Pelo terceiro dia consecutivo, a revolta tomou conta de Minneapolis, a maior cidade do estado de Minnesota, nos EUA, na quinta-feira (28) com manifestantes indignados exigindo “justiça” e repudiando o assassinato covarde na segunda-feira, de um cidadão negro desarmado, dominado no chão e algemado, George Floyd, que foi sufocado até à morte, com um joelho sobre seu pescoço, por um policial branco. “Não consigo respirar”, implorou em vão Floyd.
Os manifestantes – muitos negros, mas também brancos e latinos – exigem que o policial assassino e os três cúmplices de distintivo sejam levados a julgamento, por homicídio qualificado, e condenados. Protestos também ocorreram em Los Angeles e Nova Iorque.
Pelas características, o crime já vem sendo descrito como o “Não Consigo Respirar 2.0” – em referência a estrangulamento em 2014 de outro negro desarmado, Eric Garner, em Nova Iorque por um policial, à luz do dia.
Na quinta-feira, o governador democrata Tim Walz anunciou a convocação da Guarda Nacional, depois que os protestos se espalharam de Minneapolis para a vizinha Saint Paul, após confrontos com a força policial, incêndios e saques.
O prefeito da cidade, o democrata Jacob Frey, pediu calma via Twitter na manhã de quinta-feira. “Por favor, Minneapolis, não podemos deixar que a tragédia produza mais tragédia”, escreveu.
BASTA DE IMPUNIDADE
Na quarta-feira, a multidão que foi até o 3º Distrito Policial de Minneapolis, onde trabalhavam os policiais assassinos, foi recebida com gás lacrimogêneo em profusão e balas de borracha, aumentando a tensão.
Os protestos de terça-feira haviam conseguido forçar a demissão dos quatro policiais envolvidos – até então só suspensos das funções.
Os confrontos são o sintoma de que a população não se mostra disposta a engolir, novamente, a costumeira impunidade: os policiais assassinos sequer são levados a julgamento, ou então são ‘inocentados’ por um júri escolhido a dedo.
Só graças ao sangue frio de Darnella Frazier, a moradora do bairro que testemunhou tudo, filmou e divulgou direto numa rede social, é que o crime não acabou virando outra estatística de flagrante de “resistência”.
Comentaristas classificaram a morte de Floyd de “uma execução ao vivo”.
A guarnição policial tinha chegado ao local atrás de alguém que teria supostamente passado ou tentado passar uma nota falsa de 20 dólares numa loja de conveniência. Não era uma ocorrência por violência, nada.
Floyd estava dentro de seu carro nas imediações quando foi abordado, para em poucos minutos estar morrendo.
Outro vídeo fornecido por um restaurante do local onde Floyd foi morto, e mostrado pelo Washington Post, desmentiu a alegação de que Floyd houvesse resistido.
Como o prefeito Frey afirmou, Floyd “merece justiça, a sua família merece que seja feita justiça, a comunidade negra merece que seja feita justiça e a nossa cidade merece ver ser feita justiça”, após a família exigir que a acusação seja por homicídio qualificado.
“POR QUE O ASSASSINO NÃO ESTÁ NA CADEIA?”
Na mesma coletiva de imprensa, o prefeito de Minneapolis disse que há 36 horas estava encasquetado com uma pergunta: “Por que o homem que matou George Floyd não está na cadeia?”. Ele acrescentou que “se você tivesse feito isso, ou eu tivesse feito isso, estaríamos atrás das grades agora”. “E não posso chegar a uma boa resposta sobre isso”.
Ele anunciou que estava pedindo ao procurador do condado de que Minneapolis faz parte, Mike Freeman, que indiciasse o policial responsável.
Os policiais envolvidos no assassinato são Derek Chauvin (o autor central do crime), Tou Thao, que lhe deu cobertura, e os dois mais novatos, Thomas Lane e Alexander Kueng, com um papel acessório. Chauvin já tem antecedente de morte e ferimento a terceiros, enquanto Thao já foi processado por espancamento.
“PAZ É JUSTIÇA”
Dois líderes da luta pelos direitos civis, os reverendos Al Sharpton e Jesse Jackson, foram na quinta-feira a Minneapolis para expressar sua solidariedade à família de Floyd. Ao ser perguntado por um repórter o que faria para deter a violência, Sharpton retrucou que “a violência começou nesta esquina quando o homem foi sufocado até a morte”.
“Há uma diferença entre paz e tranqüilidade”, acrescentou. “Algumas pessoas só querem silêncio. Paz é justiça.”
Também a mãe de Eric Garner, Gwen Carr, foi lá para exigir justiça. “Eu vim para prestar solidariedade à família e a vocês. Isso é como reabrir uma velha ferida e derramar sal nela”.
A família de George Floyd se juntou na quinta-feira ao pedido de calma em Minneapolis, em comunicado divulgado pelo advogado Benjamin Crump, nacionalmente conhecido por atuar em casos de negros assassinados pela polícia.
“Compartilhamos essas emoções dolorosas e exigimos justiça, mas também pedimos a todos que desejam levantar a voz para se envolverem em protestos pacíficos e observarem o distanciamento social. Não podemos afundar ao nível de nossos opressores”, acrescenta a mensagem.
LEBRON
Outras manifestações de solidariedade vêm surgindo. O astro do basquete, LeBron James, reeditou sua foto, da época do assassinato de Garner, com uma camiseta com os dizeres “Não Consigo Respirar”, sob o título de “Ainda”.
Ele também postou uma montagem, em que se vê o policial ajoelhado matando Floyd, e o astro do futebol americano, Colin Kaepernick, que foi posto no ostracismo por se manifestar contra o racismo, se ajoelhando na hora do hino. “Esse é o motivo. Vocês entendem agora? Ou ainda está borrado para vocês?”, destacou LeBron.
Floyd era considerado uma pessoa tranquila e trabalhava como segurança de um restaurante local há cinco anos. Sua namorada de há três anos, Courtney Ross, o descreveu como “um gigante gentil, que era todo amor e paz”.
“Ele amava a cidade. Ele veio para cá [de Houston] e ficou aqui pelas pessoas e pelas oportunidades”. “Acordar esta manhã para ver Minneapolis pegando fogo seria algo que devastaria Floyd”, asseverou.
A deputada federal por Minnesota, Ilhan Omar, denunciou que “disparar balas de borracha e gás lacrimogêneo contra manifestantes desarmados quando há crianças presentes nunca deve ser tolerado”. Ela classificou de “vergonhoso o que está acontecendo hoje à noite em nossa cidade”.
Como assinalou o prefeito Frey, “ser negro não deveria ser uma sentença de morte”. Ele disse entender a indignação, porque a injustiça já dura mais de quatrocentos anos.
“NÃO CONSIGO RESPIRAR”
A moradora do bairro que filmou o crime, Frazier, disse que “a polícia o matou, mano, bem na frente de todo mundo”. “Ele estava suplicando, dizendo tipo ‘eu não posso respirar’ e tudo mais. Eles não se importavam, eles mataram esse homem”.
O vídeo dela em certo momento mostra Floyd suplicando ao algoz: “por favor, por favor, eu não consigo respirar. Por favor, cara. Eu não consigo respirar. Meu estômago dói, meu pescoço dói, tudo dói”.
Floyd pede água, os transeuntes pedem que Chauvin pare, pedem que Thao interfira, mas a execução prossegue, a asfixia continua por quase oito minutos, o peso todo de Chauvin sobre um joelho, sobre o pescoço de um cidadão negro, que afinal já não se mexe nem geme. Ele ainda foi levado de ambulância a um hospital, mas já não havia o que fazer.
“Quantas mortes de negros serão necessários até que o perfil racial e a desvalorização das vidas negras pela polícia finalmente acabe?”, indagou o advogado da família Floyd, após condenar que “esse uso abusivo, excessivo e desumano da força custou a vida de um homem que estava sendo detido pela polícia para interrogatório sobre uma acusação não violenta”.
Para o ex-inspetor de armas dos EUA no Iraque, Scott Ritter, atualmente comentarista político, a questão dessas mortes por policiais inclui certamente o racismo, mas vai além. Depois de tantas ocupações, como no Iraque e no Afeganistão, as forças policiais cada vez mais se comportam como as forças militares de ocupação em uma “zona de guerra”, onde a população é “o inimigo”. Os bairros pobres, os guetos, são “zona de guerra”; o povo, “o inimigo”. Não há identidade, não há empatia. É, como diz um ditado tradicional norte-americano, as galinhas voltando para ciscar em casa – enquanto Minneapolis arde.