
LEONARDO WEXELL SEVERO, de La Paz – Bolívia
Exilado após uma onda de assassinatos, torturas, prisões, desaparecimentos e até estupros de familiares de lideranças – como o de uma sobrinha de 14 anos do presidente da Câmara dos Deputados -, o presidente reeleito da Bolívia, Evo Morales, desmontou a farsa do relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) em relação a uma suposta fraude nas eleições de 20 de novembro.
“O informe da OEA aponta que encontraram irregularidades em 226 atas e, mesmo se anulando o voto do Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP) nessas atas, a diferença se mantém acima dos 10% (percentual mínimo para não haver segundo turno)”, denunciou Evo. Sendo assim, destacou, “a única fraude foi do relatório oficial da OEA, cúmplice do golpe de Estado”.
Um manifesto divulgado esta semana por 97 estatísticos e economistas de todo o mundo respaldou a decisão do Supremo Tribunal Eleitoral da Bolívia, reconhecendo a vitória de Evo e fazendo um chamado à OEA para que “retire suas declarações enganosas”. Afinal, tais “enganos” repercutidos pela mídia muito “contribuíram para o conflito político e serviram como uma das ‘justificativas’ mais utilizadas para consumar o golpe”.
Conforme a “auditoria” da OEA – cujo orçamento é bancado 60% pelo governo dos Estados Unidos – “a análise estatística realizada revela que a vitória no primeiro turno de Evo Morales foi estatisticamente improvável”, e que a sua proclamação aconteceu devido a “um aumento massivo e inexplicável” de votos “nos 5% finais da contagem”. Sem esse aumento, alegam, embora o partido “tivesse conseguido a maioria dos votos, não alcançaria a diferença de 10% necessária para evitar o segundo turno”.
E a OEA vai além e diz que esta alteração na tendência das últimas urnas “é extremamente invulgar e coloca em causa a credibilidade do processo”, acrescentando que “as manipulações e irregularidades assinaladas não permitem ter a certeza sobre a margem de vitória do candidato Morales sobre o candidato Carlos Mesa”.
Rebatendo a pretensa “auditoria”, o manifesto dos estatísticos e economistas propõe que o Congresso dos Estados Unidos “investigue este comportamento da OEA e se oponha ao golpe militar, a seu contínuo apoio por parte do governo de Trump, assim como à continua violência e às violações aos direitos humanos por parte de quem, na prática, está no governo”.
Mergulhada em suas mentiras, a autoproclamada Jeanine Áñez determinou a prisão de todos os membros dos tribunais eleitorais do país, “para que fossem submetidos a um processo penal”, sendo condenados pelas “ações deliberadas para manipular o resultado das eleições” das quais a atual “presidenta” sequer foi uma das candidatas.
TESTEMUNHA OCULAR DA HISTÓRIA
Uma das jovens contempladas por sorteio para atuar como fiscal eleitoral, supervisionando cerca de 200 mil votos no lago Titicaca, na fronteira com o Peru, onde estavam dezenas de mesas eleitorais compostas por seis pessoas (um presidente, um secretário e quatro vogais), Joana Rodas informa que o processo foi “extremamente sigiloso e cauteloso, contando votos e urnas com a escolta militar e o lacre da Justiça”.
“Ficamos responsáveis pela votação numa região de fronteira, de difícil acesso, e por isso mesmo tendo um carro potente à disposição, de tração nas quatro rodas, para podermos nos deslocar com mais facilidade. Ao contrário do que alegam agora os que perderam, da mesma forma que o MAS, eles possuíam fiscais em todas as mesas, que podiam ficar até a um metro da urna como todos, e tiveram as condições necessárias para vigiar e se posicionar como qualquer um durante o período de votação”, explicou.
Joana declarou ter recebido, como todos os participantes do processo eleitoral do país, os recursos financeiros necessários para alimentação, comunicação e deslocamento, “sendo um dia de tanto trabalho como qualquer outro”.
“Assim que a apuração era concluída, e foi assim na nossa região de fronteira como em qualquer outra, o resultado era imediatamente fotografado e subíamos para o sistema, enviando para o Tribunal. Todos os partidos manuseavam o resultado para que, obviamente, fosse posteriormente checado, com critério e segurança. O que ocorre é que na área rural, onde Evo Morales chega a ter 95% dos votos, esta transmissão ocorre com mais atraso, pois são regiões onde é necessário rodar a até quatro horas para se conseguir um acesso à internet. Com isso, naturalmente, aquela informação entra numa longa fila no servidor, diferente dos grandes centros. Resultado: o voto mais fechado com o MAS só aparece depois, mas está lá”, explicou.
Em relação ao fato de várias mesas eleitorais terem sido queimadas pelos golpistas, Rodas assinalou que “essa é mais fácil de explicar, porque ninguém é trouxa de queimar seus próprios votos”.
Leia a íntegra do documento dos estatísticos e economistas:
Nós, abaixo-assinados, pedimos que se respeitem as instituições e os processos democráticos da Bolívia.
O governo de Donald Trump apoiou de forma aberta e contundente ao golpe militar de 10 de novembro que derrotou o governo do presidente Evo Morales. Ninguém contesta que Morales foi eleito democraticamente em 2014, e que seu mandato não acaba até o dia 22 de janeiro; no entanto, muitos fora do governo de Trump parecem aceitar o golpe militar apoiado por Trump.
Muitas pessoas que apoiaram o golpe afirmaram que Morales roubou as eleições. Este relato de fraude recebeu um grande impulso através de uma declaração emitida pela Organização dos Estados Americanos no dia depois das eleições de 20 de outubro: relato que posteriormente a OEA repetiria de formas similares. A declaração da Missão de Observação Eleitoral da OEA para a Bolívia expressou sua “profunda preocupação e surpresa pelo drástico e difícil de justificar a tendência dos resultados preliminares conhecidos após o fechamento das urnas”. Não se incluiu evidência alguma que respaldasse esta declaração. No entanto, se interpretou amplamente como uma acusação de fraude, e depois das eleições tais acusações se tornaram habituais nos principais meios de comunicação.
Não se incluiu evidência alguma que respaldasse a declaração da OEA sobre “mudança drástica ou difícil de justificar dos resultados”. No entanto, se interpretou amplamente como fraude e depois das eleições tais acusações se tornaram habituais nos principais meios de comunicação.
De fato, é fácil demonstrar com dados eleitorais, os que estão disponíveis publicamente, que a mudança na vantagem de Morales não é algo “drástico” nem “difícil de explicar”. Houve uma pausa na “contagem rápida” dos resultados da votação -, quando se chegou à contagem de 84% dos votos – e a vantagem de Morales era de 7,9%. Com 95% da recontagem total de votos, sua margem havia aumentado a pouco mais de 10%, o que permitiu a Morales ganhar no primeiro turno, sem ter que ir ao segundo. No final, a contagem oficial mostrou uma vantagem de 10.6% [1].
Não é incomum que os resultados de uma eleição tenham um viés por localização geográfica, o que significa que os resultados podem variar dependendo de quando sejam contados os votos das diferentes áreas. Ninguém argumentou que houve fraude nas eleições para governador de 16 de novembro no estado de Luisiana. Nelas, o candidato democrata, John Bel Edwards, ganhou por 2,6%. Depois de ter aparecido como perdedor quase toda a noite, no final da contagem chegaram os votos do condado de Orleans onde 90% votou por ele, dando-se assim a vitória total.
E a mudança na liderança de Morales não foi “drástica”, em absoluto; foi parte de um aumento constante e contínuo na vantagem de Morales iniciado horas antes da interrupção.

Este gráfico mostra que a vantagem do presidente Evo Morales (pontos azuis claros) e de seu partido nas eleições parlamentares (pontos azuis escuros) aumentou a um ritmo constante durante a maior parte da recontagem de votos. Não houve um aumento repentino ao final que o tenha colocado acima do limite de 10%.
A explicação do aumento da margem de Morales foi, portanto, bastante simples: as áreas que informaram seus votos posteriormente foram mais pró-Morales que as áreas que informaram seus votos mais cedo.
De fato, o resultado final foi bastante previsível sobre a base dos primeiros 84% dos votos relatados. Isto foi demonstrado mediante uma análise estatística e também mediante uma análise mais simples das diferenças entre as preferências políticas das áreas que informaram seus votos antes e as que informaram depois.
Fazemos um chamado à OEA para que retire suas declarações enganosas sobre as eleições, que contribuíram para o conflito político e têm servido como uma das “justificativas” mais utilizadas para consumar o golpe militar. Pedimos ao Congresso dos Estados Unidos que investigue este comportamento da OEA e se oponha ao golpe militar, ao seu contínuo apoio por parte do governo de Trump, assim como a contínua violência e às violações aos direitos humanos do governo na prática.
Assim mesmo, os meios de comunicação e os jornalistas têm a responsabilidade de buscar especialistas independentes que estejam familiarizados com os dados eleitorais e possam oferecer uma análise independente do que ocorreu, em vez do que ocorreu, em lugar de simplesmente tomar a palavra dos funcionários da OEA, que têm demonstrado repetidamente estar equivocados em relação a estas eleições.
Muitas vidas podem depender de que esta história seja esclarecida.
Entre os que assinam o documento, destacamos quatro dirigentes do Center for Economic and Policy Research, entre os quais, Mark Weisbrot e Dean Baker; James Galbraith, Universidade do Texas em Austin; Josué Guzmán, American Statistical Association e ainda o indiano, C Saratchand, Satyawati College, Universidade de Delhi; a alemã, Miriam Rehm, Universidade de Duisburg-Essen; o mexicano, Oscar Ugarteche, Instituto de Investigaciones Económicas UNAM e o colombiano, Francisco Javier Pantoja Pantoja, Universidad del Cauca, Colômbia
[1] A contagem oficial, diferentemente da “contagem rápida” citada pela OEA, é a única legalmente vinculante e não sofreu nenhuma interrupção