“O argumento de ineditismo é um estratagema que tenta dissimular a falta de investimento”, afirma o especialista Roberto Pereira D’Araujo
Reproduzimos a seguir o artigo de Roberto Pereira D’Araujo, engenheiro eletricista e diretor do Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético), sobre a atual crise hídrica.
Negacionismo no setor elétrico
Roberto Pereira D´Araujo (*)
Assim como ainda existem cidadãos que creem que remédios contraindicados curam a COVID, muitos ainda julgam que a atual crise hídrica é uma tragédia inédita, onde o culpado é São Pedro.
Claro que podemos ter um drama energético, mas não há surpresas na atual crise. Para deixar isso mais do que evidente, basta examinar dados históricos das afluências do sistema para perceber que, até o mês de agosto, os anos 1953, 1955, 1971 registraram condições hidrológicas piores do que 2021. Se o “campeonato” é de anos consecutivos de secura, os números dos anos 1949 – 1956 ainda são piores do que a série 2014 – 2021. Comparado com esses, o ano de 2001, o do racionamento, é um dilúvio. Ver gráfico.
A crise climática e o desleixo brasileiro com a Amazonia, podem causar situações um pouco piores do que nossas secas históricas. Mas, o argumento de ineditismo é um estratagema que tenta dissimular a falta de investimento.
Vamos lembrar que reservatórios se esvaziam por mais de uma razão:
- As afluências são menores do que a água usada para gerar energia. Essa seria a única culpa da natureza.
- Faltam outras usinas, mesmo sem reservatório, que aliviem a responsabilidade de geração das com reservatório.
- Gargalos de transmissão impedem transferências de energia entre regiões, reduzindo o papel de “vasos comunicantes” que nosso sistema tem.
- Parte significativa da “oferta” de energia é tão cara, que a lógica de operação adia seu uso e, em seu lugar, as hidráulicas têm que gerar piorando o estoque dos reservatórios.
Essa constatação é muito preocupante porque o setor elétrico brasileiro já é majoritariamente privado em quase todas as suas fases e a promessa feita para o futuro é o avanço da privatização, fazendo com que o Brasil seja o único país entre os líderes da hidroeletricidade que terá seu setor todo privado.
O desvio de um planejamento e a deficiência de investimento não são uma mera opinião. O plano decenal 2021, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética em 2011, previa 117 GW de usinas hidroelétricas. Nosso parque só tem 109 GW. Em compensação, o plano previa 26 GW de térmicas e, hoje, temos 37 GW, sendo que há quatro vezes mais térmicas a óleo combustível do que estava previsto.
Apesar da exaltação dos leilões, não há formação de capital fixo nas compras de usinas hidráulicas existentes. Sob o controle privado, cerca de 18 GW foram adquiridas de estatais, e aproximadamente 24 GW só foram viáveis através de parcerias com empresas públicas de forma minoritária. Apenas 8 GW de hidráulicas são do setor privado desde sua origem. Portanto, 59 GW ainda são estatais. O cenário das térmicas é o inverso, pois 71% dos 32 GW disponíveis são do setor privado.
Graças aos constantes ventos do nordeste, fomos bem nas eólicas, mas, ainda é cedo para comemorar. Elas cuidam de 10% do nosso consumo enquanto a Dinamarca já conta com mais de 50% da sua energia oriunda do vento. https://www.statista.com/statistics/217804/wind-energy-penetration-by-country/
Esse ensolarado país tropical, abençoado por Deus, tem menos de 2% dos seus kWh advindos do sol, enquanto a Austrália e Alemanha já ultrapassam 10%. https://ourworldindata.org/renewable-energy
O Brasil, até hoje, não entendeu que a geração distribuída significa alívio para o sistema, e, considerando sobretudo o interesse financeiro das distribuidoras, já preparam a taxação de usinas dos telhados fotovoltaicos!
Uma conta surpreendente mostra que uma área equivalente a 27% do Estado do Sergipe seria capaz de gerar toda a energia consumida no Brasil a partir de fotovoltaicas! Ninguém está propondo essa aventura, mas, a conta corrobora que o necessário para gerar energia solar é uma área ensolarada. Imaginem as superfícies dos reservatórios das usinas, onde placas flutuantes, em trechos perto da subestação, poderiam aliviar a geração da própria usina. Como esse fantástico potencial está sendo avaliado no processo de privatização da Eletrobras?
Por fim, quanto está custando essa aventura mercantil mal planejada para a economia e para os consumidores brasileiros. A Agência Internacional de Energia já nos classifica como os vice-campeões da carestia elétrica pelo método de paridade do poder de compra. https://www.iea.org/data-and-statistics/charts/residential-electricity-prices-in-selected-economies-2018.
Como os dados são de 2018, contadas as bandeiras, jabutis dentro de medidas provisórias e a crise anunciada e desprezada, vamos vencer o vergonhoso campeonato. Certamente dirão que a culpa é dos impostos. Claro que são altos, mas a Alemanha, Portugal, Dinamarca e Áustria ainda nos vencem nesse quesito.
O negacionismo atingiu o setor elétrico. Nesse caso, nem se trata de ciência, mas sim de desprezar dados históricos. Propaga-se a receita já testada em 2001 onde o capital, perante liquidações de ativos prontos, prefere aguardar a venda. O Brasil não aprende que a solução é a vacina do planejamento, revisão profunda do modelo e a essencialidade de uma Eletrobras a ser reconstruída, blindada de interesses políticos e privados. Aliás, como sempre dispôs o seu estatuto, sempre desobedecido por todos os governos dos últimos 30 anos.
(*) Engenheiro Eletricista – Diretor do Instituto Ilumina
Reproduzido do site Ilumina. Publicado originalmente no Valor Econômico