“Elevando ainda mais o custo, joga-se fora a história da qualidade energética comandada pela estatal. Afinal, toda a estrutura do sistema interligado foi concebida pela Eletrobras. Mesmo hoje, época dessa grande mudança tecnológica, ela exerce papel essencial”, afirma o engenheiro Roberto D’Araujo, diretor do Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético), em artigo publicado no Valor Econômico que reproduzimos a seguir.
Vamos ter saudades da Eletrobras
Roberto D’Araujo
Calcado em muitas desinformações, aprovaram a excêntrica medida provisória que chega a impor a contratação de térmicas, ignorando a transição energética e o fato de que, fruto da ausência do mercado livre na expansão planejada, multiplicamos por seis a capacidade de térmicas nos últimos vinte anos.
Infelizmente, a “capitalização” da Eletrobras está próxima. Elevando ainda mais o custo, joga-se fora a história da qualidade energética comandada pela estatal. Afinal, toda a estrutura do sistema interligado foi concebida pela Eletrobras. Mesmo hoje, época dessa grande mudança tecnológica, ela exerce papel essencial.
Os desatentos consumidores sequer lembram que a Eletrobras exercia de forma integrada o que o Operador Nacional do Sistema, a Empresa de Pesquisa Energética e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica fazem hoje de forma fragmentada, gerando muitos conflitos. Nem é preciso citar o alto custo de três administrações. Mas se a alta tarifária se devesse apenas a essa fragmentação, estaria tudo resolvido. A verdade é que, de 1995 até hoje, foram criados mais de dez encargos, antes inexistentes.
A Agência Internacional de Energia, usando a paridade de poder de compra, nos coloca como vice campeões da energia cara, uma indigna posição para quem tem sua energia baseada em hidreletricidade. Usar uma parte da venda de um ativo para disfarçar os altos custos que resultaram do modelo é inútil e ridículo.
“O Brasil será o “esdrúxulo” entre os países que contam com a hidreletricidade como base importante de sua matriz. China, Canadá, Suécia, Noruega, Rússia, Índia, Estados Unidos e a pobre Venezuela não adotam essa política. Seremos o ponto fora da curva de um seleto clube.”
O Brasil será o “esdrúxulo” entre os países que contam com a hidreletricidade como base importante de sua matriz. China, Canadá, Suécia, Noruega, Rússia, Índia, Estados Unidos e a pobre Venezuela não adotam essa política. Seremos o ponto fora da curva de um seleto clube. A fraude do governo está patente no documento “Capitalização da Eletrobras” de fevereiro de 2021 editado pelo Ministério de Minas e Energia. Ali, está declarado que a maioria das hidrelétricas americanas são da iniciativa privada. Para fazer essa “ilusão” contaram as usinas independente da potência. Na realidade, 67% da capacidade de geração hidrelétrica pertence ao Estado americano.
Sobre a “capitalização”, há também ingenuidade ao considerar que o máximo de 10% de ações, impediria o controle de um grupo. Basta um contrato de gaveta entre alguns e as votações no conselho de administração podem surpreender.
Para mostrar a enrascada que vamos nos meter, em janeiro de 2010, antes da MP 579, que tentou compensar apenas sobre a Eletrobras a explosiva alta tarifária, a ação da estatal chegou a valer R$ 20. Corrigindo apenas pelo IPCA para hoje, o valor é R$ 37,50, próximo ao valor de hoje na Bovespa, revelando que, nessa época, o próprio mercado de capitais avaliava muito bem a Eletrobras.
Uma ação ELET3 valia US$ 11,25 nessa data. Hoje, vale US$ 6,7, quase a metade. O desprezo por esse aspecto é uma atitude misteriosa, pois, afinal, trata-se da maior geradora de energia da América Latina. Para que o Brasil igualasse o valor de 2010 em dólar, teríamos que atingir R$ 72. É razoável uma empresa que supre o insumo essencial de uma economia valer a metade em tão pouco tempo?
“A ótica mercantilista é uma estratégia para tratar esses ativos como meras fábricas de kWh. Só quem não conhece a história da Chesf que, criada em 1945, foi fundamental para o desenvolvimento do Rio São Francisco, adota essa visão. Apesar das mudanças “liberais” da década de 90, ela exerceu diversas ações relacionadas ao desenvolvimento regional.”
A ótica mercantilista é uma estratégia para tratar esses ativos como meras fábricas de kWh. Só quem não conhece a história da Chesf que, criada em 1945, foi fundamental para o desenvolvimento do Rio São Francisco, adota essa visão. Apesar das mudanças “liberais” da década de 90, ela exerceu diversas ações relacionadas ao desenvolvimento regional.
Por outro lado, desde 1995, marco zero do modelo mercantil, a Eletrobras foi manipulada para socorrer as expectativas frustradas da modelagem. Todas essas “estratégias” impostas à empresa feriram seu estatuto. No capítulo II, ¶ 3º, ele estabelece limites para uso em políticas que impliquem prejuízo, situações onde ela deveria ser ressarcida pelo Tesouro.
Tanto na obrigação de adquirir distribuidoras, tanto na descontratação de 2003, tanto nas sociedades de propósito específico feitas para socorrer o modelo, tanto na dose da redução tarifária de 2013, como na redução drástica da equipe, todas essas ações violaram o estatuto. Chega a ser inacreditável que o Brasil tenha que vender uma empresa pública como a Eletrobras para obrigar pessoas cumprirem regras. Isso é vergonhoso!
“A recente drástica redução de pessoal revela a intenção de descartar qualquer expertise do seu quadro técnico, limitando a empresa a seus ativos, mesmo que a venda ainda não esteja decidida. Alguém acha que isso seria possível num país republicano?”
Alvo de acusações de excesso de funcionários, qualquer comparação com empresas semelhantes mostra o inverso (www.power-technology.com/features/worlds-biggest-power-companies-2018/). A recente drástica redução de pessoal revela a intenção de descartar qualquer expertise do seu quadro técnico, limitando a empresa a seus ativos, mesmo que a venda ainda não esteja decidida. Alguém acha que isso seria possível num país republicano?
Dada a recente crise hídrica, que pode ter origem no aumento do desmatamento, conflitos começam a surgir no entorno dos reservatórios. Só os da Eletrobras somam uma área de mais de 18.000 km2, 80% da área do Estado de Sergipe. Que medidas seriam adotadas para que uma “capitalizada” Eletrobras mantivesse essas negociações?
Já imaginaram o potencial de energia solar em placas fotovoltaicas flutuantes nesses reservatórios, que gerariam energia na proximidade das subestações. De quem é esse potencial?
Além disso, não houve essa independência e pujança do capital para investir no setor elétrico brasileiro. Dados mostram que, na anunciada venda do governo FHC, tanto os investimentos da Eletrobras quanto os investimentos privados foram interrompidos. O capital aguardava a venda e as estatais cortaram investimento, pois seriam privatizadas. Qualquer semelhança com a situação atual não é mera coincidência.
A venda de mais de 80 empresas na década de 90, (Vale, Embraer, Petroquímica, Metalurgia e parte do setor elétrico) rendeu US$ 106 bilhões (dado do BNDES). Os dispêndios desse banco no período 1995-2020 somaram quase R$ 4 trilhões, seis vezes a receita que supostamente iria salvar o país.
Assim, ao contrário da lenda de que privatização libera o Estado para cuidar de educação, saúde e segurança, o que se viu foi uma necessidade de financiar e oferecer parcerias para que o capital aceite o risco de investir no Brasil.
A futura saudade não trará a Eletrobras de volta.
Roberto Pereira D’Araujo é engenheiro eletricista, com M. Sc. em Sistemas de Potência e diretor do Instituto Ilumina. roberto@ilumina.org.br.
Reproduzido do Valor Econômico