CARLOS LOPES
A conclusão – e, por assim dizer, o conceito reitor – de Ronald Freitas, em seu estudo sobre o Estado brasileiro, é o de que vivemos, hoje em dia, sob um “estado disfuncional”. Literalmente:
“… o Estado que resultou da Constituição de 1988, na sua aplicação concreta no dia a dia da política nacional, até os dias de hoje, foi um Estado Disfuncional, no qual se desenvolve uma intensa disputa política pelos rumos que o país deve tomar. De um lado, um forte bloco de forças conservadoras, de direita e extrema-direita, com apoio dos setores hegemônicos das Forças Armadas, tenta levar o País a ser uma Nação conservadora, nos costumes, e liberal na economia, incapaz de torná-la soberana e desenvolvida e, de outro, um conjunto de forças políticas democráticas, de esquerda e populares, tenta elaborar e implementar um projeto político de construção de uma Nação soberana, democrática, desenvolvida e socialmente justa e inclusiva” (v. Ronald Freitas, O Estado Brasileiro e Seus Desafios no Século XXI [uma breve história], Editora Observador Legal e Fundação Maurício Grabois, 2024, p. 110).
Ronald traz à baila uma elaborada tipologia – de caráter, sobretudo, jurídico – dos Estados nacionais. Mas, aqui, é inescapável que a disfuncionalidade do Estado, bem apontada por ele, é um problema, antes de tudo, de conteúdo econômico, mais do que ideológico.
A derrubada da ditadura – da qual resultou a Constituinte e a Constituição de 1988 – foi a derrubada do modelo entreguista, implantado pelo golpe de 1964 contra a política nacional de João Goulart.
Daí o caráter da Constituição, inclusive seus dispositivos quanto às empresas nacionais e à exploração das nossas riquezas – perfeitamente coerentes com a parte democrática da Carta.
Naquele momento inicial, vislumbrava-se uma revolução nacional que restituísse ao país a sua plenitude soberana. Para onde nos levaria essa revolução nacional, de caráter eminentemente democrático e popular, é algo que pertence aos escaninhos virtuais da história. Lenin, ao examinar a Revolução Russa, apontou que a revolução socialista levara até ao fim o programa da revolução democrático-burguesa russa, assim como esta desembocara na revolução socialista (V.I. Lenin, Para o quarto aniversário da Revolução de Outubro, Obras Completas, tomo 44).
Se conseguiríamos chegar lá é uma questão, em verdade, abstrata, pois o fato é que não chegamos.
Na verdade, houve um rápido processo de restauração, pelo qual redundamos na pauperização atual, em que temos uma Constituição oriunda da derrocada da ditadura, ao mesmo tempo que uma política econômica que se apoia, ainda, no modelo da ditadura em seus piores momentos.
Com certeza, a queda da União Soviética e dos países do Leste Europeu potencializou esta aberração.
Daí, achamos nós, a disfuncionalidade do Estado brasileiro.
Reside nesse problema uma pequena divergência nossa em relação à periodização da História do Brasil que é apresentada no livro de Ronald (v. página 115): em nossa opinião, a desastrosa eleição de Collor, com a implantação do neoliberalismo em nosso país – isto é, a submissão extremada do país à principal metrópole imperialista – constituiu o término da Nova República, na medida em que esvaziou esta, completamente, de seu conteúdo econômico nacional: a partir daí, as privatizações, a liquidação do patrimônio público, os privilégios às multinacionais e aos bancos, sobretudo estrangeiros, deram a tônica da vida, que nem se pode chamar de nacional.
Não se trata, apenas, de Collor. Ronald está inteiramente certo ao afirmar que “os governos de FHC são, sem dúvida, expoentes no caminho de nos tornar um país subalterno ao capital internacional, e, na essência, caudatário das políticas que ele implementa no mundo sob a liderança dos EUA. Dessa forma, retirou do horizonte político nacional a continuidade de um projeto soberano de construção nacional que, aos trancos e barrancos, vinha se desenvolvendo desde 1930” (op. cit., p. 123).
Ronald também analisa com perspicácia a erosão da base do governo Rousseff, após sua virada, no segundo mandato, quando, depois de se reeleger “com base em uma plataforma de incremento do desenvolvimento”, nomeou um neoliberal entranhado, Joaquim Levy, para o Ministério da Fazenda – exatamente para executar uma política oposta a qual possibilitara a sua reeleição, isto é, um “ajuste fiscal” extremamente violento. Essa virada reacionária acabaria desembocando no impeachment da presidente (op. cit., p. 143).
Apesar de ser um jurista, que não descura das questões de superestrutura política, o autor é também um marxista, o que faz com que toda a sua colocação tenha uma base, isto é, um olhar para a infraestrutura econômica. Por exemplo:
“… continuamos um país subalterno aos interesses das grandes potências capitalistas – particularmente dos EUA -, onde predomina, na economia e mesmo na política, os interesses do capital financeiro, principalmente os de origem estrangeira” (op. cit., p. 212).
Nesse sentido, a reformulação do Estado, que Ronald vê como uma necessidade nacional é, sobretudo, uma libertação do país. Sem isso, diz ele, não é possível um “Projeto Nacional de Desenvolvimento capaz de levar o Brasil a ser uma nação soberana, desenvolvida, democrática e socialmente mais justa” (p. 212).
Mas isso significa, evidentemente, um salto qualitativo, ou seja, a implantação de transformações revolucionárias, “uma luta de refundação do Brasil, que terá necessariamente de extrapolar os limites das condições impostas pela estrutura político-jurídica que governa o Estado brasileiro atualmente” (idem).
Mais extensamente, o autor considera:
“Nas condições de desenvolvimento do capitalismo, no mundo e no Brasil, e como se organiza o Estado a serviço do neoliberalismo, é difícil alavancar – para não dizer impossível -, um programa de desenvolvimento autônomo, dentro dos parâmetros da democracia liberal burguesa. Estamos desafiados a construir um Estado que, garantindo as liberdades individuais dos seus cidadãos e cidadãs, tenha mecanismos de controle político-social que garantam que os princípios da igualdade e da equidade sejam o elemento orientador de toda política de Estado e de governo, e todos – repito todos – os direitos e garantias emanados da democracia liberal, de natureza tanto coletiva quanto individual, devem ser subordinados a eles, os princípios da igualdade e da equidade” (p. 213).
Ao ler o estudo de Ronald Freitas, percebo a identidade que tenho com várias concepções, sobretudo as que expus em “A República e o Grito da Nacionalidade” (Ideia Editora, 2024).
Por exemplo, estou de pleno acordo quanto ao caráter revolucionário de nossa Independência, tão difamada ou deformada por tantos autores: “Se a forma em que se deu nossa independência não foi a de uma revolução clássica, como a Francesa, a Americana e mesmo as das colônias americanas de origem espanhola, o conteúdo do evento foi revolucionário. Objetivamente revolucionário” (p. 49).
Mas também estou de acordo quanto ao entreguismo nascente já naquela época – no caso, em relação aos bancos ingleses:
“Consta que o Marquês de Barbacena – Ministro da Fazenda que negociou, dentre outros, o primeiro empréstimo externo brasileiro junto aos ingleses, em 1824, no valor de três milhões de libras esterlinas, e que por esse ‘patriótico trabalho’ levou 2% de ‘gorjeta’ -, quando da realização de um outro empréstimo de dois milhões de libras, em 1825 – com o qual pagaríamos a Portugal por nossa independência, pagando um débito português com Londres -, diante do clamor negativo que esse empréstimo causou na sociedade, declarou: ‘para pagamento de nossa dívida, sem falar em uma receita ordinária e sempre crescente, temos acima de dois milhões de milhas quadradas de terras incultas e excelentes, que podemos vender’. O entreguismo vem de longe”.
Com efeito.