
Amparado na surrada narrativa do “déficit”, Rogério Ceron, do Tesouro Nacional, somou-se à pregação por uma nova “reforma previdenciária”
Integrante da equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou que “novas reformas da Previdência terão de ser feitas”.
Embora reconhecendo que não é uma “solução fácil” sobre o assunto, Ceron abordou o envelhecimento da população, a redução do número de famílias e a consequente queda na contribuição (previdenciária) como fatores que induzem à uma nova reforma.
“É inevitável e nós teremos que passar no futuro por outras reformas”, declarou em entrevista à revista Exame.
Ceron disse que o foco do governo atual se deu sobre a Reforma Tributária. “Cada ciclo de governo tem de enfrentar uma batalha. Estamos enfrentando uma batalha importantíssima sobre reforma tributária, que faz um avanço importante. Daqui a pouco, outro governo vai ter que se debruçar de novo sobre Previdência. E aí vamos seguindo a nossa história”, afirmou.
A declaração do secretário se dá no momento em que setores da grande mídia inundam seus espaços físicos e digitais com matérias sobre a malfadada fila do INSS (Instituto Nacional de Segurança Social) que encostou em 2 milhões e atingiu o maior patamar desde o início de 2020 durante o trágico governo de Bolsonaro (PL).
Segundo o Portal de Transparência do MPS (Ministério da Previdência Social), o número de pedidos em análise chegou a 1,985 milhão em novembro de 2024. Conforme os dados divulgados, 1,170 milhão é referente ao estoque previdenciário total, 447,7 mil se referem ao estoque beneficiário assistencial e 365,5 mil são requerimentos em exigência do segurado. Os números de dezembro do ano passado ainda não estão disponíveis.
HISTÓRICO DE RETROCESSOS
Diante de tais números, não faltaram “especialistas” do mercado para falar mais uma vez sobre a inexorabilidade de uma nova reforma da Previdência, além daquelas que já foram operadas nos governos anteriores, desde Collor.
O fato é que o regime da Previdência universal, como é conhecido hoje, representou uma das maiores conquistas do povo brasileiro na promulgação da Constituição Cidadã de 1988.
A partir daí, as forças do “mercado”, com seus porta-vozes na mídia e na política, não cessaram os ataques para reduzir direitos sociais introduzidos na legislação previdenciária que se relacionam com a existência do Brasil como país soberano.
A primeira alteração foi já em 1991, durante o governo Collor de Mello. Diante da inflação do período, a mudança nas normas passou a prever que os benefícios levassem em conta a correção monetária.
Em 1998, já no governo Fernando Henrique Cardoso, as alterações foram maiores. Foi nesse período que se fixou as idades mínimas de 48 (mulheres) e 53 (homens) para os funcionários públicos se aposentarem. Como as idades mínimas não foram aprovadas para o setor privado, FHC implementou o chamado fator previdenciário. A fórmula reduz o benefício de quem pretende se aposentar mais cedo. O cálculo, complexo, leva em consideração variáveis como a idade do trabalhador e a média das contribuições ao INSS no decorrer da carreira.
Até mesmo os primeiros mandatos do presidente Lula não escaparam de alguns retrocessos nas regras previdenciárias, principalmente no tocante aos servidores federais. Uma emenda constitucional restringiu a possibilidade de aposentadoria integral (com o último salário) para quem entrou na carreira até 2003. Quem ingressou depois disso passou a ter o benefício calculado de acordo com a média de sua contribuição para a Previdência. Os servidores aposentados passaram a ter desconto de 11%. As idades
mínimas subiram a 55 anos (mulheres) e 60 anos (homens).
Já os trabalhadores da iniciativa privada foram atingidos em 2015, no governo Dilma Rousseff, com a regra que ficou conhecida como 85/95. A norma concede aposentadoria integral aos trabalhadores que, somando o tempo de contribuição e a idade, obtenham resultado igual ou superior a 85 pontos (para mulheres) e 95 pontos (para homens). A soma é progressiva e atualmente está em 86/96 pontos. Aquele governo também implementou o Funpresp, fundo de previdência complementar dos servidores públicos, em 2013. Quem ingressou na carreira após o Funpresp tem a aposentadoria limitada ao teto do INSS (R$ 5.839,45), com a opção de contribuir para o fundo complementar.
Mas foi no governo Bolsonaro, sob a batuta de Guedes, que a Previdência Pública e Social levou um dos mais duros golpes, desfechado principalmente contra as mulheres, cada vez mais presentes no mercado de trabalho. Na promulgação da reforma da Previdência, em novembro de 2019, na antessala da pandemia, a idade mínima para as mulheres estava em 60 anos, passando a aumentar seis meses por ano nos quatro anos seguintes. Subiu para 60 anos e meio em janeiro de 2020, para 61 anos em janeiro de 2021, 61 anos e meio em 2022 e 62 anos no ano passado.
Assim, com a obrigatoriedade de idade mínima de 62 anos para a aposentadoria de mulheres a de 65 para homens, pendurar as chuteiras ficou muito mais difícil. Hoje, com a contrarreforma em vigor, o trabalhador, seja do Regime Geral (celetistas), ou de Regime Próprio (servidores), trabalha por mais tempo, contribui com mais, recebe benefício menor, por menos tempo.
Outro impacto ocorreu sobre as pensões por morte concedidas a partir de 13 de novembro de 2019. Antes desta data, esses benefícios eram concedidos aos dependentes com valor equivalente a 100%, ou seja, o seguro social pago mensalmente no caso de falecimento do mantenedor do lar garantia aos dependentes benefício integral.
A FARSA DO “DÉFICIT” DA PREVIDÊNCIA
A narrativa do “déficit” da Previdência para tentar justificar novas “reformas”, leia-se, retrocessos para o alcance e o tamanho dos benefícios, vem de longa data e tem sido utilizada para a organização de novos ataques a direitos constitucionais consagrados, inerentes a qualquer estado de bem-estar-social, ao qual se soma, agora, o atual secretário do Tesouro Nacional.
O fato é que, de modo geral, tal “déficit” é apurado levando-se em consideração, apenas, a contribuição de empregados e empregadores na comparação com todo gasto previdenciário. No entanto, existem outras fontes de financiamento que, de modo geral, são ignoradas ou mesmo desvirtuadas para outras finalidades, especialmente para os gastos do erário com a rolagem da dívida pública, cujo valor anualizado já se aproxima da casa de R$ 1 trilhão.
Mentira recorrente, o “déficit” na Previdência também tem sido repetida por instituições financeiras e seus porta-vozes na mídia interessadas em vender seus planos privados de capitalização.
Exemplo da falácia: recentemente, na divulgação de dados do primeiro semestre de 2023, afirma-se que “no período de janeiro a junho de 2023, a Previdência Social (RGPS) registrou déficit de R$ 165,8 bilhões (a preços de jun/23)”. No entanto, a conta que fazem para chegar a esse falacioso “déficit” afronta o que determina a Constituição Federal!
O conjunto de benefícios garantidos pela Previdência Social, juntamente com demais ações das áreas de Assistência Social e Saúde, conformam a Seguridade Social, tratada no Capítulo II da Constituição Federal, artigos 194 a 204, onde está explicitamente registrada a manutenção financeira desse sistema por toda a sociedade, de tal forma que, além do próprio governo (com recursos do orçamento geral), todas as empresas, trabalhadores, demais segurados e consumidores de bens e serviços também pagam
contribuições destinadas à manutenção da Seguridade Social.
Verificando-se os dados disponibilizados pelo governo, o cálculo do anunciado “déficit” foi obtido mediante a simples comparação entre a arrecadação própria do INSS no período de janeiro a junho/2023 (valor bruto de R$ 289,89 bilhões referente ao total arrecadado pela Previdência Social no período), menos o total de benefícios previdenciários pagos no mesmo período (R$ 440,23 bilhões), além de alguns ajustes (restituições, ressarcimentos, devoluções etc.), resultando em saldo negativo de R$ 164,98 bilhões.
Esse “déficit” é falacioso, pois considera apenas as contribuições ao INSS e ignora todas as demais contribuições destinadas ao financiamento da Seguridade Social, que no mesmo período superaram R$ 260 bilhões (sendo R$ 137,04 bilhões referente à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); R$ 40,39 bilhões à Contribuição ao Programa de Integração Social PIS e ao Pasep, e R$ 84,07 bilhões referente à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL), deixando de considerar também a obrigatoriedade do governo destinar outras verbas orçamentárias para a manutenção da Seguridade Social, conforme prevê o artigo 195 da Constituição Federal.
Portanto, não há que se falar em “déficit” da Previdência, inserida na Seguridade Social e sustentada pelas múltiplas fontes de financiamento existentes, além da contribuição ao INSS, computada como se fosse a única fonte destinada à manutenção do sistema.
ENVELHECER VIROU UM PROBLEMA, NÃO UMA CONQUISTA
O envelhecimento da população, que deveria ser encarado como um triunfo do desenvolvimento social, fruto das melhorias nutricionais, condições sanitárias, avanços da medicina, cuidados com a saúde, maior acesso à educação, entre outros fatores, passou a ser abordado como um problema, que deve ser tratado com medidas cada vez mais restritivas para o acesso à aposentadoria.
Segundo esses especialistas que se regem pela lógica neoliberal, quanto mais a população envelhece, mais obstáculos devem ser colocados para o alcance dos benefícios previdenciários. O céu, aliás, o inferno é o limite para essas mentes da ortodoxia neoliberal, sedentos em prestar contas ao mercado, não importa os prejuízos que isso cause à dignidade do ser humano, no momento em que mais precisa dessa dignidade – na velhice, depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifício.
A declaração do secretário do Tesouro está sintonizada, entretanto, com a resiliência de uma política econômica que, ao incrementar a informalidade e a precarização do trabalho, conspira permanentemente à favor de medidas que minam os pilares da Previdência Pública e Social, bem como outras “reformas” de caráter neoliberal, avessas ao desenvolvimento sustentável e soberano do país pelo caminho da retomada dos investimentos públicos em outros patamares, da reindustrialização da economia e do resgate da CLT, com a geração de empregos formais seguros e decentes e o fortalecimento das redes de proteção social, entre as quais se destaca a Previdência pelo seu significado na vida das atuais e futuras gerações de brasileiros.
MARCO CAMPANELLA