CARLOS LOPES
(HP 23/08/2006)
Quando o líder da Revolução de 1930, Getúlio Vargas, a 10 de novembro daquele ano entrou no Palácio do Catete para tomar posse como presidente, o país estava economicamente arrasado por décadas de submissão aos banqueiros externos – sobretudo os ingleses – e pelos privilégios à oligarquia cafeeira, que antes detinha o poder.
Desde o governo Campos Sales (1898-1902), o Brasil trabalhava para pagar juros à banca londrina. Com o “Convênio de Taubaté”, em fevereiro de 1906, pelo qual o governo de São Paulo, tendo como avalista o governo federal, é autorizado a contrair diretamente empréstimos no exterior para garantir os lucros – e, sobretudo, cobrir os prejuízos – da oligarquia cafeeira, a dívida passa a ser monstruosa. Com toda a sangria desatada a partir de Campos Sales, a dívida passa de 30 a 90 milhões de libras esterlinas entre 1889 e 1910. Eram, em sua maioria, empréstimos externos pagos pelo Estado, ou seja, pelo trabalho de toda a população, para beneficiar apenas o pequeno setor que detinha o poder. Ao mesmo tempo, esse endividamento financiava a vasta enxurrada de importações, impedindo o desenvolvimento da indústria nacional.
Somente a barreira às importações devido à I Guerra Mundial (1914-1918), que trouxe como consequência algum desenvolvimento da indústria, adiou a crise. Terminada a guerra e restaurada a política econômica da oligarquia, já em 1921, com a queda dos preços internacionais do café, a economia entra em colapso. A solução do governo Epitácio Pessoa é a de sempre: mais empréstimos aos bancos ingleses para evitar os prejuízos da oligarquia, fazendo com que o povo pague por eles. Não por acaso, no ano seguinte irromperia o primeiro levante tenentista, o do Forte de Copacabana.
Três anos depois, em 1924 – ano da revolução de 5 de julho, em São Paulo, e do início da Coluna Prestes -, o país estava outra vez quebrado e assoberbado pelos pagamentos da dívida. Os bancos ingleses, diante da possibilidade de deixarem de receber seus juros, exigem a privatização das estatais então existentes, o Banco do Brasil e a Central do Brasil. Querem o patrimônio público brasileiro, que, apesar de ainda incipiente, é muito mais concreto do que a espera por receber juros de um país devastado por eles e seus sequazes internos. Apavorados com a possível inadimplência do país, os bancos externos querem esse patrimônio sem conceder novos empréstimos, o que faz com que a oligarquia cafeeira apóie a recusa do governo – no qual eventualmente estava um presidente, o mineiro Artur Bernardes, que não era seu direto representante – contra as exigências inglesas.
ADESISMO
No entanto, com Washington Luiz, sucessor de Bernardes, a oligarquia cafeeira terá um presidente seu. Não deixa de ser cômico que alguns epígonos tardios da oligarquia tentassem passar o autoritarismo doentio de Washington Luiz como prova de sua independência. Sua vida política é, na verdade, a de um adesista.
Nascido no interior do Estado do Rio de Janeiro numa família de escravocratas que forneceu ao Império um ministro da Fazenda e outro do Exterior, Washington Luiz, após a República tornou-se republicano, transferindo-se para São Paulo.
Lá, foi a princípio opositor feroz da oligarquia cafeeira, em especial de Campos Sales e Rodrigues Alves, mas, depois que, em 1900, não teve sua eleição a deputado reconhecida – na República Velha não bastava ser eleito: para tomar posse era necessário ter o mandato reconhecido por uma comissão, naturalmente composta por partidários do governo – e após seu casamento com a filha de um dos maiores cafeicultores do país, Washington Luiz aderiu completamente, e histericamente, à oligarquia, sua política, seu esbulho econômico interno e sua subserviência externa.
Como presidente, sua retórica foi a da “estabilidade” – o que significava, à semelhança de Fernando Henrique em relação a Wall Street, colocar o país à serviço dos bancos ingleses. A reforma monetária de 1926, apresentada pelo seu futuro candidato a sucessor, Júlio Prestes, tinha explicitamente esse objetivo.
Essa política contou, no entanto, com a oposição do outro Estado decisivo da federação, Minas Gerais. Daí a tentativa de usar o Rio Grande do Sul como contrapeso à Minas, com a nomeação de Getúlio Vargas para ministro da Fazenda. Getúlio, que havia de início recusado o cargo, tentou estabelecer uma política cambial de incentivo às exportações e de barreira às importações, favorecendo o desenvolvimento da indústria. Mas não ficaria senão um ano no Ministério. Exonerou-se em dezembro de 1927, e, em seguida, assumiu o governo do Rio Grande do Sul.
Havia se acumulado demasiado material inflamável tanto na política quanto na economia. A partir de 1925 as exportações de café haviam estagnado, enquanto a produção interna crescera 100%, com a formação de imensos estoques – em 1929 o valor deles atingia 10% do PIB brasileiro – comprados pelo governo com os empréstimos externos. Enquanto isso, entre 1920 e 1929 as importações cresceram 100%, mas as exportações somente 10%.
CRISE
No último trimestre de 1929, quando explodiu a crise do capitalismo mundial, o preço do café, e com ele a economia do Brasil, despencaram no abismo: em seis meses, de 22,5 centavos de dólar por libra [1 libra=0,45 kg], o preço do café caiu para 8 centavos de dólar por libra.
Em poucos meses, com a manutenção da política de “valorização” do café – isto é, a compra pelo governo dos encalhes, com a formação de gigantescos estoques -, no mesmo momento em que secavam os empréstimos externos e os banqueiros ingleses em pânico passavam a cobrar a dívida, as reservas cambiais brasileiras desceram a zero. Quando Getúlio entrou no Catete, o país não contava com um único centavo de reservas monetárias.
Como consequência da crise, a desvalorização da nossa moeda provocou uma alta generalizada nas mercadorias importadas, com uma explosão de falências, desemprego, miséria e fome, num país já exangue com uma crise interna que vinha desde o início da década de 20.
Apesar disso, a política do governo Washington Luiz foi a de tentar assegurar à oligarquia cafeeira a continuação do paraíso artificial em que vivia às custas da coletividade. Acabadas as reservas monetárias, lançou mão das reservas em ouro para pagar aos bancos externos.
Esta foi a base econômica do rompimento da política do “café com leite”, que revezava oligarcas paulistas e mineiros na Presidência da República, e da Revolução de 30.
RECONSTRUÇÃO
O programa inicial da revolução já havia sido esboçado por Getúlio no discurso de apresentação da Aliança Liberal. Era todo um plano de reconstrução do país que agora ele reitera em seu discurso de posse. Significava a unidade de todas as forças do país – daí a anistia aos perseguidos pela República Velha; a construção de um Estado Nacional, um Estado que representasse o conjunto do povo, para realizar as suas aspirações e a sua vontade; um novo modelo econômico, centrado no mercado interno, com exceção das “sobras exportáveis”, isto é, do que excedesse as necessidades internas; o amparo à produção nacional; o fim dos privilégios aos monopólios privados estrangeiros; a regulamentação das relações trabalhistas; e um plano geral de transportes – naquela época, a comunicação entre os vários pontos do país era, ainda, realizada principalmente pela navegação costeira.
QUATRO PILARES
Mas, como foi possível sair da situação em que nosso país estava em novembro de 1930 para realizar esta gigantesca obra? Basicamente assentando-se sobre quatro pilares, os quais implicavam na mobilização do povo, na promoção dos trabalhadores a personagens decisivos da História nacional, no desenvolvimento da indústria e em utilizar os recursos internos como mola propulsora do crescimento.
O primeiro pilar em que se sustentou a política econômica do governo de Getúlio Vargas foi o rompimento com a ilusão servil de que o país só poderia sair da crise quando o capitalismo mundial também saísse. Toda a política da República Velha, a partir da crise de 29, estava baseada nessa melancólica premissa, isto é, a de que quando os países centrais, os países imperialistas, se levantassem, o café e outros produtos agrícolas, nossa “vocação natural”, aumentariam outra vez de preço, os lucros dos exportadores de café estariam garantidos, e sobrariam mais recursos para o Estado e o país, que, então, continuaria a viver, ou a vegetar, exatamente como antes.
Basta uma comparação com os EUA para perceber que não foi qualquer melhora na situação dos países centrais que fez com que o Brasil superasse a crise, mas uma política nacional de desenvolvimento, conscientemente baseada na poupança interna e no mercado interno.
SUPERAR A CRISE
O Brasil foi o primeiro país capitalista do mundo a superar a crise. Somente a partir de 1934 os EUA voltaram a crescer, para depois entrar em outra crise, na segunda metade da década de 30. Em 1931, a indústria brasileira já tinha voltado a crescer – e o conjunto da economia voltou a crescer em 1933, um ano antes, portanto, dos EUA, com alguns setores decisivos superando amplamente os índices anteriores: a produção de bens de capital, por exemplo, cresceu 60% em 1933, comparada com 1929. Em 1937, ano em que os EUA entram outra vez em crise, nossa produção industrial foi 50% maior que em 1929 e a produção destinada ao mercado interno, 40% maior. Quanto à renda, nesse ano ela tinha aumentado 20% – o que correspondia a mais 7% per capita – em relação a antes da revolução. No mesmo período, a renda per capita dos EUA diminuiu.
DESMASCARAMENTO
O segundo pilar da política econômica da Revolução de 30 foi o desmascaramento do engodo de que vivemos num mundo em que todos são iguais, têm iguais oportunidades e concorrem em igualdade de condições num mercado livre. Esse engodo era tanto mais fatal quanto a política dos países centrais para superar a depressão, especialmente a da Inglaterra, consistia, precisamente, em aumentar a espoliação sobre os povos, economias e países dependentes. A política de submissão significava, portanto – e tão somente – o estrangulamento do país. Tornou-se claro para Getúlio a implacável guerra de monopólios em que tinham se transformado as relações internacionais, particularmente as relações econômicas entre países capitalistas centrais e países como o nosso.
A atitude de Getúlio diante desse problema fundamental está bem representada em um trecho de seu “Diário”, correspondente ao dia 31 de julho de 1933:
“Recebi, à tarde, o sr. John Simon, Ministro do Exterior da Inglaterra. Falou-me na questão do sr. Lazard, Brothers [um dos bancos ingleses que especulavam com a dívida brasileira]. Como estes homens defendem os interesses materiais dos seus nacionais, mesmo quando pretendem nos explorar”…
A Inglaterra era, então, a maior potência bélica do mundo, com os EUA dedicados, desde o final do governo Wilson (1921), a explorar sua expansão imperialista anterior, política conhecida como “isolacionismo”. Logo no início de 1931, a Inglaterra enviou ao país uma missão de banqueiros. Alguns dias depois chegou ao país o príncipe de Gales, o herdeiro da coroa britânica, o futuro rei Eduardo VIII, que se dedicou a tentar inflar o ego do novo presidente, tal como ainda é o procedimento dos colonialistas para com os sátrapas e governantes dos países aos quais exploram. Getúlio, em seu “Diário”, anota os seus sentimentos: “recebo, constrangido, a Grã-cruz do Império [Britânico], que, por cortesia, sou obrigado a usar”.
Já em 1º de março desse ano, Getúlio tinha chegado à conclusão de que era necessário suspender as transferências aos bancos ingleses. Ou era isso ou, mais uma vez, a devastação do país.
O que nos leva ao terceiro pilar da política econômica revolucionária: o estancamento da hemorragia externa, com o direcionamento dos nossos recursos para o desenvolvimento.
No dia 21 de setembro de 1931, o Brasil suspende oficialmente a drenagem de recursos para os bancos externos. Em 10 de outubro, durante reunião do Ministério, é decidido que “parte das quantias cujo pagamento é suspenso seja empregada no desenvolvimento econômico do país, e que não seja toda ela reservada para o oportuno restabelecimento do serviço da dívida”.
NAÇÃO BRASILEIRA
A partir de então, banqueiros, monopolistas e representantes imperialistas, antes tão petulantes e seguros de que mandavam – e, principalmente, de que desmandavam – no país, tiveram que lidar, naturalmente que a contragosto, com uma Nação e não com uma colônia. Em dezembro de 1931 eles começaram a entrar em acordo com o Brasil, e em março de 1932 eles o fazem formalmente.
No entanto, uma outra anotação de Getúlio em seu “Diário”, de janeiro de 1936, é ilustrativa da dificuldade dos colonialistas em aceitar a realidade:
“O embaixador inglês apresentou-se no Catete pretendendo ser recebido imediatamente para reclamar contra uma lei votada pela Câmara e ainda não sancionada que, segundo sua opinião, prejudicava os interesses ingleses. Respondi que, naquele momento, não poderia recebê-lo, e que procurasse o ministro do Exterior. Zangou-se, protestou e foi embora”.
Anteriormente, os banqueiros franceses e seu governo tentaram tomar represálias, inclusive com a recusa de entregar material, já pago, para reaparelhamento das Forças Armadas. A resposta do governo revolucionário, em outubro de 1932, foi decretar a elevação ao dobro dos impostos sobre os produtos franceses. Rapidamente os problemas foram solucionados.
INDUSTRIALIZAÇÃO
O quarto pilar da política de reconstrução econômica foi colocar a produção e exportação de café a serviço do país, investindo parte dos recursos advindos daí na industrialização do Brasil.
Antes da revolução, a política em relação ao café era traçada pelo Conselho Nacional do Café (CNC), um órgão escolhido pelos “Estados produtores”, ou seja, diretamente pela oligarquia cafeeira e não pelo governo. Como o governo federal e o poder político da oligarquia eram praticamente a mesma coisa, não havia necessidade de nenhum controle público sobre a produção e a exportação da principal mercadoria e fonte de divisas do país. Cabia ao governo meramente garantir a “independência” do CNC em relação à sociedade – e referendar os interesses de produtores e exportadores, com os empréstimos externos para a aquisição de estoques, de onde vinham os seus lucros, forçando o conjunto da população a pagar essa dívida.
O resultado era uma inundação de café impossível de ser absorvida por qualquer mercado, seja externo ou interno, pois o governo sempre comprava o excesso. Em 1929, a produção brasileira de café atingiu 28 milhões e 941 mil sacas (1 saca=60 kg), enquanto a exportação foi de 14 milhões e 281 mil sacas. Ou seja, fora o consumo interno, que não era muito num país com população relativamente pequena, sobraram quase 15 milhões de sacas.
Getúlio agiu no sentido, primeiro, de defender o preço do café, queimando estoques: era o nosso principal produto, de onde poderiam vir os recursos para o desenvolvimento do país. No entanto, era exatamente o produto sob o domínio dos antigos detentores do poder, depostos pela revolução.
O primeiro conflito ocorreu logo em março de 1931: diante da débâcle mundial, o preço da saca havia caído para 8 centavos de dólar, e continuava caindo. Os representantes da oligarquia propõem, então, o uso de recursos públicos para elevar a 12 centavos o preço pelo qual vendiam o produto. Getúlio decide recusar esse sacrifício da coletividade em prol de uma minoria.
INDEPENDÊNCIA
Em setembro, o Conselho Nacional do Café é subordinado ao Ministério da Fazenda – seria depois extinto, com a fundação do Departamento Nacional do Café. Em dezembro, é instituída uma nova política para o produto, com o aumento do imposto de exportação e a destruição de 12 milhões de sacas/ano. Por um lado, aumentava-se a receita do Estado, colocando os recursos do café à disposição do desenvolvimento. Por outro, impedia-se que o preço caísse ainda mais, para manter o emprego, a renda e o valor da moeda até que uma nova estrutura econômica, tendo por base a indústria, se consolidasse.
A política sobre o café passava, então, a ser determinada pelo Brasil e não pelo exterior.
Com a suspensão das transferências aos bancos externos e a passagem das decisões sobre o café para o Estado, era a própria política econômica que passava ao controle da Nação. Até então ela estivera sob o controle externo. Realizava-se, assim, a afirmação de Oswaldo Aranha, ministro da Justiça, que em novembro de 1930 definira o caráter das medidas revolucionárias: “Até aqui o povo obedecia ao governo; agora, é o governo que obedece ao povo”.