Segundo turno no Chile será entre ex-ministra Jara e o fascista Kast

Candidata Jeannette Jara é a primeira colocada no primeiro turno do Chile (AFP)

O Serviço Eleitoral do Chile anunciou neste domingo (16) que haverá um segundo turno entre a candidata do atual governo, a comunista ex-ministra do Trabalho, Jeannette Jara, e o candidato de extrema-direita, José Antonio Kast, que tiveram respectivamente 26% dos votos e 24%, com 90% das urnas apuradas. O segundo turno será no dia 14 de dezembro, já que nenhum dos dois obteve mais de 50% dos votos válidos.

Na eleição passada (2021), Kast chegou a estar na frente no primeiro turno, mas acabou derrotado pelo social-democrata Gabriel Boric. Desde 2006, a oposição ganha as eleições do partido no poder, em razão do descontentamento com as promessas de campanha não cumpridas. A comunista Jara concorreu pela coalizão Unidade do Chile, enquanto Kast foi o candidato do Partido Republicano, do qual é fundador.

Outros três candidatos com raízes no pinochetismo, a ex-ministra do ex-presidente Piñera, Evelyn Matthei, o clone de Milei, o tiktoker Johannes Kaiser, e o “antissistema” Franco Parisi, obtiveram, respectivamente, 13%, 14% e 19%. Como esperado Kaiser declarou apoio a Kast, o que deve se repetir com Matthei. Três candidatos tiveram votações diminutas: Harold Mayne-Nicholls, Marco Enríquez-Ominami e Eduardo Artes.

Boric, que deverá entregar a faixa presidencial ao seu sucessor em 11 de março, saudou Jara e Kast e declarou “confiar que o diálogo, o respeito e o amor pelo Chile prevalecerão sobre quaisquer divergências”. Aos eleitores, ele asseverou que “esta decisão fundamental baseia-se na consciência e no voto livre e informado de cada um de vocês”.

O resultado do primeiro turno expressa a capacidade da extrema-direita de polarizar o debate da campanha eleitoral, centrado nas ameaças da “imigração” e “criminalidade”, e escanteando a necessária discussão sobre a desigualdade no Chile e os caminhos para o desenvolvimento. Além do desgaste do governo Boric, que fracassou em atender às elevadas expectativas desencadeadas pela maior mobilização popular do Chile pós-1973, que se traduziram na incapacidade de, por duas vezes, conduzir a redação de uma nova constituição para o Chile que enterrasse, definitivamente, o pinochetismo.

INSEGURANÇA PÚBLICA

Polarização que tem certo vínculo com a realidade, na medida em que, sob as sanções excruciantes dos EUA contra a Venezuela, que causaram uma depressão econômica e que incluíram até mesmo o roubo das reservas do país na Inglaterra, empurraram multidões de venezuelanos para a imigração e, atualmene, no Chile há 700 mil venezuelanos vivendo precariamente. Também em dez anos a criminalidade por 100 mil triplicou – embora seja um índice ainda baixo comparado com os países vizinhos.

E os fascistas papaguearam o mais que puderam a Trump nesse quesito, não faltando sequer as referências ao “Tren de Aragua”. Assim, na interpretação de analistas, parte da população chilena passou a associar o aumento da imigração ao avanço da criminalidade.

Como observou ao G1 a socióloga da Universidade de Santiago e especialista em crime organizado na América Latina, Lucia Dammert, o aumento da imigração e da criminalidade criou um duplo choque para o Chile, que não estava acostumado a nenhum dos dois problemas.

Mas é ela que acrescenta que “às vezes olhamos demais para os grupos criminosos transnacionais e esquecemos de olhar para os nossos. No fim das contas, a maioria das pessoas presas é chilena, e a maioria das gangues também é comandada por chilenos”.

Outro fator na eleição foi a restauração do voto obrigatório a partir dos 18 anos de idade, o que torna mais difícil as previsões sobre o resultado, na medida que na eleição anterior a abstenção chegou a 53%.

O ABRAÇO FRATERNO DE JARA

Em sua primeira declaração após o resultado do primeiro turno, Jara enviou “um abraço fraterno a todos aqueles que votaram em mim e também àqueles que não votaram; digo isso porque a democracia em nosso país deve ser cuidada e valorizada, e nos custou muito recuperá-la para que não seja posta em risco hoje”.

“Quero expressar minha sincera gratidão pelo seu apoio neste momento histórico, em que não está em jogo apenas uma candidatura presidencial, mas também um projeto nacional voltado para o futuro , muito diferente de outros projetos que colocam o ódio, o medo e a desesperança no centro”, acrescentou.

E sobre sua firme convicção sobre o Chile, Jara disse que “nós não somos aqueles que promovem o ódio, pelo contrário, é por isso que não me escondo atrás de nenhum vidro, porque não tenho medo do povo do Chile”. E enfatizou que “o Chile não está se desintegrando, somos um grande país com um grande futuro pela frente”.

Quanto à complexa situação do segundo turno, Jará se disse “uma lutadora” e “é assim que vamos encarar o segundo turno”.

Ex-ministra do Trabalho e da Previdência de Boric, Jara, ex-presidente da Federação dos Estudantes Universitários, oriunda de uma família operária e a única da família que cursou uma universidade, foi também subsecretária da Previdência Social no segundo governo de Michelle Bachelet, entre 2016 e 2018.

Ela reafirmou seu compromisso de garantir um salário mínimo de 750.000 pesos em seu governo e reiterou que, como presidente, vai “garantir que todas as famílias consigam se sustentar”. Ela assegurou que o progresso continuará nas áreas de previdência, saúde, educação e habitação.

Ela é vista ainda como a principal responsável por conquistas do atual governo, como a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais e a negociação da reforma da previdência. Nas primárias da coalizão governista, ela venceu por larga margem.

Neste domingo, Jara criticou seus oponentes por “exacerbar o medo”. Isso não “serve para governar um país […] é preciso ter capacidade de realizar acordos, ter capacidade de diálogo”, disse ela após votar em Santiago.

Jara reiterou que não terá “nenhum problema com a questão da segurança”, mas que também garantirá que os chilenos tenham “a segurança de chegar ao fim do mês”.

Ela reafirmou como propostas centrais de sua campanha a elevação do salário mínimo, um preço máximo para medicamentos e a criação da Empresa Nacional de Lítio, a matéria-prima essencial para o avanço da economia chilena e para a transição energética.

Para Jara, o combate ao crime organizado passa por revogar o sigilo bancário de suspeitos, permitindo rastrear fluxos financeiros ilegais e enfraquecer as redes criminosas: “vamos atingi-los onde mais dói, no rastro do dinheiro sujo”.

CLONE DE TRUMP E BUKELE

Já Kast, quecomemorou a ida ao segundo turno na expectativa de que a “terceira vez” que disputa a presidência será a sua vez, chamou à união dos pinochetistas e a que sejam minimizadas as eventuais diferenças. Ele não esconde que tem como ídolos Trump, Bukele e Bolsonaro.

Em sua campanha, repetiu chavões de Trump, prometendo expulsar todos os imigrantes sem documentos – os venezuelanos , especialmente – e implantar o chamado “Escudo da Fronteira” — um plano que prevê a construção de um muro de 5 metros, trincheiras de 3 metros e cercas elétricas ao longo da divisa norte do país.

Kast também endossa a abordagem de “mão de ferro” de Bukele, tendo visitado sua megaprisão em El Salvador no ano passado para conhecer seu funcionamento, apesar dos relatos de violações de direitos humanos no local. “Precisamos de mais Bukele e menos Boric”, declarou ele durante sua campanha.

Na frente econômica, as propostas de Kast apresentam semelhanças com as de Milei: ele propõe um drástico ajuste fiscal de US$ 6 bilhões (quase R$ 32 bilhões) ao longo de 18 meses sob o lema de “cortar gastos políticos” – isto é, cortar gastos com educação e saúde. Além de se dizer favorável a mais privatizações e lambanças “público-privadas”.

NEONAZI DE BERÇO?

Kast é o caçula de dez filhos de um casal alemão que emigrou para o Chile após a Segunda Guerra Mundial e seu pai, Michael Kast, segundo investigações jornalistas, foi membro do partido nazista de Hitler aos 18 anos, de acordo com um documento de 1942 dos Arquivos Federais da Alemanha.

Já Kast assevera que seu pai foi forçado a se alistar no exército alemão para evitar um possível julgamento militar e execução. “Nossa história familiar está tão distante do nazismo quanto qualquer um possa imaginar”, declarou ele durante a campanha de 2021.

Apesar das alegações de Kast, o local e a data de nascimento no documento de 1942 coincidem com os do pai do candidato chileno.

Também é defensor do golpe de 1973 e a favor do indulto para os condenados por crimes contra a humanidade. Disse ainda, que se o Pinochet estivesse vivo, teria votado nele.

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