O ex-ministro do Meio Ambiente de Jair Bolsonaro, Ricardo Salles, resolveu sair do armário mais uma vez (calma, leitor, no sentido político) e assumir a sua condição de representante da direita ou, talvez, pelo seu perfil e trajetória, da extrema-direita, aquela cujo apreço pela democracia e os direitos sociais é assumidamente zero.
Ao responder a uma declaração do presidente de seu partido, o PL, Valdemar Costa Neto, segundo a qual o partido de Bolsonaro estaria construindo uma solução política para a disputa eleitoral no município de São Paulo pelo “centro”, o hoje deputado federal vociferou em seu Twitter:
“Centro é o kct. Precisamos de Direita. De lei e ordem. De Tolerância Zero contra corrupção, drogas, máfias, esquemas de Centrão, compadrio, PCC etc. CHEGA ! Ninguém aguenta mais essa zona!”
O fundador do Movimento Endireita Brasil não poderia ter sido mais explícito e, também, mais cínico em sua mensagem.
Quanto à tentativa de edificar uma candidatura pela direita, cujo nome ele próprio, Salles, apresentou ao partido, embora não conte com a simpatia do presidente nacional da legenda, muito menos do governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, trata-se de uma questão interna do PL que certamente ainda vai render muitos episódios.
No entanto, pregar “tolerância zero” contra corrupção, drogas, máfias, centrão, etc, depois de ter servido caninamente o flagelo bolsonarista, é o cúmulo do cinismo.
Afinal, Salles não disse uma única palavra à época em que estourou o escândalo das vacinas no coração do Ministério da Saúde, muito menos sobre o caixa 2 usado e abusado através através do cartão corporativo da Presidência da República, reinando igual silêncio diante das joias sauditas que Bolsonaro tentou se apoderar licitamente. Isso sem falar nas inúmeras denúncias de obras e serviços superfaturados que ainda estão sob investigação do Tribunal de Contas de União.
O deputado também se calou quando a Polícia Federal detectou que, em pelo menos sete viagens oficiais com o avião presidencial, um sargento da FAB, integrante da comitiva, traficou cocaína.
Muito menos se manifestou quando o governo do qual fazia parte ancorou-se no chamado “centrão” para aprovar diversas torpezas contra o povo brasileiro, entre as quais se destacou os ataques às pensões e aposentadorias dos brasileiros.
Nenhuma palavra sobre o “centrão” de ontem que, rigorosamente, é quase igual, em qualidade, ao “centrão” de hoje, com a diferença de que Bolsonaro se apoiava no que existia de pior, mais fisiológico e obscurantista nesse segmento político instalado no Congresso Nacional.
Quanto à “tolerância zero”, agora, depois da tragédia bolsonarista, sabemos muito bem o quanto a tolerância de Salles foi ampla, geral e irrestrita, a começar pelo apoio entusiástico às leis e decretos que desmontaram a máquina pública, entre as quais a do IBAMA, órgão subordinado à pasta encabeçada pelo então ministro, jogando uma pá de cal na fiscalização, para delírio dos latifundiários do garimpo e da madeira.
Ainda está presente na memória o episódio em que o ministro discursou para madeireiros que atuavam ilegalmente em Rondônia depois que os meliantes queimaram um caminhão-tanque a serviço do IBAMA, em Boa Vista do Paracanã, distrito de Espigão, recebendo uma chuva de aplausos ao se dirigir “às pessoas de bem que trabalham neste país”.
Ou, ainda, quando, na fatídica reunião ministerial de abril de 2020, disse ser preciso aproveitar a pandemia para afrouxar as regras ambientais e “passar a boiada”.
Onde estava naquele momento a “tolerância zero” que Salles prega, hoje, hipócrita e dissimuladamente.
O acervo de fatos envolvendo a desastrosa gestão do bolsonarista à frente do Ministério do Meio Ambiente é reveladora do quanto ele foi parcimonioso com setores econômicos poderosos e ações manifestamente ilícitas, bem como contrárias ao interesse nacional.
Que testemunhem, para ficar apenas em um exemplo, povos indígenas agredidos pela gestão de Salles à serviço de madeireiros e garimpeiros ilegais.
Foi assim quando resolveu retirar a participação da sociedade civil do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), revogar as resoluções que protegiam a restinga e o mangue, liberar a queima de lixo tóxico em fornos para cimento, paralisar o Fundo da Amazônia, permitir o avanço do garimpo em áreas protegidas e unidades de conservação, desmontar os órgãos de proteção de proteção ambiental, como Ibama e ICMBio, suspender as multas ambientais, promover recordes históricos de desmatamento na Amazônia e anular a ação dos brigadistas durante recorde de queimadas no Pantanal.
Bem, fiquemos por aqui para demonstrar o quanto Salles foi tolerante quando se tratava de enfrentar os que agiam ao arrepio da “lei” e da “ordem” que, agora, ele finge defender.
“Zona” estava instalada no governo medíocre e vassalo aos poderosos, notadamente aos do sistema financeiro, que o ex-ministro serviu.
A “zona” que Salles atribui, entre outros fatores, ao “centrão” é uma casa de família perto da “zona” que ele, Guedes, Damares, et caterva, todos submetidos a Bolsonaro, cevaram ao longo de 4 anos, felizmente interrompidos pela eleição do presidente Lula.
No que se refere à dissimulação do ex-ministro no combate à corrupção, é preciso que ele, antes, dê uma olhada no espelho.
A Comissão de Ética Pública da Presidência da República acaba de punir o hoje deputado por usar dinheiro público em viagens a São Paulo quando era ministro do Meio Ambiente no governo Jair Bolsonaro, de janeiro de 2019 a junho de 2021. O colegiado aplicou uma censura ética que, na prática, funciona como uma “mancha” no currículo.
Salles fez dezenas de viagens a São Paulo, principalmente aos fins de semana, sem registros de compromissos em sua agenda oficial. A comissão entendeu que o então ministro violou o CCAAF (Código de Conduta da Alta Administração Federal). A informação foi divulgada pelo jornal O Estado de S.Paulo.
Aliás, basta dizer que nem mesmo o governo ao qual serviu resistiu às pressões dos inquéritos sobre sua atuação em defesa dos madeireiros ilegais, levando-o a pedir demissão do Ministério em junho de 2021.
Depois de todo esse simulacro, fica evidente que, para o impostor, a “zona” existe porque a boiada parou de passar e a lei, agora, está a serviço da ordem e do interesse público.
MARCO CAMPANELLA