“As sanções de Washington levaram a Rússia a enfrentar a realidade de que a era da associação econômica irrestrita com o Ocidente estava terminando”, diz Ritter no artigo que publicamos na íntegra
SCOTT RITTER*
Ao buscar um divórcio econômico da Rússia, o presidente dos EUA, Joe Biden, e seus aliados europeus ignoraram o ditado testado pelo tempo: “Mantenha seus amigos próximos, mas seus inimigos mais próximos”. Ao fazer isso, eles permitiram a completa dissociação econômica da Rússia do Ocidente. A resultante união econômica russa com a China transformará a realidade geopolítica global, em detrimento daqueles que buscaram essas sanções em primeiro lugar.
Desde o colapso da União Soviética, a Rússia mantém uma relação de Jekyll e Hyde com os EUA e o Ocidente. Na terrível realidade econômica da Rússia pós-soviética, muitos no Ocidente acreditavam que o fantasma soviético poderia ser melhor exorcizado por meio de um programa intensivo de democratização, que acompanharia a transformação da economia soviética arruinada e controlada centralmente em um mercado livre vibrante construído ao longo do tempo em linhas capitalistas ocidentais.
O resultado foi um desastre. O presidente da Rússia pós-soviética, Boris Yeltsin, mostrou-se inadequado para a tarefa, e o que se passava por democracia na Rússia foi rapidamente anulado em outubro de 1993, quando Yeltsin ordenou que o exército russo abrisse fogo contra a legislatura russa. O estrangulamento da democracia foi completado quando Yeltsin foi reeleito em 1996 em uma disputa fortemente manchada.
ASCENSÃO DOS OLIGARCAS
A economia russa, enquanto isso, havia sido tomada por negocistas ocidentais em busca de lucro rápido e empresários russos antiéticos, que moldaram leis e políticas domésticas que lhes permitiram adquirir antigas empresas estatais a preços baixíssimos.
A classe oligarca de bilionários resultante iniciou um relacionamento incestuoso com seus benfeitores ocidentais, trocando acesso a recursos russos por ajuda na transferência de bilhões de dólares para abrigos offshore, na forma de imóveis de primeira linha, contas bancárias fora do alcance da autoridade russa e prestígio através de investimentos como equipes esportivas.
No rastro dessa aquisição inescrupulosa de riqueza ficaram os cidadãos russos comuns, que receberam apenas o meloch (moeda solta) do experimento da Rússia no capitalismo, cujas lojas e serviços constituem as armadilhas de uma vida ostensivamente melhor.
A Rússia lutou, mas sobreviveu. E no final da década de 1990, quando Yeltsin entregou o corpo doentio da Rússia pós-soviética ao seu sucessor escolhido a dedo, Vladimir Putin, havia uma classe de pessoas na Rússia que havia atrelado sua fortuna e sustento à promessa do capitalismo de estilo ocidental.
Putin, sem dúvida, viu a promessa de uma economia russa guiada pelos princípios do capitalismo. Mas ele enfrentou a realidade de que, sob Yeltsin, a Rússia havia se vendido a interesses externos que, em conjunto com uma classe oligarca cada vez mais corrupta, estavam estrangulando o potencial econômico da Rússia.
Putin também trouxe para a presidência russa uma forte crença de que a Rússia precisava restaurar sua posição como uma grande potência – não totalmente elevada ao status da antiga União Soviética, mas pelo menos igual a outras potências mundiais como parte de uma abordagem multilateral para geopolítica mundial.
TODOS, EXCETO A RÚSSIA
Os esforços de Putin o colocaram em desacordo com os EUA e a Europa Ocidental, que aproveitaram o colapso da União Soviética e seus satélites do Leste Europeu para criar uma nova estrutura de segurança europeia que buscava unificar toda a Europa sob um único guarda-chuva militar – toda a Europa, exceto a Rússia.
O papel da Rússia nessa grande transformação seria permanecer militarmente fraco e politicamente obediente. Os esforços de Putin para restaurar a Rússia como uma grande potência prejudicaram esse plano, e a Rússia se viu cada vez mais vista como uma ameaça tanto pelos EUA quanto pela Europa.
A supressão dos oligarcas por Putin, onde ele permitiu que eles retivessem suas riquezas e ativos em troca de seu afastamento da política, enfraqueceu o acesso e o controle ocidentais dos assuntos internos russos.
Além disso, a reação russa contra a expansão da Otan na Europa Oriental, quando combinada com o término iniciado pelos EUA de algumas relações centrais do tratado de controle de armas da Guerra Fria, transformou a Rússia de um incômodo político em um rival geopolítico.
A guerra da Rússia com a Geórgia em 2008 e a anexação da Crimeia em 2014 abriram as portas para sanções econômicas lideradas pelos EUA destinadas a punir a Rússia por suas ações. Essas sanções, quando combinadas com sanções semelhantes dos EUA ao Irã, forçaram a Rússia a enfrentar a realidade de que a era da associação econômica irrestrita com o Ocidente estava terminando.
GIRANDO PARA LESTE
A Rússia, junto com a China, começou a buscar alternativas ao modelo de interação econômica global dominado pelo dólar. Ao fazer isso, eles começaram a encontrar uma causa comum na elaboração de uma alternativa geopolítica à “ordem internacional baseada em regras” liderada pelos EUA, que dominou o andaime político e econômico global construído no final da Segunda Guerra Mundial.
Qualquer pivô russo para o Leste, no entanto, era limitado pela realidade de que a economia russa permanecia inextricavelmente entrelaçada com o Ocidente. Não só a riqueza dos oligarcas russos estava escondida em abrigos offshore, mas havia toda uma classe de cidadãos russos cujo sustento diário estava entrelaçado no tecido de uma economia que havia absorvido negócios e práticas ocidentais.
Qualquer tentativa de divórcio do Ocidente transformaria o que havia sido uma classe média russa amplamente pró-ocidental em um eleitorado politicamente ativo que, se acoplado a uma classe oligarca manca, mas ainda poderosa, poderia desafiar o poder de Putin.
ERRO ESTRATÉGICO
Mas Biden e seus aliados europeus decidiram abandonar a abordagem “Mantenha seus amigos próximos, mas seus inimigos mais próximos” em favor do oposto.
O erro foi acreditar que causar dor suficiente ao povo russo provocaria uma reação política que poderia levar à remoção de Putin do poder. Mas para que essa dor traga mudanças políticas domésticas significativas, a Rússia precisaria manter alguma conectividade econômica com o Ocidente. Caso contrário, a dor seria intensa, mas de curta duração.
Deixado por conta própria, Putin nunca seria capaz de divorciar a Rússia do Ocidente e, assim, isolar a sociedade russa das sanções ocidentais – e, por extensão, sua capacidade de governar. Aqui, os EUA e a Europa estão fazendo um grande favor a Putin, com as atuais sanções abrangentes dando-lhe a capacidade de separar a Rússia de sua associação econômica com o Ocidente sem as consequências politicamente fatais de ser visto fazendo isso por própria vontade.
Graças às sanções lideradas pelos EUA, Putin agora poderá neutralizar a classe oligarca russa para sempre. As sanções também neutralizaram politicamente aquela parcela da classe média russa que era economicamente casada com negócios, bens e serviços ocidentais – e mística.
Putin conseguiu o divórcio sem pagar nenhum preço político significativo. Enquanto os EUA e a Europa podem alegar que Putin provocou isso ao invadir a Ucrânia, para o povo russo, as ações dos EUA e da Europa levaram ao divórcio. A demonização de tudo relacionado à Rússia por muitos no Ocidente apenas ajuda o governo russo a desviar de si mesmo o golpe e a explicitar a culpa do Ocidente, que tornou isso pessoal.
“Eu garanto a vocês”, disse o chanceler russo Sergei Lavrov à imprensa em 10 de março, “vamos superar as adversidades e faremos tudo para não mais depender do Ocidente em nenhum setor estratégico de nossa vida que seja de importância decisiva para nosso povo.” A Rússia, disse Lavrov, “não dependerá mais de nenhuma empresa ocidental”.
Enquanto Lavrov fazia seus comentários, o vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitri Medvedev, anunciou que o governo estava considerando a possibilidade de nacionalizar ou falir a propriedade de empresas estrangeiras que deixam a Rússia. A dissociação começou.
* Ex-oficial de inteligência dos Marines dos EUA que participou da implementação dos acordos de controle de armas com a União Soviética, ex-inspetor-chefe da ONU no Iraque no período de 1991-1998 e atualmente analista da cena internacional
Publicado originalmente sob o Título “A grande dissociação: como as sanções ocidentais estão empurrando Moscou para o leste”. Tradução Hora do Povo.