O senador Bernie Sanders, que surpreendeu em 2016 ao disputar com Hillary Clinton a indicação pelo Partido Democrata, anunciou o lançamento de sua pré-candidatura à presidência dos EUA nas eleições do ano que vem.
Em entrevista, Sanders explicou que estava concorrendo à presidência por duas razões básicas: “Número um, acho que o atual ocupante da Casa Branca é uma vergonha para o nosso país. Acho que ele é um mentiroso patológico, dizendo uma mentira todos os dias após a outra – e não me agrada dizer isso. Também acho que ele é racista, sexista, homófobo e xenófobo”.
Repúdio que já mereceu uma tuitada de Trump ao “Crazy Bernie” (Bernie Doido).
Sanders acrescentou não se lembrar – “certamente não em minha vida ou na história moderna” – de termos um presidente “que se empenha em dividir o povo americano com base em onde nascemos ou na cor de nossa pele ou nosso gênero, ou seja o que for”. “Acho que o que um presidente tem a fazer é unir nosso povo e não nos dividir”, afirmou.
A segunda razão que Sanders declarou para sua candidatura é completar o avanço desencadeado com a campanha de 2016, que trouxe à discussão do povo norte-americano soluções que o establishment dizia serem “muito radicais”, mas na verdade apoiadas pela grande maioria da população e que inclusive já são comuns nos países civilizados.
Apenas nas primeiras 24 horas após o anúncio, a campanha de Sanders arrecadou US$ 1 milhão, de 225 mil pessoas em 50 estados, com contribuição média de US$ 27, o que revela o entusiasmo com que a candidatura foi recebida.
Na campanha de 2016, o que era visto inicialmente quase como uma excentricidade, a candidatura de um senador independente de um estado pequeno, o Vermont, surpreendeu todos com sua denúncia clara e direta sobre as mazelas da sociedade americana e das consequências do crash de 2008, sua conclamação a deter a ganância de Wall Street e a explosiva exacerbação da desigualdade.
“Os muito ricos ficando cada vez mais ricos, enquanto todos os demais ficam mais pobres. 45 milhões de americanos vivem na pobreza. Os 400 americanos mais ricos possuem mais de US$ 2,2 trilhões, mais do que 150 milhões de americanos combinados”, reiterou Sanders.
A campanha – num país dominado por Wall Street, pelas petroleiras e pela máquina de guerra do Pentágono, e consequente prevalência da mais desmedida ganância, obscurantismo e egoísmo – juntou milhões de pessoas, em grande parte, jovens, que buscavam um caminho depois da trairagem de Obama, que só cuidou dos bancos.
Num país em que ‘liberal’ costumava ser tido como demasiado ‘à esquerda’, a palavra socialismo, que na terra de Tio Sam era quase palavrão, foi incorporada ao vocabulário das novas gerações, a ponto de Trump, sem ninguém perguntar ou atinar, resolveu dizer a uma platéia de gusanos em Miami que os EUA “jamais serão socialistas”, numa encenação voltada para empolgar seu eleitorado no estado.
Agora, o que está em pauta, segundo Sanders, é levar ainda mais longe as propostas do “Medicare for All” (sistema público de saúde, como o que já existe no vizinho Canadá e que, nos EUA, já funciona assim para os aposentados), salário mínimo nacional de US$ 15 a hora (dobrando o que está congelado desde o início do governo Obama), redução da dívida estudantil (que já ultrapassa US$ 1 trilhão, com US$ 166 bilhões de inadimplência declarada) e taxação justa e progressiva (nos dois últimos anos, a Amazon até teve restituição de imposto!). Também a revogação da política de encarceramento em massa que puniu especialmente os negros (“justiça criminal”), reforma da imigração (nada de muro, nem gestapo da fronteira), preservação ambiental e instauração de um sistema político e econômico “que funcione para a maioria”, e não apenas para uns poucos muito ricos.
Sanders só não ganhou em 2016 de Hillary – a cujos discursos pagos a peso de ouro por Wall Street chamava ironicamente de ‘prosa shakespeariana’ – porque foi garfado nas primárias e na convenção nacional, como os vazamentos do WikiLeaks revelaram.
Campanha a que chamou de “revolução política”, ao obter 13 milhões de votos nas primárias e angariar US$ 230 milhões em contribuições de pequeno valor.
As questões levantadas em 2016 por Bernie abriram caminho para a eleição, nas intermediárias do ano passado, da que vem sendo considerada a mais progressista fornada de novos deputados em várias gerações. Também abriu alas para outras pré-candidaturas mais arejadas à presidência pelos democratas, como a senadora Elizabeth Warren e a deputada Tulsi Gabbard.
Como registrou a revista The Nation, Sanders tem demonstrado uma grande capacidade de dizer grandes verdades sobre questões quase inteiramente abafadas pelo discurso neoconservador predominante.
“Quantos americanos sabem que em praticamente todos os países europeus, quando você tem um bebê, você tem licença garantida e, dependendo do país, também benefícios financeiros significativos. O povo americano sabe disso? Eu duvido. Será que o povo norte-americano sabe que somos o único grande país industrializado do Ocidente que não garante assistência médica para todos? A maioria das pessoas não sabe disso. O povo americano sabe que em muitos países da Europa, as faculdades e universidades públicas são gratuitas ou muito baratas?”
Em uma declaração, ele definiu o que entende por “socialismo democrático”: “baseia-se no que Franklin Delano Roosevelt disse quando lutou por direitos econômicos garantidos para todos os americanos. E no que Martin Luther King, Jr. disse em 1968, quando afirmou que “este país tem socialismo para os ricos e individualismo gritante para os pobres”, afirmou.
“É hora de termos um socialismo democrático para as famílias trabalhadoras, não apenas para Wall Street, bilionários e grandes corporações. Isso significa que não devemos fornecer benefícios para as corporações, enormes isenções fiscais para os muito ricos ou políticas comerciais que aumentem os lucros corporativos à medida que os trabalhadores perdem seus empregos”, assinalou Sanders.
Significa que criamos um governo que funciona para todos nós, não apenas interesses especiais poderosos. Isso significa que os direitos econômicos devem ser uma parte essencial do que a América representa. Isso significa que a saúde deve ser um direito de todas as pessoas, não um privilégio”.
Conforme Sanders, “nossa campanha não é só sobre derrotar Trump”, é sobre “transformar este país” e criar um governo baseado “nos princípios da justiça econômica, social, racial e ambiental”. Até que medida isso é possível no país mais imperialista do mundo, viciado na violência, pilhagem e submissão de todos aos privilégios de sua plutocracia e seus monopólios e bancos, atolado na especulação desenfreada e na declinante democracia, num planeta em rápida mudança, isso fica a ser visto. Otimista, entrevistado pela CNN sobre o que seria diferente em 2020 em comparação com 2016, o senador respondeu: “nós vamos vencer”.
A.P.