
“Os erros do passado não foram suficientes para deixarmos de saquear os outros e causar ferimentos aos nossos irmãos e à nossa irmã terra: vimos isso no rosto desfigurado da Amazônia”
Ao encerramento da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-amazônica, no último sábado (26), foi aprovado documento que denuncia “ameaças à vida” na região, condena o “extrativismo predatório”, alerta a “destruição” da floresta e diz que a defesa da floresta depende de uma verdadeira “conversão ecológica e cultural”.
No domingo (27), o Papa Francisco presidiu a missa de encerramento da do Sínodo, na Basílica de São Pedro. “Neste Sínodo, tivemos a graça de escutar as vozes dos pobres e refletir sobre a precariedade de suas vidas, ameaçadas por modelos de progressos predatórios. No entanto, precisamente nesta situação, muitos nos testemunharam que é possível olhar a realidade de modo diferente, acolhendo-a de mãos abertas como uma dádiva, habitando na criação, não como meio a ser explorado, mas como casa a ser protegida, confiando em Deus. Ele é Pai e ‘ouvirá a oração do oprimido’. Quantas vezes, mesmo na Igreja, as vozes dos pobres não são ouvidas, acabando talvez desprezadas ou silenciadas porque são incômodas”, afirmou o Papa Francisco em sua homilia.
Segundo o Papa, “os erros do passado não foram suficientes para deixarmos de saquear os outros e causar ferimentos aos nossos irmãos e à nossa irmã terra: vimos isso no rosto desfigurado da Amazônia”.
“A ‘religião do eu’ continua, hipócrita com os seus ritos e as suas ‘orações’, porém, muitos são católicos, se confessam católicos, mas se esqueceram de ser cristãos e humanos, esquecida do verdadeiro culto a Deus, que passa sempre pelo amor ao próximo. Até mesmo os cristãos que rezam e vão à missa aos domingos são seguidores dessa “religião do eu”. Podemos olhar para dentro de nós e ver se alguém, para nós, é inferior, descartável… mesmo só em palavras. Rezemos pedindo a graça de não nos considerarmos superiores, não nos julgarmos íntegros, nem nos tornarmos cínicos e escarnecedores. Peçamos a Jesus que nos cure de criticar e queixar dos outros, de desprezar seja quem for: são coisas que desagradam a Deus. Provavelmente, hoje nos acompanham nesta missa não apenas os indígenas da Amazônia: mas também os pobres das sociedades desenvolvidas, os irmãos e irmãs doentes da Comunità dell’Arche. Estão conosco”.
Durante os 20 dias do encontro, os bispos debateram a região amazônica a partir do olhar da Igreja Católica. O encontro foi realizado no Vaticano sob a direção do Papa Franscisco.
O cardeal brasileiro Dom Cláudio Hummes, relator-geral do encontro, considerou que a destruição ambiental e a violência ameaçam a vida na região da Amazônia. “A vida na Amazônia talvez nunca tenha estado tão ameaçada como hoje, pela destruição e exploração ambiental, pela violação sistemática dos direitos humanos elementares da população amazônica, de modo especial, a violação dos direitos dos povos indígenas”, disse o cardeal, sentado ao lado do papa Francisco.
Íntegra da homilia do Papa na missa de encerramento do Sínodo para a Pan-amazônia
Segue o texto integral da homilia do Papa Francisco na missa de encerramento do Sínodo para a Região Pan-amazônica, celebrada pelo Pontífice neste domingo (27/10), na Basílica de São Pedro.
HOMILIA DO SANTO PADRE
Eucaristia do XXX Domingo do Tempo Comum no encerramento da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Pan-amazônica
(Basílica de São Pedro, 27 de outubro de 2019)
Hoje, a Palavra de Deus ajuda-nos a rezar por meio de três personagens: na parábola de Jesus, rezam o fariseu e o publicano; na primeira Leitura, fala-se da oração do pobre.
1. A oração do fariseu principia assim:”Ó Deus, dou-Te graças”. É um ótimo começo, porque a melhor oração é a de gratidão, é a de louvor. Mas olhemos o motivo – referido logo a seguir –, pelo qual dá graças: «por não ser como o resto dos homens» (Lc 18, 11). E dá também a explicação do motivo: jejua duas vezes por semana, enquanto na época era obrigado a fazê-lo uma vez por ano; paga o dízimo de tudo o que possui, enquanto o mesmo era prescrito apenas para os produtos mais importantes (cf. Dt 14, 22-23). Em suma, vangloria-se porque cumpre do melhor modo possível preceitos particulares. Mas esquece o maior: amar a Deus e ao próximo (cf. Mt 22, 36-40). Transbordando de confiança própria, da sua capacidade de observar os mandamentos, dos seus méritos e virtudes, o fariseu aparece centrado apenas em si mesmo. O drama deste homem é que vive sem amor. Mas, sem amor, até as melhores coisas de nada aproveitam, como diz São Paulo (cf. 1 Cor 13). E sem amor, qual é o resultado? No fim de contas, em vez de rezar, elogia-se a si mesmo. De facto, não pede nada ao Senhor, porque não se sente necessitado nem em dívida, mas sente-se em crédito. Está no templo de Deus, mas pratica outra religião, a religião do eu. E muitos grupos “ilustres”, de “cristãos católicos”, seguem por esta estrada.
E além de Deus, esquece o próximo; antes, despreza-o, isto é, não lhe atribui preço, não tem valor. Considera-se melhor do que os outros, que designa, literalmente, por “o resto, os restantes (loipoi)” (Lc 18, 11). Por outras palavras, são “restos”, são descartados dos quais manter-se à larga. Quantas vezes vemos acontecer esta dinâmica na vida e na história! Quantas vezes quem está à frente, como o fariseu relativamente ao publicano, levanta muros para aumentar as distâncias, tornando os outros ainda mais descartados. Ou então, considerando-os atrasados e de pouco valor, despreza as suas tradições, apaga as suas gestas, ocupa os seus territórios e usurpa os seus bens. Quanta superioridade presumida, que se transforma em opressão e exploração, mesmo hoje! Vimo-lo no Sínodo, quando falávamos da exploração da criação, da população, dos habitantes da Amazónia, do exploração das pessoas, do tráfico das pessoas! Os erros do passado não foram suficientes para deixarmos de saquear os outros e causar ferimentos aos nossos irmãos e à nossa irmã terra: vimo-lo no rosto dilaniado da Amazónia. A “religião do eu” continua, hipócrita com os seus ritos e as suas “orações”: muitos dos seus praticantes são católicos, confessam-se católicos, mas esqueceram-se de ser cristãos e humanos, esqueceram-se do verdadeiro culto a Deus, que passa sempre pelo amor ao próximo. Até mesmo cristãos que rezam e vão à Missa ao domingo são seguidores desta «religião do eu». Podemos olhar para dentro de nós e ver se alguém, para nós, é inferior, descartável… mesmo só em palavras. Rezemos pedindo a graça de não nos considerarmos superiores, não nos julgarmos íntegros, nem nos tornarmos cínicos e vilipendiadores. Peçamos a Jesus que nos cure de criticar e queixar dos outros, de desprezar seja quem for: são coisas que desagradam a Deus. E providencialmente, nesta Missa de hoje, acompanham-nos não só os indígenas da Amazónia, mas também os mais pobres das sociedades desenvolvidas, os irmãos e irmãs doentes da Comunidade da Arca. Estão conosco, na primeira fila.
2. Passemos à outra oração. A oração do publicano ajuda-nos a compreender o que é agradável a Deus. Aquele começa, não pelos méritos, mas pelas suas faltas; não pela riqueza, mas pela sua pobreza: não uma pobreza econômica – os publicanos eram ricos e cobravam também injustamente, à custa dos seus compatriotas –, mas sente uma pobreza de vida, porque no pecado nunca se vive bem. Aquele homem que explora os outros reconhece-se pobre diante de Deus, e o Senhor ouve a sua oração, feita apenas de sete palavras mas de atitudes verdadeiras. De facto, enquanto o fariseu estava à frente, de pé (cf. Lc 18, 11), o publicano mantém-se à distância e “nem sequer ousava levantar os olhos ao céu”, porque crê que o Céu está ali e é grande, enquanto ele se sente pequeno. E “batia no peito” (cf. 18, 13), porque no peito está o coração. A sua oração nasce mesmo do coração, é transparente: coloca diante de Deus o coração, não as aparências. Rezar é deixar-se olhar dentro por Deus – é Deus quem me olha, quando rezo –, sem simulações, sem desculpas, nem justificações. Frequentemente fazem-nos rir os arrependimentos cheios de justificações. Mais do que um arrependimento parece uma auto-canonização. Porque, do diabo, vêm escuridão e falsidade – e tais são as justificações –; de Deus, luz e verdade, a transparência do meu coração. Foi bom – e muito vos agradeço, queridos padres e irmãos sinodais – termos dialogado, nestas semanas, com o coração, com sinceridade e franqueza, colocando fadigas e esperanças diante de Deus e dos irmãos.
Hoje, contemplando o publicano, descobrimos o ponto donde recomeçar: do facto de nos considerarmos, todos, necessitados de salvação. É o primeiro passo da religião de Deus, que é misericórdia com quem se reconhece miserável. Ao passo que a raiz de todo o erro espiritual, como ensinavam os monges antigos, é crer-se justo. Considerar-se justo é deixar Deus, o único justo, fora de casa. Esta atitude inicial é tão importante que Jesus não a mostra com uma confrontação paradoxal, colocando lado a lado na parábola a pessoa mais piedosa e devota de então, o fariseu, e o pecador público por excelência, o publicano. E a sentença final inverte as coisas: quem é bom, mas presunçoso, falha; quem é deplorável, mas humilde, acaba exaltado por Deus. Se olharmos para dentro de nós com sinceridade, vemos ambos em nós: o publicano e o fariseu. Somos um pouco publicanos, porque pecadores, e um pouco fariseus, porque presunçosos, capazes de nos sentirmos justos, campeões na arte de nos justificarmos! Isto, com os outros, muitas vezes dá certo; mas, com Deus, não. Com Deus, o engano não resulta. Rezemos pedindo a graça de nos sentirmos carecidos de misericórdia, pobres intimamente. Por isso mesmo faz-nos bem frequentar os pobres, para nos lembrarmos que somos pobres, para nos recordarmos de que a salvação de Deus só age num clima de pobreza interior.
3. Assim chegamos à oração do pobre, da primeira Leitura. Esta – diz Ben Sirá – “chegará às nuvens” (35, 17). Enquanto a oração de quem se considera justo fica em terra, esmagada pela força de gravidade do egoísmo, a do pobre sobe, direita, até Deus. O sentido da fé do Povo de Deus viu nos pobres “os porteiros do Céu”: aquele sensus fidei que faltava na declamação [do fariseu]. São eles que nos abrirão, ou não, as portas da vida eterna; eles que não se consideraram senhores nesta vida, que não se antepuseram aos outros, que tiveram só em Deus a sua própria riqueza. São ícones vivos da profecia cristã.
Neste Sínodo, tivemos a graça de escutar as vozes dos pobres e refletir sobre a precariedade das suas vidas, ameaçadas por modelos de progresso predatórios. E, no entanto, precisamente nesta situação, muitos nos testemunharam que é possível olhar a realidade de modo diferente, acolhendo-a de mãos abertas como uma dádiva, habitando na criação, não como meio a ser explorado, mas como casa a ser guardada, confiando em Deus. Ele é Pai e – diz ainda Ben Sirá – «ouvirá a oração do oprimido» (35, 13). E quantas vezes, mesmo na Igreja, as vozes dos pobres não são escutadas, acabando talvez vilipendiadas ou silenciadas porque incomodam. Rezemos pedindo a graça de saber escutar o clamor dos pobres: é o clamor de esperança da Igreja. O clamor dos pobres é o clamor de esperança da Igreja. Assumindo nós o seu clamor, também a nossa oração – temos a certeza – atravessará as nuvens.
Veja os principais pontos do documento aprovado pelo Sínodo
Alerta sobre a destruição da Amazônia
“Todos os participantes expressaram uma grande consciência da dramática situação de destruição que afeta a Amazônia. Isso significa o desaparecimento do território e dos seus habitantes, especialmente os povos indígenas. A floresta amazônica é um ‘coração biológico’ para a terra cada vez mais ameaçada. Ele está em uma corrida desenfreada rumo à morte. Requer mudanças radicais com grande urgência, uma nova direção que permita salvá-la. Está cientificamente comprovado que o desaparecimento do bioma Amazônia terá um impacto catastrófico para todo o planeta!”
Ameaças à vida
“… apropriação e privatização de bens da natureza, como a mesma água; concessões madeireiras legais e a entrada de madeireiros ilegais; caça e pesca predatórias; megaprojetos não sustentáveis (hidrelétricas, concessões florestais, extração maciça de madeira, monoculturas, estradas, hidrovias, ferrovias e projetos de mineração e petróleo); a contaminação causada pela indústria extrativa e lixões das cidades e, acima de tudo, as mudanças climáticas.”
Demarcação de terras indígenas
“… a Igreja compromete-se a ser aliada dos povos amazônicos para denunciar os ataques à vida das comunidades indígenas, os projetos que afetam o meio ambiente, a falta de demarcação de seus territórios e o modelo de desenvolvimento econômico depredador e ecocida.”
Extrativismo predatório
“É urgente enfrentar a exploração ilimitada da ‘casa comum’ e de seus habitantes. Uma das principais causas de destruição na Amazônia é o extrativismo predatório que responde à lógica da ganância, típica do paradigma tecnocrático dominante. Diante da situação premente do planeta e da Amazônia, a ecologia integral não é só mais um caminho que a Igreja pode escolher para o futuro neste território, mas é a única maneira possível, porque não há outro caminho viável para salvar a região.”
Colonialismo
“Todos somos convidados a nos aproximarmos dos povos da Amazônia de igual para igual, respeitando sua história, suas culturas, seu estilo de ‘bem viver’. O colonialismo é a imposição de certas formas de vida de alguns povos sobre outros, tanto econômica quanto culturalmente ou religiosamente. Rejeitamos uma evangelização de estilo colonialista.”
Pobreza nos centros urbanos da Amazônia
“O crescimento acelerado das metrópoles amazônicas é acompanhado da geração de periferias urbanas. […] No entanto, as famílias frequentemente sofrem com pobreza, falta de moradia, falta de trabalho, aumento do consumo de drogas e álcool, discriminação e suicídio infantil. […] Atenção especial merece a realidade dos povos indígenas nos centros urbanos, pois são os mais expostos aos enormes problemas de delinquência juvenil, falta de trabalho, lutas injustiças étnicas e sociais.”
Migrações
“Na região amazônica, ocorrem três processos de migração simultâneos. Primeiro, os casos de mobilidade de grupos indígenas em territórios de circulação tradicional, separados por fronteiras nacionais e internacionais. Segundo, o deslocamento forçado dos povos indígenas, camponeses e ribeirinhos expulsos de seus territórios e cujo destino final costuma ser as zonas mais pobres e pior urbanizadas das cidades. Terceiro, as migrações forçadas inter-regionais e o fenômeno dos refugiados, que são forçados a deixar seus países (entre outros, Venezuela, Haiti, Cuba) devem atravessar a Amazônia como um corredor migratório.”
Fontes de Energia Renováveis
“É urgentemente necessário o desenvolvimento de políticas energéticas que reduzam drasticamente a emissão de dióxido de carbono (CO2) e outros gases relacionados às mudanças climáticas. As novas energias limpas ajudarão a promover a saúde. Todas as empresas devem estabelecer sistemas de monitoramento da cadeia de suprimentos para garantir que a produção que comprem, criem ou vendam seja produzida de maneira social e ambientalmente sustentável.”
Solidariedade internacional
“A Igreja faz parte de uma solidariedade internacional que deve favorecer e reconhecer o papel central do bioma amazônico para o equilíbrio do clima do planeta; incentiva a comunidade internacional a fornecer novos recursos econômicos para sua proteção e promoção de um modelo de desenvolvimento justo e solidário, com o protagonismo e a participação direta de comunidades locais e povos nativos em todas as fases, desde a abordagem à implementação, fortalecendo também as ferramentas já desenvolvidas pela convenção sobre as mudanças climáticas.”
Pecado ecológico
“Propomos definir o pecado ecológico como uma ação ou omissão contra Deus, contra o próximo, a comunidade e o meio ambiente. É um pecado contra as gerações futuras e se manifesta em atos e hábitos de contaminação e destruição da harmonia do ambiente, transgressões contra os princípios da interdependência e a ruptura das redes de solidariedade entre criaturas e contra a virtude da justiça.”
Observatório da Igreja
“Criar um observatório socioambiental pastoral, fortalecendo a luta em defesa da vida. Realizar um diagnóstico do território e de seus conflitos socioambientais em cada Igreja local e regional, a fim de assumir uma posição, tomar decisões e defender os direitos dos mais vulneráveis.”
Representatividade Feminina
“No mundo indígena e ocidental, a mulher é quem trabalha em múltiplas facetas, na instrução das crianças, na transmissão da fé e do Evangelho, são presença testemunhal e responsável na promoção humana, por isso se pede que a voz das mulheres seja ouvida, que sejam consultadas e participem da tomada de decisões e, desse modo, possam contribuir com sua sensibilidade à sinodalidade eclesial.”
Rito amazônico
“O novo organismo da Igreja na Amazônia deve constituir uma comissão competente para estudar e dialogar, segundo usos e costumes dos povos ancestrais, a elaboração de um rito amazônico, que expressa os aspectos litúrgicos, teológicos, disciplinares e espirituais amazônicos…”
Entre os temas mais polêmicos, o Sínodo também propôs a ordenação de homens casados, em alguns casos, para suprir a falta de padres na Amazônia.