(HP 06/06/2013)
CARLOS LOPES
O texto que segue é composto por anotações, sobre mais de um assunto, que tentei alinhavar em meio a uma gripe colossal, vindo (eu, não a gripe) do último congresso da UNE, em que tive a honra de ser palestrante. Portanto, temo que não tenha conseguido dar ao texto uma forma final condizente com a importância dos temas. Aliás, tenho certeza que não consegui. Ainda assim, devido a acontecimentos recentes, prefiro publicá-lo, mesmo com essas imperfeições.
Os resultados da produção física industrial, divulgados na terça-feira, não alteram nenhuma constatação do texto, até porque esses resultados foram deformados pelas bases de comparação muito deprimidas. Como disse o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI):
“… ao se comparar abril deste ano com abril de 2012, os resultados exuberantes da produção (24,4% em bens de capital; 14,9% em bens duráveis; 5,2% em bens semi e não duráveis; e 5,0% em bens intermediários) se devem à baixa base de comparação e ao fato de que o quarto mês deste ano tem dois dias úteis a mais do que o mesmo mês do ano passado. (..) É mais provável que a produção industrial esteja crescendo no ritmo do setor nuclear da indústria, qual seja, o setor de bens intermediários, cujas taxas de crescimento foram de 0,5% e 0,4%, respectivamente, em março e abril – taxas calculadas com relação ao mês imediatamente anterior, com ajuste sazonal” (cf. Análise IEDI, 04/06/2013).
TRANSFORMAÇÕES
No 53º Congresso da UNE, o economista Rodrigo Ávila, da Auditoria Cidadã da Dívida, apresentou um exemplo das metamorfoses que podem acontecer a um projeto. No caso, o Plano Nacional de Educação (PNE) – na Câmara, PL nº 8035/2010; no Senado, PLC nº 103/2012.
Resumindo, no dia 20 de dezembro de 2010, o então ministro da Educação, Fernando Haddad, enviou à Câmara esse projeto, com a seguinte redação, quanto ao financiamento da educação:
“Meta 20: Ampliar progressivamente o investimento público em educação até atingir, no mínimo, o patamar de 7% do produto interno bruto do país.”
Depois de dois anos de discussão, inclusive numa comissão especial constituída para apreciar o projeto, os deputados aprovaram o seguinte texto:
“Meta 20: ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no 5º (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio” (grifo nosso).
O mais importante aqui não é a ampliação da meta para 10% do PIB (apesar de concordarmos com o senador Pimentel em que melhor seria usar o Orçamento como referencial, foi o ministro Haddad, seu colega de partido, que introduziu o PIB como parâmetro, no projeto que enviou ao Congresso).
O mais importante aqui foi a inclusão da palavra “pública” após a palavra “educação”.
Não se trata de proibir entidades privadas de receberem dinheiro público (caso, por exemplo, do Prouni). A questão visada por essa redação é estabelecer o que conta para o cumprimento da meta de “investimento público”. Não é uma questão nova: por exemplo, um empréstimo do BNDES para uma empresa privada, mesmo que seja a juros negativos ou a fundo perdido, não é considerado investimento público – pelo contrário, é investimento privado, investimento da empresa que recebeu tais recursos.
Em suma, a modificação feita na Câmara significa que, para fins de cumprimento das metas do PNE, só é considerado “investimento público” em educação os recursos investidos na educação pública.
Na opinião dos deputados, não cabia, como meta de um plano nacional de educação com vigência de uma década, rebaixar o investimento público em educação pela concessão de dinheiro público ao ensino privado – como, claramente, permitia o texto enviado por Haddad ao parlamento. Pior ainda, acrescentamos nós, quando as universidades privadas estão sob intenso processo de desnacionalização, sendo tomadas por fundos especulativos norte-americanos (o chamado “private equity”, ou seja, fundos que especulam com a participação acionária em tais ou quais empresas) – para não falar do fato de que são entidades lucrativas, que cobram os olhos da cara de seus fregueses.
Para maior clareza: pelo artigo 3º do projeto, as metas “deverão ser cumpridas no prazo de vigência deste PNE” – ou seja, são metas para até 10 anos após o início da implantação do plano.
Daí a especificação incluída na Câmara: a meta passou a ser “ampliar o investimento público em educação pública“, reconhecendo que nossa principal questão educacional, após a privatização desvairada do ensino que ocorreu no governo Fernando Henrique Cardoso, consiste em expandir o ensino público e nacional.
No dia 25 de outubro de 2012, a mesa da Câmara enviou o projeto, aprovado, ao Senado.
No último dia 28 de maio, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou o dispositivo com o seguinte texto:
“Meta 20: ampliar o investimento público em educação de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no 5º (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio.”
A justificativa do relator, José Pimentel (PT-CE), para suprimir a palavra “pública” após “educação”, não deixa de ser interessante:
“Ora, o nosso entendimento é de que estamos diante de um plano de educação que é nacional, não apenas do ponto de vista da abrangência dos entes que integram a Federação. Trata-se de um plano para a República, portanto, de todas as instâncias que se envolvem com a educação no País. Não é à toa que ele tem espaço para a atuação de uma multiplicidade de organizações. Ademais, ao passarmos a vista sobre as metas que integram o Plano, deduzimos que há fixação ou indução, no mínimo, tangencial de metas para o setor educacional privado. Essas metas invisíveis implicam, de certo modo, o reconhecimento da importância desse setor para o País. Se ele não for contemplado, não podemos adjetivar de nacional o nosso plano” (grifos nossos).
O senador considera, pelo visto, nacional tudo o que existe numa nação, mesmo aquilo que é ocupação ou propriedade estrangeira. Por essa lógica, a Petrobrás, a Shell do Brasil e a empresa do Eike teriam, as três, o mesmo status: seriam empresas “nacionais”…
Porém, o senador é mais claro ainda, ao definir os beneficiários da supressão: “… uma atuação que deveria ser supletiva à do Estado, acaba por se firmar como indispensável, em especial na educação superior. Note-se que o setor privado detém hoje cerca de 73% da matrícula na educação superior”.
O que é, claramente, uma referência às universidades de propriedade estrangeira, que, hoje, têm a maior parte desses 73%.
Outra vez, ressaltamos: não se trata de que, pelo Plano Nacional de Educação, uma universidade privada não possa receber recursos públicos. O que o senador está propondo é que seja considerado investimento público, para fins da meta do PNE, o dinheiro público gasto com entidades privadas, o que equivale a uma redução do investimento público em educação – ou, se alguém assim quiser, do investimento público em educação pública.
Os tucanos diziam que a educação privada também era pública. Por isso, tinham de receber dinheiro público. Agora, descobriu-se que mesmo as entidades estrangeiras também são nacionais…
GASTOS
Toda a mídia reacionária repete, no momento, mas já de algum tempo, a ladainha de que o problema do governo é que ele gasta muito. Portanto, é preciso cortar – e nem é necessário dizer que não querem cortar a despesa com juros, mas as verbas para tudo o que seja despesa não financeira (as chamadas “despesas primárias”: Saúde, Educação, etc., etc.).
Em parte – e infelizmente – o governo cedeu a esse cordão, que nem disfarça o objetivo dos cortes: aumentar a parcela dos bancos e demais especuladores no Orçamento. Isso é que é disciplina fiscal. O governo anunciou um corte de R$ 28 bilhões para todos os Ministérios – com exceção de Educação, Saúde, Desenvolvimento Social e Ciência e Tecnologia. Mas as hienas não foram saciadas. Nem os dois aumentos de juros perpetrados pelo BC foram capazes de saciá-las, exatamente porque são insaciáveis.
Mas isso ainda não é o pior.
O Tesouro Nacional, através do Relatório Resumido da Execução Orçamentária (RREO) de abril, informa que, no primeiro quadrimestre deste ano, o governo liberou -15,4% (menos 15,4%) em investimentos orçamentários que no mesmo período de 2012 (cf. STN, RREO sint., abril 2013, p. 4).
Não se trata de que no ano passado o governo tenha regado a economia com investimentos (muito menos investimentos orçamentários); pelo contrário, de janeiro a abril de 2012, o governo federal liberou meramente R$ 1,6 bilhão em investimentos – apenas 1,9% da dotação aprovada pelo Congresso.
Pois, agora, de janeiro a abril deste ano, o governo liberou menos: somente R$ 1,3 bilhão – ou 1,2% da verba aprovada pelo Congresso para 2013. Se estendermos o período até o último dia 27 de maio (o que pode ser obtido através do Sistema Integrado de Administração Financeira – SIAFI), essa percentagem sobe para 1,58%. Em cinco meses, o governo liberou menos de 2% dos investimentos do Orçamento.
O governo, portanto, reduziu os investimentos em relação a 2012, apesar do crescimento próximo de zero. Não serve de explicação a aprovação tardia do Orçamento – e não somente porque o governo não agiu como se fosse o principal interessado em aprová-lo; o fato é que já houve tempo para compensar esse atraso, sobretudo considerando a situação; no entanto, antes da aprovação do Orçamento, houve uma ordem para que se cortassem 10% dos gastos públicos federais – bem entendido, gastos não-financeiros.
ESTATAIS
O Departamento de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (DEST), do Ministério de Planejamento, acaba de publicar o relatório de investimento das estatais no segundo bimestre.
Por esse relatório, sabemos que os investimentos das estatais, de janeiro a abril, montaram a R$ 29.975.918.874 (vinte e nove bilhões, novecentos e setenta e cinco milhões, novecentos e dezoito mil e oitocentos e setenta e quatro reais).
Nada menos que 89,84% desses investimentos corresponderam ao grupo Petrobrás (em dinheiro: R$ 26.928.936.806).
As 19 empresas do grupo Eletrobrás (entre elas, Furnas, CHESF e Eletronuclear) investiram 5,8% do total (ou seja, R$ 1.742.355.329). Mas a verdade é que a previsão de investimento deste setor, estratégico para o desenvolvimento, já é algo ridícula: R$ 10.240.591.487 até dezembro para todo o grupo Eletrobrás. Existem, além do grupo Eletrobrás, quatro outras empresas federais de energia elétrica – mas com um investimento total que não chegou a R$ 100 milhões (mais exatamente: R$ 99.270.060).
[De passagem, é forçoso apontar algumas peculiaridades – ou, talvez, curiosidades. Por exemplo: depois de toda a retórica despendida com uma suposta necessidade de inovação da indústria brasileira, a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), do Ministério da Ciência e Tecnologia, liberou, em quatro meses, apenas 1,1% de sua dotação de investimentos para o ano – ou seja, R$ 313.900 (313 mil e 900 reais). Se a dotação anual já era minúscula (R$ 28.577.500 – 28 milhões, 577 mil e 500 reais), pior ainda a liberação. Mais uma vez constata-se que a retórica da suposta inovação parece ter o objetivo apenas de atribuir anacronismo à indústria nacional para “justificar” o desempenho industrial, medíocre não por causa das empresas nacionais, mas devido à política econômica.]
Vejamos, por programa, os principais investimentos das estatais:
1) Petróleo e Gás: R$ 16.117.223.536 (53,8% do total investido);
2) Combustíveis: R$ 9.013.378.962 (30,1%);
3) Energia Elétrica: R$ 1.841.625.389 (6,1%);
4) Desenvolvimento Produtivo: R$ 1.301.370.026 (4,3%);
5) Gestão e Manutenção de Infraestrutura de Empresas Federais: R$ 930.083.706 (3,1%).
Aqui temos 97,4% de todos os investimentos das estatais, de janeiro até abril. Todos os outros programas receberam investimentos que, somados, correspondem apenas a 2,6% do total.
FUNDO
Depois de expostos os números acima, percebe-se que não é um fenômeno extraordinário que a taxa de investimento do primeiro trimestre tenha caído (de 18,7% do PIB no último trimestre de 2012 para 18,4% do PIB no primeiro trimestre deste ano). Todas as loas de Mantega ao aumento de 4,6% na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), na comparação do primeiro trimestre de 2013 com o último trimestre de 2012, são uma folha de parreira que mais chama a atenção do que esconde a queda na taxa de investimento.
É assim que os adeptos da tese (dizem eles) de que “o carro-chefe do crescimento deve ser o investimento”, como declarou o presidente do BC, querem estimular os investimentos: reduzindo a taxa de investimento – e também o consumo. Aliás, resta saber por que algum empresário iria investir sem a perspectiva de aumento do consumo.
[O vice-presidente da FIESP, Benjamin Steinbruch, comentou o último aumento de juros do BC do seguinte modo: “Por que os bancos centrais aumentam as taxas de juros? (…) pode-se dizer que o aumento dos juros se dá para reduzir a demanda da economia, ou seja, para que as pessoas moderem o consumo de bens e serviços. (…) A lógica dos mortais levaria à conclusão de que, se os juros foram aumentados na última quarta-feira, estaria havendo no país uma elevada pressão de demanda, certo? Errado. (…) Depois de sustentar o crescimento do PIB no ano passado, o consumo das famílias cresceu apenas 0,1% no primeiro trimestre. (…) Ora, se não há crescimento do consumo, é lógico concluir que a inflação – na faixa dos 6% ao ano – não está sendo alimentada por esse consumo. E que não haveria necessidade de elevar os juros para conter uma demanda que já é pífia“. Em nossa opinião, isso mostra que o objetivo dos aumentos de juros nada tem a ver com a inflação, mas com o butim do setor financeiro.]
O resultado é que conseguiram rebaixar tanto a taxa de investimento quanto estagnar o consumo – e atribuem isso a um misterioso fator estrutural, quando não passa de efeito da política econômica.
Se usarmos um arredondamento dos números que esconda menos os problemas, veremos que o próprio crescimento do PIB, apesar de minúsculo, foi inferior ao do trimestre passado. Basta, ao invés de usar uma casa decimal, usar duas: 0,64% (4º trimestre de 2012) contra 0,55% (1º trimestre de 2013).
Não se trata de minudências. Pelo contrário, o que se procura definir é a tendência. Ainda mais quando é um resultado que foi propagandeado, antes de sair, como a salvação da lavoura – digo, da economia (a lavoura até que não foi mal: sobretudo a da soja, que evitou uma variação negativa do PIB).
UM, DOIS, TRÊS PÊS
Tínhamos encerrado este texto com algumas observações sobre a taxa de poupança, que voltou ao nível do último ano do governo Fernando Henrique, há 10 anos, uma das mais baixas da História do país: 14,1% do PIB. Mas há algo mais importante, no momento. De qualquer forma, a poupança é, fundamentalmente, uma função do investimento. Somente os vigaristas que pretendem entregar o país a retalho, é que berravam (e ainda berram) que o investimento é pequeno no Brasil porque a poupança interna é pequena – logo, temos a necessidade imperiosa de ser dependentes da “poupança externa” (até o dia do juízo final, ou um pouco depois dele).
A verdade, como nossa História já demonstrou, é justamente o contrário: “a poupança não determina o investimento, mas, ao contrário, é precisamente o investimento que cria a poupança” (M. Kalecki, “Algumas observações sobre a teoria de Keynes“, in “Clássicos de Literatura Econômica: textos selecionados de macroeconomia”, 3ª ed., IPEA, Brasília, 2010, p. 50).
Não é por acaso que, no momento, a poupança interna é desperdiçada com multinacionais, ao invés destas fornecerem ao país alguma “poupança externa” transformada em investimento.
Apesar disso, há uma nova forma de dependência – sobretudo dependência ideológica – da “poupança externa”: o conto das concessões.
Em recente artigo, o economista José Carlos de Assis – que, como nós, está longe de ser um oposicionista ao atual governo – fez uma observação bastante precisa:
“Só os ideólogos do neoliberalismo e os ingênuos podem acreditar em PPP [parceria público-privada] para empreendimento novo“.
E define a essência do que é PPP:
“Ela é uma variante da privatização, que foi a ‘solução’ para que o Estado transferisse ao setor privado a siderurgia, as telecomunicações, as distribuidoras elétricas, os bancos estaduais, a Vale do Rio Doce e a RFF em condições, como foi fartamente comprovado, de extrema generosidade. Não seria assim tão fácil se o que o Governo vendesse fosse uma autorização para a construção dessas empresas. É isso, porém, que se quer com as PPPs da logística a construir.”
Na verdade, talvez o que se queira realmente com as “concessões” não seja construir algo novo, mas, exatamente, passar para a propriedade, principalmente estrangeira (como não cansam de nos lembrar os srs. Mantega, Figueiredo, etc.), os bens públicos, sem dizer que se está procedendo, precisamente, a uma privatização.
É difícil imaginar – como reaprendeu (será?) o ministro Mercadante no Congresso da UNE – ilusão mais tola, mais vã, e mais precocemente fadada à perdição, do que essa.