O Relator Especial da ONU para Tortura, o jurista suíço Nils Melzer, denunciou que o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, mostra “todos os sintomas de uma pessoa que esteve exposta a tortura psicológica por um período prolongado” e afirmou que ele não deve ser extraditado para os EUA, onde sofreria “um show judicial politizado”. A declaração foi feita em Genebra, depois de visita do relator, acompanhado de dois especialistas médicos, ao presídio de segurança máxima em Londres em que o jornalista está encarcerado. “A perseguição coletiva a Julian Assange deve terminar aqui e agora!”, exigiu.
“Nossa descoberta indica que o Sr. Assange mostra todos os sintomas de uma pessoa exposta a tortura psicológica por um período prolongado. O psiquiatra que acompanhou minha missão disse que seu estado de saúde é crítico”, disse Melzer à Reuters em Genebra. “Mas eu entendo que ele foi hospitalizado agora e não está qualificado para enfrentar um julgamento”, acrescentou. Na semana passada, o jornalista não pôde participar de audiência por videoconferência sobre sua extradição aos EUA, por estar muito mal de saúde.
“Em 20 anos de trabalho com vítimas de guerra, violência e perseguição política, nunca vi um grupo de Estados democráticos se unindo para deliberadamente isolar, demonizar e abusar de um único indivíduo por tanto tempo e com tão pouca consideração pela dignidade humana e pelo Estado de Direito”, reiterou Melzer, que é também presidente da Academia de Direito Internacional Humanitário de Direitos Humanos de Genebra e professor de direito internacional na Universidade de Glasgow.
“Assange foi deliberadamente exposto, por vários anos, a formas progressivamente graves de tratamento ou punição cruéis, desumanos ou degradantes, cujos efeitos cumulativos só podem ser descritos como tortura psicológica”, atestou Melzer em um comunicado. “Não estamos falando de processo, mas de perseguição”, acrescentou o jurista suíço. “Eu estou preocupado que se este homem for extraditado para os EUA, ele será exposto a um show judicial politizado e sérias violações de seus direitos humanos”, assinalou.
“Desde 2010, quando o Wikileaks começou a publicar provas de crimes de guerra e tortura cometidos por forças dos EUA, temos assistido a um esforço sustentado e concertado de vários estados para que o Sr. Assange seja extraditado para os Estados Unidos para ser processado. Esse esforço gerou sérias preocupações sobre a criminalização do jornalismo investigativo, violando tanto a Constituição dos Estados Unidos quanto a lei internacional sobre direitos humanos”, acrescentou o relator.
PROTOCOLOS DE ISTAMBUL
Em entrevista à jornalista norte-americana Amy Goodman, do Democracy Now, Melzer relatou que foi ao presídio londrino acompanhado de “dois especialistas médicos muito experientes e especializados em examinar. identificar e documentar sintomas de tortura – tortura física ou psicológica. E nós rodamos protocolos médicos, chamados Protocolos de Istambul, que são protocolos reconhecidos para examinar vítimas de tortura, para ter uma avaliação médica objetiva”.
“E minhas principais preocupações são que estou extremamente preocupado com seu atual estado de saúde, que já era alarmante quando o visitei e que parece ter se deteriorado rapidamente desde então, a ponto de ele não poder mais ser julgado e participar em audiências judiciais”.
“Minha avaliação é que o Sr. Assange foi exposto a várias formas de tratamento cruel, desumano e degradante que, cumulativamente, têm o mesmo efeito da tortura psicológica”. Como o jornalista esteve confinado por quase sete anos em um ambiente “muito controlado”, para o Relator Especial da ONU “é possível identificar a relação causal” entre os sintomas médicos e as causas reais dos sintomas “com um alto grau de certeza”.
Trata-se, “em primeiro lugar, do esforço conjunto de vários Estados para entregá-lo aos Estados Unidos, o que é um pouco do elefante na sala”. “Esse é o único medo que ele tem desde 2010, quando publicou pela primeira vez grandes quantidades de informações comprometedoras sobre os Estados Unidos”, apontou Melzer. O que se seguiu de “uma campanha implacável de perseguição judicial”.
Para Melzer, Assange tem todos os motivos para temer que “não obteria um julgamento justo nos Estados Unidos e não estaria seguro e protegido dos tipos de detenção e tratamento que violariam a Convenção Contra a Tortura”
LINCHAMENTO
O Relator Especial da ONU considerou que a partir de 2010 Assange “foi exposto a uma campanha de linchamento público, variando de ridicularização deliberada e insultos a até, na verdade, apelos por seu assassinato”. “Todos esses elementos contribuíram, obviamente, para um nível de estresse e ansiedade que seria insuportável para qualquer um”.
O que se agravou quando, com a eleição do novo presidente no Equador em 2017, “o último governo que realmente lhe forneceu refúgio e proteção se voltou contra ele e começou a assediá-lo deliberadamente para que ele deixasse a embaixada e/ou para desencadear uma crise de saúde que justificaria sua expulsão para um hospital britânico e, portanto, para a jurisdição britânica”. Tudo somado, resultou “em um quadro médico e sintomas que são equivalentes ao que a tortura psicológica produziria durante um período prolongado”.
Melzer revelou que nem mesmo ele escapara dos efeitos dessa campanha difamatória contra o jornalista e da narrativa de “suspeito de estuprador, narcisista, pessoa egoísta e ingrata, hacker”. Ao ser abordado em dezembro do ano passado pela equipe de defesa de Assange, chegou a ficar “relutante” a agir, “porque eu também havia sido afetado pelas narrativas que se espalharam na mídia ao longo dos anos”. “Só quando eu arranhei um pouco a superfície, vi como havia pouco fundamento para apoiar isso e quanta fabricação e manipulação há neste caso.”
FACCIOSISMO
Melzer afirmou que é importante constatar que “o Ministério Público sueco, as autoridades equatorianas e também as autoridades judiciárias da Grã Bretanha” até agora não demonstraram “a imparcialidade e objetividade exigidas pelo Estado de direito”. “Ele foi expulso da Embaixada do Equador sem o devido processo legal, e estamos falando sobre a suspensão formal do status de asilo e a suspensão da cidadania de sua nacionalidade, o que normalmente não seria feito, obviamente, por um presidente em decisão unilateral, mas isso seria um processo judicial em que o réu ou a pessoa em questão teria o direito de se defender”.
“A forma como a acusação sueca foi conduzida também mostra que Assange não teve a oportunidade de se defender adequadamente em público contra alegações de ofensa sexual sem ao mesmo tempo ter que se expor a uma possível extradição para os Estados Unidos, o que obviamente não está relacionado com as ofensas sexuais”, assinalou o Relator da ONU. “Assim, por 10 anos, sua reputação e credibilidade e sua dignidade humana foram gravemente afetadas por essas alegações, e o Ministério Público sueco deliberadamente o impediu de assumir uma posição oficial contra isso”.
Melzer apontou como o arbítrio se repetiu em Londres. “No mesmo dia em que foi arrastado para fora da embaixada depois de mais de seis anos, no mesmo dia, ele foi levado a um tribunal do Reino Unido. Ele recebeu, supostamente, menos de 15 minutos com seu advogado de defesa para preparar uma defesa e, em seguida, em uma audiência muito curta, foi condenado por violação de fiança. E o juiz chegou a insultá-lo como um narcisista que não consegue se superar. Agora, como advogado, tendo trabalhado pessoalmente na corte, não posso imaginar como um juiz pode chegar a tal conclusão, quando o réu não disse mais nada naquela audiência do que ‘eu não me declaro culpado’”.
O Relator Especial da ONU sobre Tortura se declarou praticamente convicto de que Assange “não conseguiria um julgamento justo e um tratamento seguro nos Estados Unidos”. O preconceito público, inclusive por parte de antigos e atuais funcionários nos EUA, tem sido predominante há vários anos e, portanto, “seria quase impossível ter uma audiência imparcial em que ele pudesse realmente ser ouvido”, apontou. “Quando vemos as acusações que foram adicionadas agora, recentemente, sob o Ato de Espionagem, a maioria delas está relacionada a atividades que qualquer jornalista investigativo conduz todos os dias. Então, é realmente um motivo de preocupação pela liberdade de imprensa em todo o mun- do”.
PAÍS DA TORTURA
A isso se acresce, como sublinhou que, com os EUA, infelizmente, “estamos lidando com um país que nos últimos 20 anos não demonstrou ser consistente em fazer cumprir a proibição da tortura com seus próprios funcionários”. Como lembrou, ao contrário das obrigações sob a Convenção internacional contra a Tortura, nem o mesmo o relatório do comitê do Senado “levou a uma única acusação”. “Obviamente, o vídeo “Assassinato Colateral” também não levou a nenhum processo. A única pessoa que está sendo processada aqui parece ser a que realmente expôs todos esses crimes. E assim, neste tipo de contexto, não é concebível que uma pessoa como o Sr. Assange possa ser absolvida e ter um julgamento justo no tribunal”.
Embora não haja qualquer garantia por parte de Washington de que ele não venha a receber pena de morte por ‘espionagem’, uma pessoa ser condenada a 170 ou 180 anos de prisão por ter conduzido jornalismo investigado equivaleria, como realçou Melzer, em si mesmo “a uma punição cruel e incomum, uma violação do direito internacional e também da Oitava Emenda da Constituição norte-americana”.
A cínica declaração do ministro das Relações Exteriores britânico, Jeremy Hunt, em resposta à denúncia do Relator Especial sobre Tortura da ONU, de que “Assange preferiu se esconder na embaixada e esteve sempre livre para sair e enfrentar a Justiça” – e reclamando que o jurista deveria parar de atrapalhar os tribunais britânicos a tomarem suas decisões “sem interferência” -, mereceu de Melzer uma réplica contundente: que Assange era tão livre para sair “como alguém em um barco de borracha dentro de uma piscina de tubarões”. O especialista da ONU aproveitou para lembrar ao ministro que “até agora os tribunais britânicos não demonstraram a imparcialidade e objetividade exigidas pelo Estado de Direito”.