
Em carta aberta ao ministro do Exterior de Israel, Gideon Sa’ar, após pronunciamento do israelense no Conselho de Segurança da ONU, Jeffrey Sachs, que se coloca como judeu, nega que o regime fascista de Israel, com o genocídio perpetrado contra o povo palestino, o represente dos judeus do mundo inteiro .Segue a íntegra da carta aberta:
JEFFREY SACHS*
Prezado Senhor Ministro,
Escrevo-lhe após o seu discurso no Conselho de Segurança da ONU em 5 de agosto. Estive presente na sessão, mas não tive a oportunidade de conversar com o senhor após o evento. Gostaria de compartilhar as minhas reflexões sobre sua fala.
Em seu discurso, o senhor não reconheceu por que quase o mundo inteiro, incluindo muitos judeus como eu, está horrorizado com o comportamento do seu governo. Na visão da maioria do mundo, com a qual concordo, Israel está envolvido em assassinatos em massa e fome deliberada; isso não ficou claro em sua fala.
O senhor não mencionou que Israel causou a morte de cerca de 18.500 crianças palestinas até agora, cujos nomes foram recentemente listados pelo The Washington Post. O senhor culpou todo o massacre de civis pelas forças israelenses ao Hamas, mesmo enquanto o mundo assiste diariamente a vídeos de soldados israelenses matando civis famintos a sangue frio quando se aproximam de pontos de distribuição de alimentos. O senhor lamentou a fome de 20 reféns, mas não mencionou a fome imposta por Israel a 2 milhões de palestinos. O senhor também não citou que seu próprio primeiro-ministro trabalhou ativamente ao longo dos anos para financiar o Hamas, como documentou o The Times of Israel.
Se essas omissões são resultado de obtusidade ou de dissimulação, elas seriam uma tragédia apenas para Israel, não fosse o fato de que o senhor tentou envolver a mim e a milhões de outros judeus nos crimes do seu governo contra a humanidade. O senhor declarou na sessão da ONU que Israel é “o Estado soberano do povo judeu”. Isso é falso. Israel é o Estado soberano de seus cidadãos. Eu sou judeu e cidadão dos Estados Unidos. Israel não é meu Estado e nunca será.
Sua linguagem sobre os judeus em seu discurso revelou o abismo entre nós. O senhor se referiu ao judaísmo como uma nacionalidade. Essa é, de fato, a construção sionista, mas vai contra 2.000 anos de crença e vida judaicas. É uma ideia que eu e milhões de outros judeus rejeitamos. Para mim e para incontáveis outros fora de Israel, o judaísmo é uma vida de ética, cultura, tradição, lei e crença que nada tem a ver com nacionalidade. Por 2.000 anos, os judeus viveram em todas as partes do mundo, em inúmeras nações.
Os grandes sábios rabínicos do Talmude Babilônico, na verdade, proibiram explicitamente um retorno em massa do povo judeu a Jerusalém, orientando os judeus a viverem em suas próprias pátrias (Ketubot 111a). Infelizmente, os sionistas empreenderam campanhas massivas, incluindo subsídios financeiros e táticas de intimidação, para induzir comunidades judaicas a deixarem suas terras natais, línguas, culturas locais e relações com seus vizinhos não judeus, atraindo-os para Israel. Já viajei por todo o mundo visitando sinagogas quase vazias e comunidades judaicas abandonadas, onde apenas alguns idosos permanecem e insistem que suas comunidades viviam em paz e harmonia com as maiorias não-judias. O sionismo enfraqueceu ou pôs fim a inúmeras comunidades vibrantes de nossos correligionários ao redor do mundo.
É um fato irônico que, quando os sionistas convenceram o governo britânico a emitir a Declaração Balfour em 1917, o único judeu no gabinete, Sir Edwin Montagu, objetou veementemente, afirmando que era um cidadão britânico que por acaso era judeu, e não membro de uma nação judaica: “Afirmo que não existe uma nação judaica. Os membros da minha família, por exemplo, que estão neste país há gerações, não têm nenhum tipo de comunidade de visão ou desejo com qualquer família judaica em outro país, além do fato de professarem, em maior ou menor grau, a mesma religião.”
Nesse contexto, também vale lembrar que a Declaração Balfour afirma claramente e sem ambiguidades que “nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não-judaicas existentes na Palestina.” O sionismo falhou nesse teste.
Seu governo está comprometido com a ocupação permanente de toda a Palestina e se opõe de forma violenta e implacável a um Estado soberano da Palestina. A plataforma fundadora do Likud em 1977 não esconde isso, declarando abertamente que “entre o Mar [Mediterrâneo] e o Jordão, haverá apenas soberania israelense”. Para alcançar esse objetivo, Israel demoniza o povo palestino e o esmaga fisicamente, por meio de fome em massa, assassinatos, limpeza étnica, detenções administrativas, tortura, confiscos de terras e outras formas de repressão brutal. O senhor mesmo declarou, de forma vergonhosa, que “todas as facções palestinas” apoiam o terrorismo.
Seu homólogo na sessão do Conselho de Segurança da ONU, o embaixador palestino Riyad Mansour, afirmou exatamente o oposto. Ele declarou claramente: “A solução é acabar com esta ocupação ilegal e com este conflito desastroso; é a realização da independência e soberania do Estado palestino, não a sua destruição; é a realização de nossos direitos, não a sua negação contínua; é o respeito ao direito internacional, não o seu pisoteio; é a implementação da Solução de Dois Estados, não a realidade de um único Estado com os palestinos condenados ao genocídio, limpeza étnica ou apartheid”.
Israel se opõe a quase todo o mundo em seu esforço para bloquear a Solução de Dois Estados. Já são 147 países que reconhecem o Estado da Palestina, e muitos outros em breve o farão. Cento e setenta Estados-membros da ONU votaram recentemente a favor do direito do povo palestino à autodeterminação política, com apenas seis votos contra (Argentina, Israel, Micronésia, Nauru, Paraguai e Estados Unidos).
Sua apresentação ignorou completamente a poderosa “Declaração de Nova York sobre a Solução Pacífica da Questão Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados”, emitida pela comunidade internacional na Conferência Internacional de Alto Nível sobre a Implementação da Solução de Dois Estados, realizada em 29 de julho de 2025, apenas uma semana antes do seu discurso no Conselho de Segurança da ONU. Arábia Saudita e França co-presidiram essa conferência de alto nível. Nações árabes e islâmicas em todo o mundo pediram paz e normalização das relações com Israel quando este cumprir o direito internacional e agir com decência, em linha com a Solução de Dois Estados. Seu governo rejeita a paz porque busca a dominação de toda a Palestina.
Israel mantém a sua posição extremista por um fio tênue, apoiado (até agora) pelos Estados Unidos, mas por nenhuma outra grande potência. Também devemos reconhecer uma das principais razões para o apoio estadunidense até agora: os protestantes evangélicos cristãos, que acreditam que o ajuntamento dos judeus em Israel é o prelúdio para a condenação ou conversão dos judeus e o fim do mundo. Esses são os aliados de seu governo. Quanto à opinião pública estadunidense em geral, a desaprovação das ações de Israel agora chega a 60%, com apenas 32% de aprovação.
Senhor Ministro, a repulsa global que o senhor citou é contra as ações do seu governo, não contra os judeus. Israel está ameaçado internamente pelo fanatismo e extremismo que, por sua vez, atraem a reprovação mundial por parte de judeus e não-judeus. A maior ameaça à sobrevivência de Israel não são as Nações árabes, os palestinos ou o Irã, mas as políticas do governo extremista de Israel, liderado por Benjamin Netanyahu, Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir.
A Solução de Dois Estados é o caminho —e o único caminho— para a sobrevivência de Israel. O senhor pode acreditar que armas nucleares e o governo dos EUA são a sua salvação, mas o poder bruto será efêmero se a grave injustiça de Israel contra o povo palestino continuar. Os Profetas Judeus ensinaram repetidamente que Estados injustos não sobrevivem por muito tempo.
Atenciosamente,
Jeffrey D. Sachs
Nova York
*Jeffrey Sachs é um economista americano, conhecido por seus trabalhos sobre desenvolvimento sustentável e economia. Ele é professor de Economia e diretor do Centro para Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia e professor na mesma instituição. Além disso, é diretor dRede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentárvel da ONU
**Este artigo foi publicado originalmente pelo portal Scheerpost sob o título “Jeffrey Sachs: Open Letter to Israel Foreign Minister Sa’ar”