O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmou nesta quarta-feira (23) que índios deveriam plantar soja e que os órgãos que coíbem o arrendamento da terra indígena para cultivo do grão, como o Ibama e a Funai cometem “excesso de voluntarismo”.
O recém-empossado ministro deu a declaração durante o encontro “Perspectivas dos Direitos Constitucionais Indígenas”, organizado pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal. O objetivo do encontro que foi conduzido pela procuradora geral da República, Raquel Dodge, foi o de estabelecer um canal de diálogo dos povos indígenas com o novo governo.
Salles estava criticando especificamente uma multa de R$ 2,7 milhões aplicada pelo Ibama a produtores rurais que fecharam contratos com associações indígenas para exploração em quatro terras demarcadas no oeste do Mato Grosso.
Os produtores foram multados depois de ser comprovado que havia plantação de soja e milho transgênicos na área, prática proibida por uma lei de 2007 que diz: “ficam vedados a pesquisa e o cultivo de organismos geneticamente modificados nas terras indígenas e áreas de unidades de conservação, exceto nas áreas de proteção ambiental”.
Segundo o ministro é “um excesso de voluntarismo de órgãos como Funai, Ibama, etc, esta ingerência no livre arbítrio dos grupos que estão lá. Imagino que essa situação aconteça em muitos lugares”, afirmou.
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“Me causa muito espanto essa ingerência exógena na decisão de tratar, de cuidar, de fazer a produção na sua própria área”, disse o ministro. Segundo ele deve-se “respeitar” como e de que forma eles “querem agregar ao seu dia-a-dia questões que são exógenas à sua cultura indígena, como nesse caso específico da agricultura”.
Salles coloca a questão como se a ocupação das terras indígenas por parte do agronegócio fosse uma simples relação comercial e não se tratasse de uma operação de grilagem dos terrenos e de violência sistemática contra os povos tradicionais.
Somente nos primeiros dias de 2019, ao menos oito áreas indígenas foram atacadas por grileiros de terras e ruralistas. Em 2018, O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) divulgou relatório sobre a violência contra as tribos indígenas que constatou 110 assassinatos ocorridos por conta de agressões no ano de 2017. (v. Lideranças rurais e indígenas foram vítimas da violência no campo em 2017)
Em seu discurso, ele também criticou a destinação de recursos públicos por gestões anteriores na área do Meio Ambiente. Para ele, fomentar políticas públicas para a pasta está “fora da realidade”.
“Nós tivemos nesses últimos anos, no Brasil, nos estados, a comprovação de que a má gestão, a gestão ineficiente dos recursos públicos, a gestão irrealista dos recursos públicos, o excesso de abstração na utilização de recursos públicos em detrimento da realidade só causou malefícios à consecução dos objetivos estatais, especialmente na área de meio ambiente”, afirmou Salles.
Na sequência do debate, o ex-ministro do Meio Ambiente José Sarney Filho fez objeções aos comentários de Salles. Ele disse que “é um tema tão importante que suscita outras questões muito mais graves”. “As terras indígenas têm destinação para a cultura ancestral indígena. Na medida em que você [índio] dá o uso diferenciado dessa região, você fragiliza todo o embasamento constitucional a essas terras tais como estão. Essa decisão deve caber aos índios, mas isso pode fragilizar sua posição [dos índios] e no futuro pode vir a ser questionada [a terra indígena]. A comunidade indígena tem que ser esclarecida”, alertou o ex-ministro.
DEMARCAÇÃO
Além de considerar “excesso de voluntarismo” do Ibama e da Funai, o ministro bolsonarista acredita que há um “excesso de demarcações” de terras indígenas e unidades de conservação ambiental no país.
Durante a mesa de debate, Salles disse duas vezes que o tema indígena não era sua “especialidade” e mesmo assim criticou a política de demarcações em vigor há anos no Brasil.
Ele sugeriu que o tamanho das terras indígenas prejudica a fiscalização de tão grandes que as considera. “Em casos de excessos de demarcações, nós também fragilizamos aquelas que poderiam ter mais foco e mais substância. Toda vez que o conceito é excessivamente aumentado, nós temos uma fragilidade no cerne das questões. Isso acontece com a fiscalização ambiental, com as boas práticas de agricultura, nos temas minerários, acontece em vários aspectos. Desenhar cenários que não ficam de pé à luz da realidade é um convite à transgressão, à falta de fiscalização, à capacidade de execução”, disse Salles.
O índio Fulni-ô Wilke Melo questionou o modelo de desenvolvimento econômico adotado no agronegócio e disse que não “podemos dar um cheque em branco para o desenvolvimento”. Ele mencionou a política de gestão territorial das terras indígenas, pela qual os indígenas têm uma participação maior no uso e fiscalização do território. “É uma política na qual as comunidades indígenas constroem um processo de gestão do território e a partir disso decidem seus projetos de futuro, defendem o que querem. É fazer a escuta dos povos e o estado ter a sensibilidade, a sensatez, de fazer essa escuta. É discutir essas politicas ambientais junto aos povos indígenas. Isso não passa por ideologia. É parte de construção de uma política séria para o país. O país é reconhecido pelo seu potencial ambiental. É preciso valorizar esses princípios”, apontou o índio.
Raquel Dodge cobra demarcação de terras indígenas
Durante o evento, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, cobrou que o governo realize a demarcação de terras indígenas seguindo a determinação da Constituição. Ela afirmou que a Constituição Federal, em 1988, fixou prazo de cinco anos para que fosse concluída a demarcação. obrigação nunca cumprida por governos anteriores.
“É preciso relembrar bem que há muitas normas da Constituição de 1988 ainda não cumpridas. A principal delas talvez seja a determinação para que no ano de 1993 todas as terras indígenas estivessem demarcadas, estivessem com suas demarcações concluídas, cinco anos após a Constituição de 1988”, disse Dodge.
“É um dever constitucional imposto sobre o poder Executivo que não foi cumprido e mais uma vez, diante de um novo governo, a pergunta é refeita: quando que as demarcações estarão concluídas para que haja aquilo que a Constituição assegura, que é o usufruto exclusivo dos povos indígenas para a terra que a Constituição lhes assegura”, afirmou a procuradora.
No evento estava presente a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. O governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) colocou a Fundação Nacional do Índio sob a alçada do Ministério dos Direitos Humanos e retirou do órgão umas das principais atribuições: a identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas no país.
Agora, as demarcações estão a cargo do Ministério da Agricultura, comandado pela ruralista Tereza Cristina, deputada federal pelo Mato Grosso do Sul e carinhosamente apelidada pelos membros da bancada do agronegócio por “Musa do Veneno”. A ministra não compareceu ao debate do MPF.
No evento, Damares Alves afirmou que o governo Bolsonaro manterá o diálogo com o Ministério Público e entidades de defesas dos direitos indígenas e que as políticas para o setor vão seguir a legislação.
Desde o período eleitoral, Jair Bolsonaro tem feito afirmações contrárias às demarcações de terras indígenas e chegou a anunciar que pretende rever demarcações já concluídas.
O subprocurador da República Antônio Carlos Bigonha, coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF – que atua com direitos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais, afirma que legalmente não seria possível ao governo suspender a política de demarcação de terras, prevista na Constituição Federal, e que a revisão de demarcações já feitas seria possível apenas em casos excepcionais, se fosse constatada alguma irregularidade no processo demarcatório.
“É um impossível jurídico rever demarcações de terras no Brasil, a não ser se se constatasse alguma nulidade, mas é um fato excepcionalíssimo, o que existe no Brasil hoje são terras demarcadas regularmente”, disse. “Não há a possibilidade constitucional de paralisar as demarcações ou regredir nas que já foram demarcadas”, afirmou o procurador.
De acordo com ele, ainda não há uma conclusão sobre se o MPF vai propor medidas judiciais contra as mudanças que o governo Bolsonaro impetrou na Funai. O procurador, no entanto, disse acreditar que seria melhor que o órgão permanecesse sob a guarda do Ministério da Justiça e que as demarcações continuassem sob o controle do órgão de políticas indígenas.
MAÍRA CAMPOS