negro não pensa, não tem cérebro, e não faz arte, faz macaquice”. Ele era romeno, até achei estranho um judeu ter preconceito racial, mas acontece. Procurei o Geraldo, que na hora não falou nada. Ele fez uma reunião com todo o Turismo e falou: “Raquel, essa reunião é para você pedir desculpas para o Jean Gillon”. Eu falei: “Para esse ‘fascistão’ vou pedir desculpa? Você não me conhece, prefiro pedir demissão e derrubar ele”. Foi o que eu fiz”.
(…)
“Aqui no centro de Embu, quando entrava em um restaurante, uma mulher começou a gritar: “Você roubou a minha bolsa!” Faz um ano. Falei: “Você é louca, estou entrando agora, como eu roubei a sua bolsa?” Todo mundo olhando. A dona do restaurante, que me conhece, falou: “Impossível, a Raquel não faria isso”. A garçonete achou a bolsa debaixo da mesa. Eu dei nela, eu queria que chamassem a polícia, como ninguém chamou, dei um tapa nela para valer. É uma loucura, a discriminação é tão forte que não pensam”.
(…)
“Ah, é muito bom. A história da minha família vem desde os meus avós. Eu tinha um avô maravilhoso, Manoel Abílio Pompilho da Trindade, em Pernambuco. Ele chegava do trabalho, pegava o violão, botava os netos ao redor e contava histórias africanas, histórias sem fim. Minha avó paterna, Emerenciana de Jesus Trindade, era uma mistura de índio e negro. A materna, Damázia Maria do Nascimento, dançava maracatus. Meu pai, poeta, ator, teatrólogo, pintor, Francisco Solano Trindade. Além da arte, ele conversava – eu criança – sobre política, me levava para assistir a espetáculos, ao [Teatro] Municipal. Ele me dizia: “Você tem que conhecer cultura negra e cultura branca, para ter conhecimento geral”. Minha mãe, Maria Margarida da Trindade, que era terapeuta ocupacional e trabalhou com a doutora Nise da Silveira [psiquiatra] no Museu da Imagem do Inconsciente [no Rio], me ensinou todas as danças, com exceção da do candomblé, ela era [cristã] presbiteriana – papai era comunista, em casa era sempre a Bíblia e o “Capital”, de Karl Marx, junto. Ela dizia [sobre as figuras bíblicas] que Míria tocava pandeiro, Davi, harpa, Salomão fazia poesia. Pôde me ensinar maracatu, coco, lundu, jongo, bumba-meu-boi, tudo foi ela que me ensinou. E me ensinou também a não beber, não fumar, não falar palavrão, eu tive uma orientação muito forte, e tudo isso passei para os meus filhos e netos – são três filhos e dez netos, e já tenho dois bisnetos, e mais um outro está a caminho”.
Raquel fundou o Teatro Popular Solano Trindade (TPST) em 1975, no Embu das Artes. Lá também fundou a Nação Kambinda de Maracatu. Ela realizou sua primeira exposição individual como pintora em 1966. No mesmo ano Pietro Maria Bardi adquiriu uma obra sua. Com os escultores Ranulfo Lira e Chico Rosa criou o movimento das Artes da Praça da República, em São Paulo. Em 2012 foi condecorada com a Ordem do Mérito Cultural no grau de comendadora. Escreveu três livros.
Vitimação é o próprio preconceito… P/t inventou esta “idiotaelogia”… Diminuir as pessoas. “ARTE: a finalidade e dar corpo à essência secreta das coisas, não é copiar sua aparência. Na Arte é preciso coragem para ser diferente e muita competência para fazer a diferença. A Arte é o lugar da liberdade perfeita. “
Tudo bem, leitora. Mas, independente de qualquer vitimização, o racismo existe.