
O jornalista e escritor Patrick Lawrence, em matéria para o Consortium News – o site informativo norte-americano fundado pelo saudoso Robert Parry, que denunciou o ‘Irã-Contras’ -, analisou o atual impasse Rússia-Estados Unidos com foco na Ucrânia, que culminou com as recentes propostas públicas de Moscou para barrar qualquer novo avanço dos EUA/Otan às fronteiras russas e para restaurar a segurança coletiva na Europa.
“Lemos na imprensa americana sempre igual” que Putin estava “ameaçador”, registrou Lawrence. Ele transcreve uma “jóia” da correspondente da CBS News em Moscou, Mary Ilyushina: ‘Putin está preocupado com as atividades militares dos membros da OTAN na Ucrânia’, ela nos diz: “você sabe, na porta da Rússia, que é o que Putin acredita que a Ucrânia seja”.
Para Lawrence, é outra a avaliação do desempenho de Putin perante 500 jornalistas nacionais e internacionais. “Estava confiante, foi claro, bem informado como sempre, e não quis dizer nem mais nem menos do que disse”.
A coletiva de imprensa de fim de ano de Putin, assinala o jornalista, segue uma série de desenvolvimentos que “desencadearam uma mudança profunda nas relações Leste-Oeste à medida que se desenrolam ao longo da fronteira da Rússia com a Europa e através da massa de terra da Eurásia”.
SEGURANÇA COLETIVA
“Putin quer reestruturar toda a arquitetura de segurança da Europa”, relatou Mary Ilyunshina. Acertou dessa vez, comenta Lawrence, que acrescenta: embora Putin não tenha articulado tal pensamento, “este é um resumo útil de exatamente sua intenção”.
Para o veterano jornalista e ex-correspondente no exterior, foi a cúpula de 1º de setembro do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky com o presidente Joe Biden que “que deu início a esta fase recente”.
“Zelensky queria garantias de que o regime de Biden seguraria sua mão enquanto ele continuava a ignorar os compromissos de Minsk II da Ucrânia e alimentava tensões crescentes com a Rússia. Ele conseguiu isso. Mas ele não conseguiu o que realmente queria: Biden parou bem antes de qualquer compromisso de fazer a Ucrânia tornar-se membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte”.
O resto, não faltou: fornecimento de armas, mercenários estrangeiros, provocações navais propositadas e diversos outros ‘fatos no terreno’. O regime Biden aprovou US$ 450 milhões em assistência à segurança para a Ucrânia, elevando o total alocado desde que o golpe CIA-neonazis de fevereiro de 2014 em Kiev para US$ 2,5 bilhões.
A Grã-Bretanha está agora trabalhando na construção de dois portos navais ao longo da costa do Mar Negro na Ucrânia e emprestará a Kiev US$ 1,6 bilhão para pagar sucata britânica.
“As manobras navais dos EUA e da Grã-Bretanha ao largo da costa russa do Mar Negro agora são rotineiras. Oficiais militares ocidentais agora falam em implantar novas tecnologias potentes, até mísseis com capacidade nuclear, ao longo da frente oriental da aliança voltada para a Rússia. Agora temos relatórios russos de que mercenários britânicos juntaram-se às forças de membros da OTAN já destacados na Ucrânia. Os números que a Rússia está divulgando (não oficialmente): 10.000 soldados e mercenários de membros da OTAN em solo ucraniano, 4.000 dos EUA”.
Para Lawrence, o pensamento em Washington, Londres e Bruxelas parece ser “bem, não podemos colocar a filiação ucraniana no papel, mas, que se dane, podemos tratar Kiev mais ou menos como um membro de qualquer maneira”.
Ao mesmo tempo, a mídia imperial não cessa os relatos alarmistas de que a Federação Russa “está acumulando tropas e material” em sua região oeste, perto da fronteira com a Ucrânia.
PROVOCAÇÃO
Lawrence chama a atenção dos leitores. “O Ocidente provocou a Guerra Fria, deixou de fora suas provocações e culpou a União Soviética de Stalin por tudo o que se seguiu. Os EUA cultivaram o golpe na Ucrânia sete anos atrás, omitiram abundantes evidências disso e culparam a Rússia por reincorporar a Crimeia para proteger sua base naval no Mar Negro dos novos malucos em Kiev”.
A mesma coisa mais uma vez. “Esta última crise sobre a questão da Ucrânia é obra do Ocidente, e os fanfarrões em Washington estão mais uma vez convencendo a maioria de nós sobre a ideia de que a Rússia é o agressor”.
Lawrence lembra da reclamação feita pelo porta-voz do Pentágono, John Kirby (“não muito brilhante”) a um correspondente da Associated Press de que a Rússia “estava muito próxima das fronteiras orientais da Otan”. “Todo mundo tem que estar em algum lugar, como diz o velho ditado”, ele ironiza.
“Todos em Washington sabem, assim como você e eu sabemos, que a Rússia não tem intenção de ‘invadir’ a Ucrânia. Esta é apenas a história de capa em que se confunde, na tradição de sete décadas de Washington, causa e efeito”.
HORA DA VERDADE
Seis dias após o encontro em vídeo entre Biden e Putin, Sergei Ryabkov, vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, entregou a seu homólogo americano dois projetos de tratado que Moscou propõe como base de um acordo abrangente para diminuir a situação perigosa que Washington tem assiduamente conjurado ao longo da fronteira ocidental da Rússia. Um é um acordo bilateral entre Washington e Moscou; o outro é um esboço de acordo que a Rússia e todos os membros da OTAN assinariam.
Excepcionalmente, o Ministério das Relações Exteriores em Moscou publicou os dois documentos dois dias depois que Ryabkov os entregou à secretária de Estado adjunta, Karen Donfried. Isso foi astuto da parte da Rússia: não deixa espaço para Washington deturpar a posição russa. Também transmite até que ponto a Rússia pretende manter sua posição.
PAPO RETO
A proposta: A OTAN cessará todos os esforços para se expandir para o leste, principalmente na Ucrânia e na Geórgia. A OTAN garante que não implantará baterias de mísseis em países que fazem fronteira com a Rússia. Fim dos exercícios militares e navais da OTAN em nações e mares que fazem fronteira com a Rússia. Restauração efetiva do tratado que cobre as armas nucleares de alcance intermediário – os EUA, como sempre culpando a Rússia – abandonaram o pacto INF em agosto de 2019. Diálogo de segurança contínuo.
“Agora se fala em Washington e Bruxelas que essas propostas são totalmente irracionais e que a Rússia entende isso sem dizê-lo. O pensamento de que a posição da Rússia é totalmente irracional é … totalmente irracional. Se Moscou espera ou não negociar com base nessas estipulações é uma questão pendente”, ressalta Lawrence.
“INACEITÁVEL”, DIZ PUTIN
Aqui está como Putin colocou em sua coletiva de imprensa anual: “Deixamos claro que qualquer movimento posterior da OTAN para o Leste é inaceitável. Há algo obscuro sobre isso? Estamos implantando mísseis perto da fronteira dos EUA? Não, nós não estamos. São os Estados Unidos que vieram a nossa casa com seus mísseis e já estão à nossa porta”.
Continua: “É ir longe demais exigir que nenhum sistema de ataque seja colocado perto de nossa casa? O que há de tão incomum nisso?”
Na declaração de Putin, observa Lawrence, “li a determinação de proteger os interesses da Rússia diante do que os Estados Unidos e seus satélites europeus transformaram em algo que se aproxima de um desafio existencial. Washington não deu escolha a Putin, uma vez que aumentou a pressão desde a cúpula Biden-Zelensky. Moscou escolheu sua única alternativa”.
ESFERAS DE SEGURANÇA
Corolário: “Anos atrás, o falecido Stephen Cohen me ensinou a distinguir entre esferas de influência, que nós concordávamos era uma terminologia século 19, e esferas de segurança, que são uma realidade do século 21”. Na verdade, acrescenta o jornalista, Washington está “sempre vigilante ao guardar seus próprios perímetros de segurança” – impostos – enquanto insiste “que não há necessidade de observar os de ninguém”.
Para Lawrence, outros fatores precisam ser considerados. Um, como Moscou entende, junto com as cabeças sãs que pode haver em Washington, é inconcebível que o Ocidente em qualquer formação – via Otan ou via EUA e Grã-Bretanha apenas – pudesse prevalecer em um confronto armado com a Rússia sobre a Ucrânia.
Em segundo lugar, e mais amplamente, há a questão do arco da história. “Putin, tendo uma mente ativa e uma compreensão do momento – e quão estranho isso é para os americanos? – parece compreender que a massa de terra eurasiana, de Xangai a Lisboa, está emergindo como algo como o novo centro de gravidade da humanidade (o que marca uma espécie de retorno)”.
Putin propõe reestruturar “toda a“ arquitetura europeia da Europa?”. Para Lawrence, Putin vê isso como inevitável e pensa que é hora de começar. “Mary Ilyushina sugere que isso é imprudente, estranho, impensável. Não é nada disso. Devemos comemorar o insight”, sublinha.
GIRO DA RODA DA HISTÓRIA
“Em outras palavras, a Europa se entenderá cada vez mais como a extremidade ocidental da Eurásia, em oposição à costa oriental do Atlântico. É uma coincidência que o líder russo, uma semana após o encontro em vídeo com Biden, tenha feito uma cúpula por vídeo semelhante com o presidente chinês Xi Jinping que acabou sendo a mais forte afirmação até o momento da relação de aliança entre Moscou e Pequim? Acho que não”, assinala o jornalista.
Ele relatou ter adorado uma história que The Hill publicou após a cúpula Putin-Xi. “’Aliados’ China e Rússia estão se unindo contra a América”, dizia o texto, assinado pelo sinófobo Gordon Chang.
“Ninguém está atacando ninguém, Gordy. É o giro da roda da história. Você não consegue ouvi-lo estalando lentamente?”, conclui Lawrence. O título original da matéria é “Putin fala”.