
Rússia e Ucrânia realizaram nesta segunda-feira (2) em Istambul, a segunda rodada da retomada das negociações diretas, aprovando a troca de todos os prisioneiros de guerra gravemente feridos e a devolução de seis mil corpos de soldados mortos de cada lado, além da entrega recíproca das propostas de memorando sobre condições de paz e de trégua.
As duas delegações continuam encabeçadas, respectivamente, pelo negociador de Istambul-2022, Vladimir Medinsky, pelo lado russo, e Rustem Umerov, pelo regime de Kiev, e que é atual ministro da Defesa e em 2022 fazia parte da comitiva ucraniana.
A proposta russa aborda na primeira parte como alcançar uma paz real e duradoura e a segunda, medidas para um cessar-fogo completo. Moscou reiterou sua exigência de reconhecimento das novas regiões russas (Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhie) e da Crimeia; reconhecimento dos direitos dos russos e russófonos, incluindo ao idioma e à liberdade religiosa; desmilitarização e desnazificação da Ucrânia; estatuto neutro e não-nuclear; eleições gerais na Ucrânia, para que haja um governo capaz de assinar o tratado proposto e a ser chancelado pelo Conselho de Segurança da ONU; e retirada das tropas ucranianas e suas milícias do território russo para que possa ter início um cessar-fogo.
A Ucrânia manteve o tom de ultimato, já relatado previamente pelo The New York Times, indo desde a anexação pela Otan até a “retomada da Crimeia”, e centrado em um “cessar-fogo incondicional de 30 dias”, para rearmamento de suas forças exauridas na frente de combate.
Apesar de menos de uma hora de reunião, ficou acordado que as duas partes darão sua resposta às propostas de tratado apresentadas, com Kiev alegando precisar de tempo para discutir internamente e propondo para entre 20-30 de junho a próxima reunião – que por acaso é o período de realização da cúpula da Otan em Haia de 24-26 de junho.
A Rússia anunciou a entrega na próxima semana à Ucrânia de seis mil corpos de soldados ucranianos para que possam ter um sepultamento adequado e propôs cessar-fogo de 2-3 dias em diversos pontos da frente, para que se possa coletar corpos, tendo em vista o verão que chega no hemisfério norte, e risco de pandemia.
“Entregaremos mais de seis mil corpos para a Ucrânia, que estavam guardados conosco. Identificamos tudo o que pudemos e realizamos testes de DNA. Vamos entregá-los de forma organizada em trens especiais na próxima semana para que possam ser enterrados com humanidade”, revelou Medinsky a jornalistas após a reunião.
Medinsky anunciou, ainda, que “todos os feridos e doentes graves serão trocados segundo o princípio ‘todos por todos’. Este é um gesto humanitário da nossa parte. Em segundo lugar, jovens soldados com menos de 25 anos serão trocados de acordo com a mesma fórmula: todos por todos. Ao mesmo tempo, o limite total de trocas não será inferior a mil pessoas de cada lado.”
Outras trocas ocorrerão sem esperar por novas negociações e grandes eventos políticos, acrescentou Medinsky.
A Rússia também respondeu à lista de Kiev das 339 crianças que teriam sido “seqüestradas”, afirmando que não há uma única criança seqüestrada, o que há são crianças resgatadas por soldados russos na zona de combate.
Como observou o jornal Komsomolskaya Pravda, “Estamos procurando os pais e, mesmo que parentes distantes apareçam, nós os devolvemos. Consideramos todos os pedidos, sem exceção. Recentemente, nosso escritório do Comissário para os Direitos da Criança devolveu 101 crianças à Ucrânia. 22 crianças retornaram do lado ucraniano”. O jornal também lembrou como Kiev começou alegando que haviam sido sequestradas “1,5 milhão” de crianças, que foi encolhendo, para “200 mil”, “20 mil” e, agora, 339.
Chamou a atenção que, enquanto os negociadores russos compareceram impecavelmente vestidos de forma civil, inclusive os generais, do lado ucraniano a maioria dos negociadores usava uniforme de camuflagem.
A tentativa de impressionar teve, porém, um efeito colateral inusitado. As redes sociais foram à loucura, mostrando que o símbolo do Estado-Maior das Forças Armadas da Ucrânia lembra os da 36ª Divisão de Infantaria das SS hitlerista. Com uma pequena diferença: os nazistas tinham granadas em um escudo preto, enquanto os enviados de Kiev tinham maças em um escudo preto. No entanto, ninguém sequer tentou negar a semelhança.
Duas horas antes da reunião com a delegação russa, os enviados de Kiev se reuniram com conselheiros vindos de Londres, Berlim e Roma, para receberem instruções.
Na véspera da reunião, o regime de Kiev realizou uma provocação contra a Rússia – e inclusive contra a força de dissuasão nuclear russa – com ataques com drones desde caminhões nas imediações de bases no interior do país, em operação de infiltração supostamente preparada há meses. Uma ação que se choca frontalmente com a doutrina de defesa nuclear russa e, portanto, em violação a qualquer perspectiva de paz. Segundo analistas, o poder de dissuasão nuclear russo se manteve intacto, apesar do efeito espetaculoso.
CAUSAS PROFUNDAS
A Rússia desencadeou sua operação militar especial, após oito anos tentando uma solução pacífica através dos Acordos de Minsk que, soube-se depois, apenas foram assinados para dar tempo de rearmar o exército ucraniano, como confessou Merkel.
Desde o golpe da CIA em 2014 em Kiev, que derrubou o presidente legítimo, a população de ascendência russa, o regime instaurado passou a perseguir tudo que era russo ou soviético, do idioma à fé religiosa, provocando o levante no leste, que deu origem às Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. A Rússia só interveio quando era iminente uma operação pelo regime de Kiev para promover uma limpeza étnica no Donbass, lar de russos há séculos. E quando a guerra aos russos étnicos já durava oito anos.
O golpe da CIA de 2014 teve como objetivo revogar da Constituição ucraniana o status de neutralidade, para cumprir o desejo de W. Bush de 2008, de anexar a Ucrânia à Otan, repudiada famosamente no discurso de Putin em 2007 na Conferência de Segurança de Munique, contra a ordem mundial unipolar.
Antes da operação militar especial, a Rússia apresentou aos EUA e à Otan uma proposta de restauração do equilíbrio de forças na Europa, e respeito ao compromisso de não-expansão a leste do Oder-Neisse, quando da reunificação alemã, o que foi recusado por Biden.
A retirada em 2019 dos EUA do Tratado Reagan-Gorbachev de 1987, o Tratado INF, que proibiu a posse de mísseis entre 500-5000 km de alcance, que pusera fim à iminência de guerra nuclear no teatro europeu da década de 1980, tornou inadiável para a Rússia afastar essa ameaça.
Em abril de 2022, Rússia e Ucrânia chegaram a um texto de acordo de restauração do status de neutralidade e outras medidas que, reconheceu depois o então chefe da delegação ucraniana, teria evitado todos os mortos que a Ucrânia sofreu no conflito. O acordo chegou a ser rubricado pelas partes, mas foi rasgado por Zelensky, após a chegada do então primeiro-ministro britânico Boris Johnson, com a ordem de Biden de continuar em guerra, com os resultados conhecidos.
O MEMORANDO DE PAZ RUSSO
O Komsomolskaya Pravda publicou, na íntegra, o memorando de tratado de paz proposto pela Rússia em Istambul, que reproduzimos para informação de nossos leitores.
Seção I
1) reconhecimento jurídico internacional da incorporação da Crimeia, da República Democrática Popular de Donetsk, da República Democrática Popular de Lugansk, das regiões de Zaporizhzhya e Kherson na Federação Russa; retirada completa de unidades das Forças Armadas da Ucrânia e outras formações paramilitares da Ucrânia de seus territórios;
2) a neutralidade da Ucrânia, o que implica sua recusa em aderir a alianças e coligações militares, bem como a proibição de qualquer atividade militar de terceiros estados no território da Ucrânia e a implantação de formações armadas estrangeiras, bases militares e infraestrutura militar naquele país;
3) a cessação e a recusa de celebração no futuro de tratados e acordos internacionais que sejam incompatíveis com o disposto no n.º 2 da presente Secção;
4) confirmação do estatuto da Ucrânia como um Estado que não possui armas nucleares ou outras armas de destruição em massa, com o estabelecimento de uma proibição direta da sua aceitação, trânsito e implantação no território da Ucrânia;
5) estabelecimento do número máximo das Forças Armadas da Ucrânia e outras formações militares da Ucrânia, do número máximo de armas e equipamentos militares e suas características permitidas; dissolução das formações nacionalistas ucranianas nas Forças Armadas da Ucrânia e na Guarda Nacional;
6) garantir todos os direitos, liberdades e interesses da população russa e russófona; conferir à língua russa o estatuto de língua oficial;
7) proibição legislativa da glorificação e propaganda do nazismo e do neonazismo, dissolução de organizações e partidos chauvinistas;
8) suspender todas as sanções econômicas, proibições e medidas restritivas atuais e se recusar a introduzir novas sanções econômicas entre a Federação Russa e a Ucrânia;
9) resolver uma série de questões relacionadas com a reunificação familiar e pessoas deslocadas;
10) renúncia a reivindicações mútuas em conexão com danos causados durante operações militares;
11) levantamento de restrições relativas à Igreja Ortodoxa Ucraniana;
12) o restabelecimento gradual das relações diplomáticas e económicas (incluindo o trânsito de gás), dos transportes e de outras comunicações, incluindo com países terceiros;
Seção II
Condições de cessar-fogo
Opção 1.
O início da retirada completa das Forças Armadas da Ucrânia e outras formações paramilitares da Ucrânia do território da Federação Russa, incluindo as regiões da DPR, LPR, Zaporizhia e Kherson, e sua retirada para uma distância acordada pelas Partes das fronteiras da Federação Russa, de acordo com o Regulamento aprovado.
Opção 2. “Oferta de pacote”:
1) proibição da redistribuição das Forças Armadas da Ucrânia e de outras formações paramilitares da Ucrânia, com exceção de movimentos com a finalidade de retirada para uma distância das fronteiras da Federação Russa acordada pelas Partes;
2) término da mobilização e início da desmobilização;
3) cessação do fornecimento estrangeiro de produtos militares e da assistência militar estrangeira à Ucrânia, incluindo o fornecimento de serviços de comunicação via satélite e o fornecimento de dados de inteligência;
4) a exclusão da presença militar de terceiros países no território da Ucrânia, a cessação da participação de especialistas estrangeiros em operações militares ao lado da Ucrânia;
5) garantias de renúncia da Ucrânia à sabotagem e às atividades subversivas contra a Federação Russa e seus cidadãos;
6) criação de um Centro bilateral de monitoramento e controle do regime de cessar-fogo;
7) anistia mútua de “presos políticos” e libertação de civis detidos;
8) a abolição da lei marcial na Ucrânia;
9) anúncio da data das eleições do Presidente da Ucrânia e da Verkhovna Rada, que devem ocorrer no máximo 100 dias após o levantamento da lei marcial.
10) assinatura do Acordo sobre a implementação das disposições contidas na Seção I.
Seção III
A sequência de etapas e o prazo para sua implementação:
1) início dos trabalhos sobre o texto do Acordo;
2) declaração de um cessar-fogo de 2 a 3 dias para recolher os corpos dos mortos na “zona cinzenta”;
3) transferência unilateral de 6.000 corpos de militares das Forças Armadas Ucranianas para as Forças Armadas Russas;
4) assinatura de um Memorando sobre o cessar-fogo com datas específicas para a implementação de todas as suas disposições e determinação da data de assinatura do futuro Tratado sobre a solução final (doravante denominado Tratado);
5) a partir do início da retirada das Forças Armadas Ucranianas, é estabelecido um regime de cessar-fogo de 30 dias. Ao mesmo tempo, a retirada completa das unidades das Forças Armadas Ucranianas do território da Federação Russa e a implementação integral do “acordo-pacote” devem ser realizadas dentro desses 30 dias;
6) realização de eleições, formação de órgãos governamentais no território da Ucrânia;
7) assinatura do Acordo;
8) aprovação do Tratado assinado por uma resolução juridicamente vinculativa do Conselho de Segurança da ONU;
9) ratificação, entrada em vigor e implementação do Tratado.