No mesmo dia, apenas algumas horas depois de Trump ter declarado sua intenção de suspender as medidas contra o coronavírus até a Páscoa (segundo ele, “podemos perder um certo número de pessoas devido à gripe”, mas “ nosso país não foi projetado para fechar”), Bolsonaro apareceu na TV para dizer a mesma coisa, sem esperar até a Páscoa:
“… autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa.”
“Terra arrasada”?
Os governadores e prefeitos estão preservando o mais importante, as vidas, sem as quais não existe transporte, nem comércio, nem economia.
Porém, Bolsonaro chamou outra vez de “histeria”, e “pânico” induzido pela mídia, a pior epidemia enfrentada pela Humanidade em mais de 100 anos. Para completar o show de indignidades, zombou dos que já estão doentes:
“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho.”
Certamente, é o próprio Übermensch – o super-homem ariano (ariano?) dos nazistas. Mas não deu muito certo da última vez que esses super-homens se meteram a besta…
O desprezo pela vida dos outros, pela vida dos demais seres humanos, é intrínseco ao fascismo – e quanto mais tosco, paleolítico, estúpido é o fascista, mais desprezo pela vida humana, como aquele que, com as patas fincadas na Universidade de Salamanca, em 1936, gritava “Viva la muerte! Abajo la inteligencia!”.
Foi isso o que sentiram, do governador Caiado até os oficiais das Forças Armadas, na aparição de Bolsonaro, terça-feira à noite, em rede nacional. Um negócio sinistro de tão insano – e, leitores, o fato de ser insano não o torna menos nazista. Pelo contrário.
Bolsonaro, fixo em uma ditadura, aproveitou, na quarta-feira pela manhã, para tentar arrumar um incendiozinho do Reichstag (o parlamento alemão em que Hitler tocou fogo, para acusar disso a oposição).
Disse Bolsonaro:
“Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem. Ninguém sabe o que pode acontecer no Brasil.”
“Que vocês tanto defendem”?
Se quem defende a “normalidade democrática” são “vocês”, a decorrência é que não é ele que a defende – pelo menos, não “tanto”.
Porém, o presidente da República, responsável maior pela normalidade democrática, é Bolsonaro.
Então, o que é isso, senão mais uma confissão, ainda que covarde, acoelhada, nojenta, de que ele defende a anormalidade ditatorial?
Os repórteres presentes à entrada do Alvorada perguntaram, obviamente, o que ele queria dizer com “sair da normalidade democrática”. Disse ele:
“Sai porque o caos faz com que a esquerda se aproveite do momento para chegar ao poder. Não é da minha parte não, fique tranquilo.”
Aqui, é mais a canalhice do que a covardia, embora a primeira seja inseparável da segunda.
Não há, dentro do país, no momento, um risco à normalidade democrática que não seja Jair Bolsonaro. Até porque não existe governo Bolsonaro algum, que não seja sua família e suas milícias, sempre com o golpe, a ditadura, a tortura, o assassinato de democratas em vista. Até para redigir o infecto pronunciamento de terça-feira, foi chamado Carlos Bolsonaro e afastada a equipe do Planalto.
Aquilo que hoje funciona de modo diferente no Estado brasileiro, é apesar desse governo miliciano-familiar.
Por que Bolsonaro não se preocupa em formar uma base parlamentar, como todo presidente faz em uma democracia semelhante à nossa?
Porque a sua política é o golpe de Estado e a ditadura, não a democracia parlamentar.
Por que Bolsonaro, sistematicamente, infringe a lei, em medidas e projetos – e, quando estoura o escândalo, recua?
Porque, como todo fascista, está testando a opinião pública, inclusive as instituições, tentando ganhar espaço para uma ditadura, tentando, como se diz, virar a correlação de forças a favor do fascismo.
Daí, essa tática, que parece um morde-assopra.
Essas coisas – essas monstruosidades – são de tal forma fixas em sua cabeça que, em dezembro passado, já presidente da República, perguntado sobre o que faria, se aparecesse, em seu governo, um ministro envolvido em corrupção, respondeu:
“Se aparecer, boto no pau de arara o ministro, se ele tiver responsabilidade, obviamente.”
Isso foi há três meses, em Palmas, Tocantins.
Não há diferença para:
“Através do voto você não vai mudar nada nesse país, absolutamente nada. Só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazer um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando pelo FHC. Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem. Em tudo quanto é guerra morrem inocente” (Bolsonaro, programa Câmera Aberta, Band, 23/05/1999).
Ou, perguntado se fecharia o Congresso, caso eleito presidente:
“Não há a menor dúvida. Eu daria golpe no mesmo dia. [O Congresso] não funciona e tenho certeza que pelo menos 90% da população ia bater palmas. O Congresso hoje em dia não serve para nada” ( Bolsonaro, idem).
E, mais recente:
“… o erro da ditadura foi torturar e não matar” ( Bolsonaro, entrevista à Jovem Pan, junho de 2016).
Esse é o risco para a normalidade democrática no Brasil.
CARLOS LOPES