Não foi feita nem mesmo a comparação da voz do porteiro, que teria falado com Ronnie Lessa, com a voz do porteiro que diz ter falado na casa de Bolsonaro
A informação de que a perícia referida pela promotora Simone Sibílio, em entrevista coletiva na quarta-feira (29), sobre a entrada de Élcio Queiroz – um dos assassinos de Marielle Franco – no condomínio Vivendas da Barra, no dia do crime (14/03/2018), não analisou o equipamento onde são registrados os contatos e foi feita duas horas (ou menos) antes da entrevista, geraram dúvidas sobre a veracidade das afirmações feitas por ela durante a apresentação.
A perícia foi requisitada às 13h05m11s da mesma quarta-feira em que ocorreu a coletiva, ou seja, ela foi requisitada 2h25m antes da entrevista – e solicitada às pressas, 14 ou 15 horas após o Jornal Nacional, da Rede Globo, ter revelado o depoimento do porteiro do condomínio.
Aliás, essa foi única razão pela qual essa perícia foi realizada: o aparecimento do depoimento do porteiro na televisão.
O Jornal Nacional, da TV Globo, revelou, em sua edição de terça-feira (29), que teve acesso a esse depoimento do porteiro do condomínio e, também, ao livro de ocorrências da portaria, onde está registrada uma ligação do porteiro para a casa 58, que pertence a Bolsonaro, para que alguém autorizasse a entrada de Élcio Queiroz.
Em dois depoimentos, feitos nos dias 7 e 9 de outubro, o porteiro afirma que ligou para a casa 58 (de Bolsonaro) e que uma pessoa que, segundo ele, seria o “Seu Jair”, autorizou a entrada de Élcio.
Em seguida, segundo ainda o mesmo porteiro, como o carro se dirigiu à casa 65, de Ronnie Lessa, ele interfonou novamente para a casa 58 e a mesma pessoa disse que sabia para onde o Élcio estava indo.
No dia 9 de outubro, segundo afirma Jair Bolsonaro, ele foi informado pelo governador Wilson Witzel, que o inquérito havia sido encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF) porque havia sido citado o nome do presidente pelo porteiro do condomínio. Estranhamente, o presidente não tomou nenhuma medida sobre o caso.
Quando vieram à tona as declarações do porteiro de que tinha interfonado para a sua casa para autorizar a entrada de Élcio no condomínio no dia do assassinato de Marielle Franco, Bolsonaro esbravejou contra a Rede Globo e acusou o governador do Rio de estar manipulando o inquérito.
Na entrevista coletiva, a promotora Simone Sibílio afirmou que o porteiro mentiu ao dizer, em depoimento, que um dos acusados do homicídio, Élcio Queiroz, havia pedido para ir na casa 58, que pertence ao presidente Jair Bolsonaro.
No entanto, reportagem da Folha de S. Paulo revela que a perícia feita pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, nas gravações da portaria do condomínio, não avaliou a possibilidade de algum arquivo ter sido apagado ou renomeado antes de ser entregue às autoridades.
Não há, portanto, base consistente para que a promotora afirme categoricamente que o porteiro estaria mentindo. Para isso, seria necessária uma perícia no sistema de comunicação do condomínio, o que não foi feito.
Não foi feita nem mesmo a comparação da voz do porteiro, que teria falado com Ronnie Lessa, com a voz do porteiro que diz ter falado na casa de Bolsonaro. Isso seria possível porque os depoimentos do porteiro foram gravados. Tecnicamente a voz teria que ser a mesma, afinal, aparentemente o horário da visita de Élcio Queiroz foi único.
Os questionamentos das promotoras aos peritos não incluíram perguntas sobre a possibilidade de algum arquivo ter sido apagado ou renomeado.
E, mesmo que elas fizessem essas indagações, a informação não poderia ser dada porque os técnicos não tiveram acesso ao computador de onde os dados foram retirados. Até agora é inexplicável que os investigadores não tenham solicitado o acesso ao computador do condomínio.
E não parece difícil, porque Carlos Bolsonaro gravou vídeo na frente do computador da portaria. Ele mesmo disse que não teve dificuldades para acessá-lo.
Sem o acesso ao computador em que os arquivos estavam gravados, não é possível avaliar se arquivos foram apagados ou renomeados no período –o nome do arquivo é que indica a casa para qual a portaria interfonou. Sem estudar os dados do computador de origem das mensagens, não há como se concluir que não houve alterações.
A mídia com a gravação da mensagem foi retirada do sistema e entregue espontaneamente à Polícia Civil no dia 7 de outubro pelo síndico do condomínio. Nela constavam arquivos referentes aos meses de janeiro, fevereiro e março de 2018.
A entrega ocorreu dois dias depois de policiais terem feito busca e apreensão na portaria do Vivendas da Barra em busca da planilha de controle de entrada de visitantes. Na planilha estava registrado o contato feito pelo porteiro com a casa 58, de Bolsonaro.
Neste mesmo dia, o porteiro foi ouvido e confirmou que tinha falado com alguém na casa de Bolsonaro. Dois dias depois, ele foi ouvido novamente e repetiu a mesma declaração.
No início das investigações, como na planilha de registro de entradas e saídas do condomínio não estava registrada nenhuma comunicação com a casa 65/66, de Ronnie Lessa, o MP não pediu a sua apreensão.
No entanto, após a prisão de Lessa, em março, foi possível acessar dados de seu celular. Nele os investigadores notaram que a mulher de Lessa enviou para o marido, em janeiro, uma foto da planilha de entrada do condomínio que indicava acesso de Queiroz à casa 58.
O envio da foto se deu com o início da Operação “Os Intocáveis” contra milicianos de Rio das Pedras. Junto com a foto da planilha havia uma mensagem da mulher de Lessa que dizia: “Liga para o Élcio”. Nesse momento os dois assassinos ainda estavam livres.
O presidente da Associação Brasileira de Criminalística, Leandro Cerqueira, afirmou à Folha de S. Paulo, que, sem acesso à máquina em que os arquivos foram gravados, não é possível identificar se um arquivo foi apagado ou renomeado.
“A edição pura e simples, se cortou alguma coisa, dá pra fazer [apenas com a cópia]. O arquivo pode não estar editado, mas pode ter sido trocado. Tem ‘n’ coisas que aí não é a perícia no áudio, é a perícia da informática. Para ver se não foi alterada a data ou qualquer outra coisa nesse sentido, tem que ter acesso ao equipamento original. A perícia vai lá, faz um espelho, e pericia o espelho, para garantir a idoneidade da prova”, afirmou.
Uma das promotoras responsáveis pelo caso Marielle e que participou da entrevista coletiva, Carmen Eliza Bastos de Carvalho, está sendo questionada pelo próprio Ministério Público. A cúpula do MP do Rio de Janeiro se reuniu na noite de quinta-feira (31) para discutir seu possível afastamento das investigações sobre a morte de Marielle Franco e Anderson Gomes. Carmen Eliza foi cabo eleitoral de Jair Bolsonaro.
A conclusão que se chega com esses dados é que as informações das procuradoras deixam lacunas inexplicáveis sobre o que ocorreu. Outra conclusão é de que é precipitada a afirmação de que o porteiro mentiu em seu depoimento.
São necessárias mais investigações para o esclarecimento deste episódio. Afinal, há muitas relações entre a família Bolsonaro e integrantes das milícias do Rio envolvidas no assassinato de Marielle.
O filho de Bolsonaro, Jair Renan, por exemplo, namorou a filha do pistoleiro Ronnie Lessa.
Adriano Nóbrega, atualmente foragido, chefe de Ronne Lessa no Escritório do Crime, espécie de central de assassinatos da milicia, foi homenageado duas vezes por Flávio Bolsonaro, inclusive com a Medalha Tiradentes, e tinha mulher e mãe empregadas em seu gabinete.
E, por fim, Bolsonaro tem foto abraçado com Élcio Queiroz. Por tudo isso, não teria motivos aparentes para o porteiro achar estranha a visita dele à casa do presidente.
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