GABRIEL ALVES*
Ação é especialmente agressiva pelo fato do compositor ter sido uma das mais de 660 mil vidas brasileiras ceifadas pela corrupção negacionista de Bolsonaro na gestão da pandemia
Entre os vários personagens horríveis que tiveram destaque durante a ditadura em nosso país, os torturadores e demais frequentadores de seus porões merecem um destaque especial por seu sadismo e crueldade. Mas, mesmo entre esses monstros, alguns conseguem se destacar por participarem das sessões de tortura principalmente pelo prazer que sentiam ao ver a dor, o sangue e o sofrimento das pessoas nessas situações.
Para nós, seres humanos normais capazes de sentir compaixão, de ter amizade, de amar outras pessoas, é difícil imaginar como alguém consegue sentir satisfação ao ver um igual sendo torturado em qualquer situação e por qualquer motivo. E mais difícil ainda do que imaginar alguém sentir prazer ao presenciar tamanha atrocidade, é pensar que alguém pode considerar uma besta como essa um herói ou ídolo. E esse é exatamente o caso de Jair Bolsonaro, que por diversas vezes confessou e propagandeou sua admiração por Brilhante Ustra.
Carlos Alberto Brilhante Ustra foi chefe do DOI-CODI, comandante de um dos principais centros de tortura da ditadura e uma das criaturas mais sádicas que passaram por nosso país. Possuía tamanha desumanidade que não apenas comandava o aparato, mas, mesmo desobrigado por conta de sua patente, fazia questão de acompanhar e participar ativamente de suas sessões. Ele gostava de acompanhar o sofrimento alheio, transformava a dor do próximo em brinquedo.
E toda a reverência de Bolsonaro a esse sádico sujeito não é a toa: ela apenas reflete a completa identidade de valores entre os dois. Nesta semana, pudemos presenciar mais uma demonstração dessa crueldade, quando, no aniversário de dois anos da morte do compositor Aldir Blanc, ele assinou o veto à lei que homenageia o compositor em seu nome. O veto já era esperado, quase todas pessoas sabiam que o ódio do presidente à cultura levaria a isso (fato já noticiado aqui no HP e amplamente denunciado por parlamentares amigos da cultura e militância do setor), mas o fato do presidente ter aguardado 42 dias da aprovação da lei (23 de março) para vetá-la exatamente no dia 4 de maio demonstra seu sadismo e crueldade com a escolha da data como símbolo para agredir e machucar a memória do compositor que sempre se posicionou como oposição aos valores representados por ele. E, não bastasse a mórbida escolha, a ação é especialmente agressiva pelo fato de o compositor ter sido uma das mais de 660 mil vidas brasileiras ceifadas pela corrupção negacionista de Bolsonaro na gestão da pandemia.
Aldir Blanc foi um dos compositores que melhor escreveu e traduziu o Brasil em suas letras. Mas ele não escrevia sobre qualquer aspecto do Brasil, não contava histórias desinteressantes, casos vazios ou para defender pessoas sem princípios. Suas composições retratam a luta pela justiça e pela liberdade. Ele foi um autor original, provocante, tirador de onda, que desenhou em suas canções os botecos cariocas, as mesas de sinuca e carteado, a malandragem, a solidariedade do povo. Para resumir em uma só afirmação, as ideias que Aldir representa por sua vida e obra são exatamente o oposto daquilo que representa Jair Bolsonaro.
Eu poderia aqui tentar escrever sobre como as composições de Aldir demonstram essa oposição, mas para isso certamente existem compositores, musicólogos e acadêmicos mais recomendados. Nem sei também se essa seria a maior diferença, talvez ela seja anterior, talvez seja principalmente pelo fato de Aldir ter sido um ser humano de maior generosidade e compaixão, alguém capaz de solidariedade e de amar aos outros. Enquanto isso, Bolsonaro apenas é uma criatura, um miliciano sádico e cruel, uma coisa menor e destinada a ser deixada pra trás na história.
Já que estamos falando de um compositor imenso como Aldir, esse texto não poderia fugir do clichê de citar uma de suas canções (me perdoe por fazer coisa tão óbvia, mas tenho certeza que o leitor concorda com essa necessidade) para dizer que, mesmo nos momentos mais complicados onde elas parecem mais fortes, nossa volta está mais perto do que a gritaria da escumalha quer nos fazer acreditar. Pego aqui emprestado versos de Valhacouto, uma das últimas letras de Aldir Blanc (março de 2019) feita para a música do grande amigo Douglas Germano, pois pra quem é bom entendedor as coincidências vão além das aparências:
“Foi na Alemanha
Que a escumalha
Fez armas virarem leis
Entraram na guerra
Pensando em mil anos
a arrogância durou seis…”
* Gabriel Alves é diretor do Centro Popular de Cultura da UMES – CPC-UMES