Há seis meses na República Popular de Donetsk, o jornalista e analista chileno Alejandro Kirk, enviado especial da Telesul e da HispanTv, denuncia os crimes perpetrados “dia e noite, constantemente, contra a população civil” por parte do regime ucraniano de Zelensky, com total apoio dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em entrevista exclusiva, Alejandro condena o papel propagandístico e de desinformação jogado pela grande mídia ocidental neste conflito. Nesta terça-feira (27) termina o referendo em que os povos das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, além das regiões de Zaporozhia e Kherson estão se pronunciando de forma amplamente majoritária pela sua independência e integração à Rússia
ANDRÉS SAL.LARI (Coordenada Sul) e LEONARDO WEXELL SEVERO (Hora do Povo)
Fale um pouco sobre a sua cobertura, direto da zona de conflito entre a Ucrânia e a Rússia.
Estou aqui há seis meses. Chegamos no dia 24 de março, um mês após o início da operação militar especial russa. Ainda era inverno, estava nevando e assim que chegamos fomos a uma localidade completamente destruída. Este foi o primeiro impacto que tivemos: a devastação da cidade. Logo foi o contato com o famoso hospital que haviam dito que tinham disparado para matar os doentes. Aí começamos a nos inteirar não só como se distorce, mas se invisibiliza a verdade.
Na região do Donbass existem duas repúblicas: a de Lugansk e Donetsk, onde estou, que declararam sua independência depois do golpe de Estado neonazista produzido na famosa Praça Maidan. Então, quando falas aqui em Donetsk da guerra, eles não falam de fevereiro de 2022, falam de 2014 quando os ucranianos começaram a bombardear a cidade e sua população de maneira constante e permanente, dia e noite.
Em Donetsk, onde estou, declararam a independência depois do golpe de Estado neonazista produzido na famosa Praça Maidan. Quando falas da guerra por aqui, eles não falam sobre fevereiro de 2022, mas de 2014 quando os ucranianos começaram a bombardear a cidade e sua população de maneira constante e permanente, dia e noite.
Estou numa das Repúblicas Independentes, que aqui chamam Repúblicas Populares porque foram fruto de um levante de autodefesa depois que em Odessa, na Casa dos Sindicatos, em todos estes lugares, ocorreram revoltas contra a supressão da cultura russa.
Estas repúblicas têm no total cerca de 50 mil quilômetros quadrados e uma população de cinco milhões de habitantes, centros industriais muito importantes da Ucrânia como metalurgia, de fabricação de máquinas e ferramentas, do calçado, uma base industrial que chegou a produzir um terço do Produto Interno Bruto (PIB) do país, uma zona muito rica também. Nestes meses o primeiro que vi foi que nos enganaram durante oito anos porque a mídia sempre falava de escaramuças que haviam ocorrido entre ultranacionalistas ucranianos e as forças populares daqui. Isso não é verdade, não são escaramuças, mas combates permanentes, são ataques, bombardeios contra a população civil, que não cessam nunca.
Estamos recebendo denúncias de perseguições e ameaças do governo ucraniano aos observadores internacionais do referendo. Como está a participação da população no processo eleitoral?
As perseguições e ameaças formam parte da metodologia do regime de Kiev. Se sentem respaldados e, consequentemente, com capacidade de ameaçar a países inteiros, como ocorreu com o Irã. Há uma lista de milhares de pessoas que eles consideram inimigas da Ucrânia e que devem morrer. E já foram assassinadas várias. A última foi Daria Dugin, filha do filósofo Alexander Dugin, cuja foto apareceu na página Myrotvorets (Pacificadores) tachada como “liquidada”. Esta lista não é oficial, porém eles a enviam a todos os aeroportos do mundo que os apoiam. Há mais de 350 jornalistas, e eu estou entre eles, considerados como agentes da propaganda russa.
Os que participem do processo eleitoral são ameaçados com 15 anos de prisão. Também castigam a quem providencie ou receba ajuda humanitária nos territórios libertados. E digo conscientemente a palavra libertados agora, porque ao chegar aqui usava termos menos categóricos. Porém, depois de passar seis meses percorrendo todo o Donbass e falando com as pessoas comuns, após escutar suas histórias, não há outra palavra para definir em que consiste a chegada dos soldados russos ou das guerrilhas das repúblicas.
Ao chegar a sua última jornada nesta segunda-feira (26) [o processo eleitoral se encerra nesta terça-feira], conforme o cômputo oficial, a média da participação eleitoral ultrapassou os 90%, como acontece aqui na República Popular de Donetsk, mais de 1,5 milhão de pessoas. Este é um dado muito relevante porque Donetsk é a zona mais atingida, a que sofreu maiores perdas, particularmente sua capital, atacada diariamente com 200 a 300 projéteis.
Observei as pessoas votando nos lugares mais insólitos: pátios de edifícios, entradas de hotel ou mesmo sua própria casa, com urnas ambulantes protegidas por um soldado. No sábado, testemunhei o ataque ao pátio de um edifício. Buscavam aos votantes ou funcionários das eleições, porém o que destruíram foi uma árvore de um parque infantil.
Qual é o sentimento predominante entre a população das cidades libertadas?
O espírito é de orgulho e quase sempre muito alegre. O que predomina é a esperança de que acabe o pesadelo dos ataques diários. Aqui cada vez que alguém sai à rua sabe que há a probabilidade de ser atingido. Eu sei, porque também me passou a mim.
“As senhoras que foram mortas vendiam flores e estava conversando com elas sobre o referendo no dia anterior. Isso se chama terrorismo”
Neste momento em que estamos falando escutamos os estrondos e sair às ruas em Donetsk, isso se sabe, está normalizado, é saber que podes não voltar para casa. Não é exagero. O ônibus que enviei a foto não era de militares, mas de civis. Essas senhoras que foram mortas vendiam flores, estive conversando com elas no dia anterior fazendo entrevistas na rua sobre o referendo. Isso se chama terrorismo, não tem nenhuma outra qualificação. Querem amedrontar a população, ameaçá-la e matá-la. E é o que fazem.
Você informou que o governo Zelensky está sendo abastecido pela Otan com mísseis com GPS, direcionados contra a população civil. A última troca de prisioneiros entre a Rússia e a Ucrânia comprovou a presença de mercenários dos Estados Unidos, da Inglaterra, entre outros países ocidentais. Qual a sua avaliação?
A França está abastecendo com os projéteis Ceasar, de 155 milímetros, com autopropulsão e guiados pelo sistema de GPS estadunidense. Toda a artilharia ucraniana é orientada pelos satélites da Otan, e não somente a artilharia. Todo o aparato da Otan está envolvida na guerra, tanto em nível de direção estratégica como no terreno. Segundo oficiais russos, muitos dos “mercenários” são militares regulares da Otan.
“Todo o aparato da Otan está envolvido na guerra, tanto em nível de direção estratégica como no terreno. Segundo oficiais russos, muitos dos ‘mercenários’ são militares regulares da Otan”
Para muitos por aqui, foi nefasta a entrega dos chefes nazistas [do batalhão Azov] e dos mercenários já condenados à morte durante o intercâmbio de prisioneiros. Porque havia sido prometido que os chefes nazistas que assassinaram a milhares de pessoas, destruíram edifícios, escolas e hospitais, enfrentariam um julgamento público e não foi assim. Não houve explicações sobre estas decisões.
O que mais te chamou a atenção na atuação dos meios de comunicação nestes meses?
Esta guerra destruiu o que restava do jornalismo ocidental, que se converteu numa máquina de propaganda unificada, hierarquizada e disciplinada para a difusão do pensamento. Quem rompa com o script, saia da moldura, é severamente castigado.
Em uma excursão militar recente, um jornalista de televisão da Europa ocidental, desconfiado, reivindicou que pudesse ter contato direto com a população e lhe foi concedido. O acompanhamos sem escoltas militares para conversar com as pessoas nas ruas na cidade de Berdyansk e, depois de uma dezena de entrevistas, começou a ficar angustiado porque nenhuma pessoa disse o que ele buscava. Me confessou que se mandasse sua reportagem honestamente o iriam a rechaçar e as redes sociais o comeriam vivo.
A mensagem do pensamento único é um emaranhado que mistura informação tradicional com a direcionalidade emocional através de redes sociais eletrônicas, que vai neutralizando a capacidade cognitiva, destruindo o raciocínio. Neste cenário qualquer bobagem – como se os russos bombardeassem a si mesmos – é aceita como verdade não somente por multidões ignorantes, mas pela intelectualidade.
Vale lembrar que foi a Otan quem escolheu a Ucrânia como ponto de lança de seu projeto muito antigo de converter a Rússia em um Estado falido e terminar com o que consideram uma ameaça constante de um país que está renascendo fortemente da crise em que foi mergulhada no período de escuridão, nos anos 90, em que desapareceu a União Soviética, de forma ilegal e impopular.
Esta pretensão não é de agora e se agudizou após o golpe de Estado de 2014 quando os grupos neonazis começaram a agitar a bandeira anti-russa criando um inimigo para criar sua própria nacionalidade. Não existe animosidade dos russos com os ucranianos, pois se consideram o mesmo: a mesma pátria, a mesma história, a mesma língua, a mesma comida, a mesma música, as mesmas belezas naturais. Aqui não há uma separação que alguém possa dizer estes são russos e estes são ucranianos. Para construir esta narrativa tinham de criar um inimigo. E isso se faz facilmente. Isso vimos na Iugoslávia, isso vimos no Iraque e em muitos países em que se cria um inimigo artificial. E termina como todos sabemos: que a Ucrânia podia entrar na Otan, que poderia colocar mísseis nucleares da Otan, depois nos últimos dias de fevereiro Zelensky anuncia que vai criar sua própria indústria nuclear e esta é uma linha vermelha que o presidente Putin marcou em 2008, não em fevereiro deste ano. Afirmou que quando a Ucrânia se convertesse em membro da Otan estaria cruzando uma linha vermelha que a Rússia não iria permitir. E foi isso que ocorreu.
E qual era o plano do governo de Zelensky? Recuperar pela força o que havia perdido pela vontade popular no Donbass, com os referendos que ocorreram em 2014 em Donetsk, em Lugansk, na Crimeia, na famosa cidade de Mariupol, em Odessa e nas demais. Em todas ganhou a vontade popular pela independência ou pela integração com a Rússia. Isso foi sufocado pelas armas. No ano de 2014 queimaram vivos em Odessa 48 comunistas que estavam na Casa dos Sindicatos diante dos olhos e da inação da televisão e da polícia, o que foi visto por todo o mundo. Então isso foi um ato de autodefesa e o que se impediu com a intervenção russa foi a retomada à força do Donbass.