
“A Rússia não é um tigre: a Rússia está associada ao urso. E não existem ursos de papel”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, sobre uma declaração vadia de Trump. “Não há nada de papel aqui”, acrescentou
“Em primeiro lugar, a Rússia não é um tigre. A Rússia está mais intimamente associada a um urso”, corrigiu educadamente Peskov ao presidente dos EUA. “E não existem ursos de papel. A Rússia é um urso de verdade. E o presidente Putin descreveu repetidamente, e com variados graus de ênfase, o nosso urso.”
Trump, após um encontro com o presidente ucraniano de mandato vencido, Volodymyr Zelensky, na Assembleia Geral da ONU, achou por bem se desdizer postando na sua plataforma Truth Social que Kiev poderia “retomar” os territórios do leste e ir “além” e acrescentando que a Rússia seria um “tigre de papel”, já que uma “potência militar real teria vencido em menos de uma semana”.
Mao tinha suas razões ao dizer, em 1957, quatro anos depois da derrota dos EUA na Guerra da Coreia, que os EUA eram um “tigre de papel”, conceito que Trump repete como um papagaio, sem entender o que significa, estratégica e taticamente.
Há algumas semanas, quando lembrou o que os russos fizeram com Napoleão e Hitler, Trump se mostrara bem menos afoito.
Aliás, também não são de papel o “Satan 2” (apelido posto pelos próprios americanos), a tríade nuclear russa, os Oreshnik hipersônicos, a inovação da guerra de drones e o martelo russo no Donbass, bem retratado nas recentes trocas de corpos, com lado russo em agosto entregando a Kiev 1.000 corpos ucranianos e recebendo 19 dos seus.
RECAÍDA
Trump aparentemente sofreu uma recaída na tese, que era de Biden e dos vassalos europeus, de que as sanções colocariam a economia russa de joelhos, derrubariam Putin e espatifariam a Rússia em 15 ou mais pedaços, mas a realidade passou por cima desses sonhos molhados.
Ainda na entrevista, e com Zelensky ao lado, Trump disse que a economia da Rússia supostamente se encontra em “um estado terrível” e “está sendo destruída”.
Sobre tais desejos de colapso da Rússia, Peskov observou que “já se passou bastante tempo, a economia russa foi amplamente reestruturada para satisfazer as necessidades da operação militar especial, de tal forma que todas as necessidades da frente estão mais do que satisfeitas”.
Quanto à economia, sublinhou Peskov em entrevista, o decisivo é que a Rússia “mantém sua resiliência, mantém a estabilidade macroeconômica”, embora esteja passando por certos “pontos de tensão e problemas” em diferentes setores da economia.
“Isso está inevitavelmente relacionado às inúmeras restrições econômicas e sanções que enfrentamos, bem como à confusão econômica mundial” – uma referência ao caos gerado no mundo pelo tarifaço de Trump – destacou.
Peskov acrescentou que a estabilidade econômica mundial foi abalada, apontando que isso “se reflete na Rússia, mas não se aplica apenas à Rússia”.
“A situação econômica global é difícil, praticamente impossível, de prever. É impossível prever. Além disso, sabemos que todas as decisões econômicas, incluindo as tarifas dos Estados Unidos, repercutirão em toda a economia global nos próximos anos”.
“URSO, DRAGÃO E ELEFANTE”
Quanto às metáforas animais, o jornal Komsomolskaya Pravda (KP) preferiu lembrar que, no início do mês, durante a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai e na celebração da vitória na Segunda Guerra Mundial em Pequim, Putin, o presidente Xi Jinping e o primeiro-ministro Narendra Modi demonstraram ao mundo uma “aliança do elefante, do urso e do dragão”.
À qual Trump reagiu de uma “forma muito sensível”, alegando que os chefes de Estado estavam “conspirando contra ele”.
Na Assembleia Geral da ONU, Trump voltou a pressionar os vassalos europeus a comprarem mais gás do fracking norte-americano, a preço extorsivo, e para que apliquem à China e à Índia – o “dragão” e o “elefante”, os dois maiores importadores de petróleo e gás russo – sanções secundárias, para forçá-los a abrir mão do muito mais barato petróleo e gás russo.
É O PETRÓLEO, ESTÚPIDO
“Trump é um homem de negócios; ele quer proteger os interesses econômicos dos Estados Unidos”, analisou Peskov sobre as declarações de Washington. “A coisa mais simples é forçar o mundo inteiro a comprar petróleo americano a um preço mais alto. Comprar gás natural liquefeito americano a um preço mais alto. E, evitando quaisquer táticas diplomáticas complicadas, o presidente dos EUA está essencialmente seguindo em frente.”
Ao mesmo tempo, como se sabe, Moscou não tem medo de perder os mercados europeus – naquela mesma reunião na China foram assinados contratos para a construção de novos gasodutos e enormes suprimentos.
Inclusive as reservas de gás que vinham abastecendo o mercado europeu serão, agora, pelo Poder da Sibéria 2, destinadas à indústria chinesa, enquanto a indústria europeia mingua.
Sobre os balões de ensaio sobre uma reunião entre Putin e o chefe do regime de Kiev, Peskov ressaltou que um encontro sem preparação prévia é uma “manobra de marketing destinada ao fracasso”.
O porta-voz do Kremlin aproveitou para lembrar que a situação no conflito ucraniano se agravará para Kiev caso se recuse a dialogar com Moscou. (É só comparar os termos que chegaram a ser acordados em Istambul em 2022, e que evitaria a guerra, barrados por ordem de Biden, e os atuais).
“A dinâmica no front mostra que para aqueles que não querem negociar agora, as posições serão muito piores amanhã”, afirmou Peskov em uma entrevista à RBC.
CAUSAS PROFUNDAS
O porta-voz lembrou que o presidente russo, Vladimir Putin, tem proposto repetidamente discutir as causas profundas do conflito na Ucrânia, ou seja, o fim da expansão da Otan a leste, a neutralidade da Ucrânia, a restauração do direito constitucional dos russos étnicos de falarem sua própria língua e praticarem o cristianismo ortodoxo sem restrições, e a devolução da Crimeia, Donbass e Novorrussia à Rússia, da qual historicamente fazem parte e cujas populações já se pronunciaram a favor em referendos.
“Isso foi apresentado ao mundo todo. Mas ouvimos a firme negativa dos americanos em discutir esse assunto”, disse. Ao comentar uma eventual reunião entre o presidente russo e o líder do regime de Kiev, Vladimir Zelensky, Peskov ressaltou que um encontro sem preparação prévia é uma manobra de marketing destinada ao fracasso.
Na avaliação do KP, o Kremlin respondeu às declarações de Trump “com serena confiança”. “Continuaremos o diálogo. Teremos a oportunidade de transmitir nossa avaliação dos eventos recentes ao lado americano. Uma reunião está agendada com Sergey Lavrov. Os canais (para diálogo) estão operacionais, e a situação é fundamentalmente diferente do que era sob o governo Biden. Estamos conversando com os americanos, e o presidente Putin continua a valorizar muito a disposição de Trump de trabalhar em conjunto para resolver o conflito na Ucrânia”, afirmou o porta-voz do Kremlin.
ÚLTIMO TRATADO DE LIMITAÇÃO DE ARMAS NUCLEARES PRESTES A EXPIRAR
Além disso, salientou Peskov, a Rússia e Estados Unidos têm muito mais a discutir, além da Ucrânia: economia, política e estabilidade global. No Alasca, Putin e Trump discutiram o tratado de controle de armas nucleares Novo Start, que expira em 5 de fevereiro de 2026. Na segunda-feira, Putin fez uma declaração de que, apesar do término do tratado, a Rússia se dispõe a cumprir com as limitações quantitativas nele estabelecidas de suas forças nucleares, conquanto os EUA também o faça.
“Posso dizer que esse tópico foi levantado não apenas no Alasca, mas durante praticamente todos os contatos [entre os dois presidentes – ed.]. Ainda não houve discussões substantivas – este é um assunto muito complexo. A declaração do presidente Putin é uma mão estendida. Mas há uma ressalva importante: a boa vontade política de Putin e sua proposta permanecerão viáveis somente se Washington assumir uma posição correspondente”, enfatizou Peskov.
Peskov também se referiu aos resultados de uma pesquisa do portal VTsIOM segundo os quais a imensa maioria dos russos acreditam que o renascimento da cultura, da espiritualidade e, principalmente, do patriotismo, que a luta pela libertação do Donbass trouxe à tona, são as chaves para um futuro feliz.