Nas últimas semanas, especialistas e advogados trabalhistas vêm denunciando os graves riscos que o Projeto de Lei Complementar (PLC 12/2024), sobre a regulamentação das empresas operadoras de aplicativos de transporte, pode acarretar para os motoristas e também para o direito do trabalho.
O projeto, apresentado pelo Executivo Federal no dia 4 de março, causou euforia no movimento sindical, que considerou o texto um “grande avanço”. Em nota, divulgada no último dia 5, as centrais sindicais afirmam que o texto determina “um piso remuneratório e de cobertura de custos”, que “parte de R$ 32,10 por hora, o que para uma jornada de oito horas ou 176 horas/mês garante uma remuneração base de R$ 5.650,00.”
De acordo com o texto do governo, esse valor, de R$ 32,10, inclui o seguinte cálculo: “R$ 8,03 (oito reais e três centavos), a título de retribuição pelos serviços prestados, e de R$ 24,07 (vinte e quatro reais e sete centavos), a título de ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador na prestação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros”, o que resultaria, como remuneração para o trabalhador, um total de R$ 1.413,28 para 176 horas/mês.
Em entrevista ao HP, Ilan Fonseca, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), autor do estudo “Dirigindo Uber: Um estudo da subordinação jurídica a partir da etnografia”, uma pesquisa para tese de doutorado apresentada à Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), comentou que, além desse valor se referir ao faturamento, e não ao lucro, do motorista, o PL “prevê a remuneração de R$ 32,10 exclusivamente pela hora online desde a aceitação da corrida até o momento de desembarque do passageiro. Ou seja, o tempo à disposição, em que eu ficava e outros motoristas ficam aguardando corridas boas, não será remunerado”.
“Enquanto o motorista está parado (maior parte do tempo) o PL nada prevê ou remunera, o que é um desastre”, avalia. De acordo com o procurador, a reação dos trabalhadores de aplicativos, que vêm se manifestando contra o projeto, “é válida porque, em realidade, em algumas capitais, já se ganha mais do que R$ 32,10 (seria o equivalente a três corridas de R$ 10,00 cada) em um intervalo de uma hora”. “Ademais, o maior risco disso é que atualmente, com o preço dinâmico (horários de maior pico em que plataformas cobram mais dos passageiros e pagam um pouco mais a motoristas) este valor poderia ser maior. Com a regulamentação, o que era pra ser um piso pode acabar sendo um teto, sem que motoristas possam reclamar, pois as plataformas estariam cumprindo a lei.”
“A insatisfação é porque não há ganhos imediatos, a remuneração mínima é falaciosa – levando em conta a transferência dos riscos de uma atividade empresarial para as costas dos trabalhadores – e a proteção previdenciária aparenta ser uma vitória, mas o fato é que o INSS já deveria, desde a chegada das plataformas no Brasil, estar fiscalizando e cobrando tais valores de empresas como Uber e 99”, afirma.
Para Ilan, “além disso, o PL perdeu a oportunidade de criar regras claras sobre o direcionamento das corridas, sobre os valores praticados (quilômetro rodado, categorias Comfort, preços dinâmicos, tudo isso é um mistério para a categoria), sobre o sistema de avaliações dos passageiros (5 estrelas apenas, numérico, como se o trabalhador fosse uma mercadoria, sem direito ao contraditório, sem possibilidade de exclusão de algumas avaliações), mas principalmente perdeu a oportunidade de proteger a segurança e saúde dos motoristas de aplicativo”.
O procurador ressalta também que “a legitimação de uma jornada de trabalho de 12 horas [conforme previsto do PL] chega a ser ofensiva”, e expõe trabalhadores e passageiros a riscos graves, com trabalhadores “dormindo ao volante”. “Além de não caracterizar estes motoristas como empregados, como realmente são, o PL não vai melhorar o cotidiano dos motoristas”, afirma.
PRECARIZAÇÃO LEGALIZADA
Outro risco apontado pelo procurador é a legitimação de um “novo gênero” de trabalho em que o patrão mantém o trabalhador subordinado a suas regras, numa situação em que não é “nem autônomo, nem trabalhador com carteira assinada”, e como isso pode ser um precedente para que outros setores adotem essa relação, amparados pela lei.
“Você tem um trabalhador hoje que é de uma grande rede varejista e ele trabalha de forma subordinada, com ordens verbais diretas. Essa rede varejista vai falar assim: ‘e se a gente criar uma plataforma digital?’. Então, ela vai fazer uma construção jurídica para dizer ‘olha, a nossa situação é muito semelhante à da Uber. Ele trabalha com metas, ele se apresenta aqui no horário que quiser. É uma coincidência que ele apareça aqui sempre das 8h às 18h’. Isso representa um precedente perigosíssimo. O Brasil já vive com um índice de informalidade que beira sempre a 40%”, declarou Ilan, ao portal Uol, no último dia 2 de abril. (Leia “PL do governo abre precedente perigosíssimo para exploração do trabalho por aplicativos”, diz procurador”).
JÚLIA CRUZ