
“Traidor da Constituição é traidor da Pátria”
ULYSSES GUIMARÃES
A proposta de “reforma da Previdência” de Bolsonaro – ou, melhor, de Paulo Guedes – pretende apagar da Constituição de 1988 a maior conquista social do povo brasileiro após a queda da ditadura.
Na última terça-feira, Vilson Romero, assessor de Estudos Socioeconômicos da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), em debate na Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito (Contec), em Brasília, disse algo muito importante:
Desde sua fundação, pela Constituinte de 1988, o atual sistema de Seguridade e Previdência Social “só apresentou necessidade de financiamento em 2016 e 2017, em decorrência da conjuntura econômica adversa e do grande volume de desonerações e desvios, mas, na média, teve um resultado positivo de R$ 43 bilhões no período entre 2005 e 2017” (cf. ANFIP debate a reforma da Previdência na Contec).
O sistema, portanto, é perfeitamente sustentável, desde que não seja assaltado – e desde que o país cresça, pois é óbvio que nada neste país, exceto os parasitas do setor financeiro, consegue crescer quando o país não cresce, quando o país retrocede.
Disse o representante dos Auditores Fiscais:
“A ANFIP entende que devem ser feitos ajustes, até em decorrência da evolução demográfica. Mas antes de penalizar o trabalhador, precisamos olhar para a área do financiamento. Temos que revisar ou dar um fim, por exemplo, nas desonerações das contribuições previdenciárias sobre a folha”.
Não se trata de qualquer setor:
“Quando se fala em Previdência no Brasil, se esquece de dizer que nós temos quase 120 milhões de brasileiros, e mais os seus familiares, dependendo da Previdência Social. Não se pode fazer uma reforma levianamente sem levar em consideração isso.”
Essa é exatamente a questão que mostra o quanto a Constituição de 1988 foi bem sucedida – pois todas essas pessoas não somente vivem, como aumentaram o tempo de suas vidas com o atual sistema da Previdência, apesar de todas as vicissitudes econômicas e políticas.
Certamente, não foi apenas essa a causa. Mas essas pessoas estariam vivas, e aumentando o seu tempo de vida, se não existisse a Previdência Social, a previdência pública, nos marcos e com os fundamentos que conhecemos?
Quantas delas estariam vivas?
RETROCESSO
No entanto, Guedes e Bolsonaro querem, contra o que foi aprovado pelos constituintes de 1988, rasgar a Constituição em tudo o que se refere à Previdência.
É óbvio que a Constituição pode ser emendada. Mas não é isso o que faz a PEC nº 6/2019.
Ela não emenda nada. Pelo contrário, se aprovada, apagaria da Constituição um tópico inteiro, ali colocado por constituintes que foram eleitos para isso.
Além da discussão sobre se os direitos sociais são “cláusulas pétreas” (aquelas que somente podem ser alteradas por outra Constituinte, não por uma emenda constitucional) – e eles são cláusulas pétreas – existe uma questão de poder original: as modificações que Bolsonaro e Guedes querem impor são totalmente contrárias ao conteúdo e ao espírito da Constituição elaborada por quem tinha o direito de elaborá-la. Coisa que, aliás, foi dita abertamente por Guedes, em sua arenga na sala do presidente da Câmara, quando da entrega do projeto ao Congresso.
A questão, aqui, é simples: como pode uma emenda transformar a Constituição no oposto do que ela é, ao retirar a Previdência do seu texto para cassar direitos da população por “lei complementar”?
Trata-se de um vulgar e estúpido amesquinhamento da Constituição.
Apenas de passagem, anotaremos que, do ponto de vista jurídico, a emenda de Guedes e Bolsonaro também manda para aquela parte o princípio da proibição do retrocesso social (ou princípio do não retrocesso social) de modo brutal, criminoso, podemos dizer, nazista, sem incorrer em exagero (para os leitores interessados nessa discussão, do ponto de vista jurídico, v. Dilmanoel de Araújo Soares, Direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso social, UNICEUB, Brasília, 2010, e, também, Antonio Oneildo Ferreira, Princípio constitucional do não retrocesso, 2015).
Bolsonaro e Guedes, com sua “reforma”, querem – e apenas por exemplo, pois há mais:
1) Tirar da Constituição todos os Regimes Próprios de Previdência (RPPs) dos funcionários públicos federais, estaduais e municipais, jogando suas regras para “lei complementar de iniciativa do Poder Executivo federal” (PEC nº 6, p. 2).
2) Tirar da Constituição todo o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) dos empregados do setor privado, jogando-o para lei complementar (idem, p. 10).
3) Tirar da Constituição e jogar para lei complementar todos os critérios de idade mínima para aposentadoria dos funcionários públicos (idem, p. 3).
4) Tirar da Constituição e jogar para lei complementar todos os critérios de idade mínima do Regime Geral, isto é, para a aposentadoria dos empregados no setor privado (idem, p. 10).
5) Tirar da Constituição e jogar para lei complementar, no Regime Geral, o estabelecimento:
a) do “tempo de contribuição, carência e limites mínimo e máximo do valor dos benefícios”;
b) das “regras de cálculo e de reajustamento dos benefícios”;
c) dos “limites mínimo e máximo do salário de contribuição”;
d) dos critérios para “atualização dos salários de contribuição e remunerações utilizados para obtenção do valor dos benefícios”;
e) dos “requisitos necessários para enquadramento dos dependentes, o tempo de duração da pensão por morte e das cotas por dependentes”;
f) das “regras e condições para acumulação de benefícios”;
g) do “sistema especial para atender aos trabalhadores de baixa renda”;
h) dos “critérios pelos quais a idade mínima será majorada quando houver aumento na expectativa de sobrevida da população brasileira”.
Sobrevida é como se chama o tempo a mais que vive alguém acometido por uma doença fatal.
Na reforma de Guedes, a vida e a expectativa de vida deixaram de existir.
Existe apenas a expectativa de sobrevida, ou seja, a expectativa da morte.
MAIS UM POUCO
7) Tirar da Constituição a própria definição do sistema de Previdência dos funcionários públicos, ou seja, jogar para lei complementar a tentativa de impor a famigerada “capitalização” aos servidores – isto é, o fim da responsabilidade da União, Estados e municípios pela Previdência de seus funcionários.
8) Tirar da Constituição, também, a definição do sistema de Previdência dos empregados no setor privado, jogando para lei complementar a imposição do regime de “capitalização” no lugar do Regime Geral da Previdência Social.
9) Tirar da Constituição e jogar para lei complementar as “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares” (artigo 22, inciso XXI da atual Constituição).
10) Jogar para lei complementar o estabelecimento de “contribuições ordinárias e extraordinárias, cobradas dos servidores públicos, dos aposentados e dos pensionistas” (p. 6).
11) Jogar para lei complementar o aumento das “contribuições extraordinárias dos aposentados e dos pensionistas” (p. 7).
12) Jogar para lei complementar “a utilização de recursos do regime próprio de previdência social para realização de despesas distintas do pagamento dos benefícios previdenciários” (p. 7).
13) Jogar para lei complementar “os limites mínimo e máximo do salário de contribuição” para a Previdência (p. 8).
Uma lei complementar precisa de 50% mais um voto, no Congresso, para ser aprovada. Muito mais fácil, para um governo que está contra o povo, do que mudar a Constituição, que demanda 3/5 dos votantes.
Porém, o objetivo de “jogar para lei complementar” não é, necessariamente, aprovar essa lei.
Pode ser, em alguns casos, jamais enviar ao Congresso um projeto de lei complementar, quando não convenha aos interesses da quadrilha (ou das quadrilhas) no governo.
Se o leitor quiser ler o texto completo da “reforma” de Guedes, v. PEC nº 6/2019, apresentação e íntegra.
O ESCRAVO
Desde sua aprovação, em 1988, e até mesmo antes, a atual Constituição tornou-se motivo do ódio de todos os fascistas, de todas as viúvas da ditadura, de todos os neo-escravagistas (e, claro, também dos rebentos dos escravagistas antigos).
Não existe um reacionário neste país que não tenha vituperado a Constituição de 1988, a Constituição-cidadã, de Ulysses Guimarães (v. Ulysses Guimarães: “Traidor da Constituição é traidor da Pátria”).
Mas nem todo reacionário pretendeu anular a Constituição, rasgá-la, traí-la, como pretende o bando bolsonarista.
Não estamos, aqui, nos referindo somente – aliás, nem principalmente – às declarações do vice de Bolsonaro, Hamilton Mourão, durante a campanha eleitoral (v. Vice de Bolsonaro quer ditadura contra o povo e diz que não é “antidemocrático”).
Ou àquelas de um dos filhos de Bolsonaro, sobre o fechamento do Supremo Tribunal Federal (v. Bolsonaro filho ameaça fechar o STF e o pai o MST).
Mais importante, em junho de 1993, o deputado Jair Bolsonaro (PPR-RJ), então em seu primeiro mandato, propôs, na cidade de Santa Maria (RS), a revogação da Constituição, o “congelamento” do Congresso e a substituição da democracia por um “regime de exceção”.
Disse ele:
“Há leis demais que atrapalham. Num regime de exceção, o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando. O Congresso deveria ser congelado temporariamente. Os parlamentares são despreparados.”
Na época, oito anos após a derrubada da ditadura, o presidente da Câmara enviou o caso para a Procuradoria Geral da Casa, que recomendou a cassação da imunidade parlamentar de Bolsonaro para que fosse julgado por falta de decoro e crime contra a Lei de Segurança Nacional. Seu próprio partido de então, o PPR anunciou o início de um processo de expulsão de Bolsonaro (v. abaixo).

Bolsonaro jamais fez autocrítica disso. Pelo contrário. Posteriormente, inclusive no Congresso, reafirmou.
Depois, na campanha eleitoral, se disse um “escravo da Constituição”, o que, além da demagogia, revela como ele vê – e sente – a Constituição: como algo que o escraviza.
Já se sabe, portanto, por essa declaração, o que ele quer fazer com a Constituição.
A sua proposta de “reforma da Previdência” é exatamente isso: uma tentativa de rasgar o documento que consagrou a vitória do povo contra a ditadura, especialmente, por ora, as conquistas de direitos sociais.
Mas, em menos de dois meses, um dos apoiadores de Bolsonaro na mídia – é verdade que ocasional, mas a favor da sua “reforma da Previdência” –, descobriu que “a esclerose precoce do governo de Jair Bolsonaro parece ter despertado no presidente o demagogo que ele sempre foi e que se encontrava apenas anestesiado em razão de conveniências políticas” (cf. OESP, 24/02/2019).
Não tínhamos notado essa “anestesia”.
Entretanto, esse governo parece estar começando por onde outros terminaram.
Nem o governo Collor, com seu confisco da poupança, conseguiu tanto, em tão pouco tempo.
C.L.