
A elevação dos gastos militares dos países integrantes da Otan para 5% do PIB, aprovada sob ordens de Trump na recém realizada cúpula da agressiva aliança, vem sendo questionada no mundo inteiro, não apenas pela Rússia e China, indisfarçáveis alvos dessa reiteração da carreira armamentista, mas no Sul Global e até mesmo em países europeus e nos próprios EUA.
O que significa mais que dobrar a atual meta de 2% do PIB em gastos militares e, em grande parte dos casos, triplicar. Uma meta ainda mais esdrúxula na medida em que os gastos da Otan – sem esse aumento – já são 55% dos gastos militares totais do planeta.
Decisão que a mais respeitada liderança pacifista norte-americana, Medea Benjamin, fundadora da Code Pink, chamou de “obscena”. Como ela destacou, a meta de 5% é tão fora de escala que até mesmo os Estados Unidos “que já gastam mais de 1 trilhão de dólares por ano nas suas forças armadas — não alcançam”.
“Isto não é defesa; é extorsão em escala global, promovida por um presidente que vê a diplomacia como uma extorsão e a guerra como um bom negócio”, ela denunciou.
“Atualmente, nenhum país da Otan gasta mais com as forças armadas do que com saúde ou educação. Mas se todos atingirem a nova meta de 5% de gastos militares, 21 deles [dois terços] gastariam mais em armas do que em escolas”.
Ela observou que a expansão da Otan “não trouxe paz” e, pelo contrário, foi um dos gatilhos da guerra na Ucrânia. E que em Gaza, Israel “continua a sua guerra apoiada pelos EUA com impunidade, enquanto as nações da Otan enviam mais armas”. “Agora, a aliança quer drenar os cofres públicos para sustentar essas guerras indefinidamente” e a Otan cerca seus adversários com “mais bases e tropas”.
“Enquanto o mundo queima — literalmente — a OTAN está estocando lenha. Quando sistemas de saúde estão desmoronando, escolas subfinanciadas e temperaturas escaldantes fazendo grandes extensões do planeta inabitável, a ideia de que os governos deveriam comprometer bilhões a mais em armas e guerras é obscena”.
“Precisamos inverter o roteiro. Isso significa cortar orçamentos militares, abandonar guerras intermináveis e iniciar uma conversa séria sobre o desmantelamento da OTAN”.
CHINA DESANCA “OTAN NA ÁSIA-PACÍFICO”
Sobre essa escalada, e por ter sido citada entre as supostas justificativas pelo secretário-geral Rutte, a China se manifestou apontando que “alguns na Otan, ao exagerar as tensões internacionais e regionais e difamar o crescimento militar normal da China, buscam apenas desculpas para permitir um aumento drástico nos gastos militares da aliança, ultrapassando arbitrariamente seu escopo geográfico e avançando para o leste, rumo à região Ásia-Pacífico”.
“Pedimos à OTAN que examine seu próprio comportamento, ouça a justa voz do mundo e abandone sua mentalidade ultrapassada da Guerra Fria, a confrontação entre blocos e a abordagem de soma zero”, instou.
“A China continuará a defender a soberania, segurança e interesses de desenvolvimento e continuará a fazer sua parte para tornar o mundo um lugar mais pacífico e estável”, concluiu.
Questão também abordada pelo Global Times, que denunciou os “comentários irresponsáveis sobre a questão de Taiwan e até mesmo difamando a China usando a questão da Ucrânia. Isso não apenas cava um poço para os países europeus, mas também causa problemas e caos para o mundo”.
“Sob o princípio orientador de ‘América Primeiro’, Washington repetidamente exerce uma postura de ‘sem dinheiro, sem proteção’, reduzindo a Otan a uma moeda de troca nos negócios geopolíticos dos EUA. Alocar 5% do PIB para gastos militares é um fardo pesado para os países europeus, mas ainda está muito aquém de satisfazer o apetite geopolítico de Washington e só fará com que os EUA peçam mais da Europa.”
RÚSSIA DENUNCIA FRENESI MILITARISTA DO OCIDENTE
No encerramento do Fórum de São Petersburgo, também o presidente russo Vladimir Putin se pronunciou sobre a escalada, em resposta a um jornalista.
“Tanto o aumento dos gastos militares quanto o frenesi militarista que você acabou de mencionar se baseiam em uma tese: a agressividade da Rússia. Mas tudo é exatamente o oposto. E como tudo começou? Com o fato de termos sido enganados, grosseiramente enganados, sobre a não expansão da Otan para o leste. Afinal, o mundo inteiro sabe o que foi prometido à Rússia: a Otan não se moverá um centímetro para o leste. E então, uma onda de expansão após a outra”.
“E quando respondemos que acreditávamos que isso era uma ameaça para nós, o que nos responderam? Absolutamente nada. Simplesmente nos mandaram embora com a nossa opinião, e absolutamente ninguém a levou em consideração ou quis levá-la em consideração”.
“Temos um bom ditado: eles percebem o cisco no olho do outro, mas não querem ver a trave no seu próprio. E o que está acontecendo? Diante dessa retórica sobre a suposta agressividade imaginária da Rússia, eles começam a falar da necessidade de se armarem.”
“Aliás, a mesma coisa aconteceu na Ucrânia. O golpe de Estado, apoiado coletivamente pelo Ocidente. Primeiro, eles vieram, assinaram garantias entre o presidente e a oposição; alguns dias depois, deram um golpe de Estado, apoiaram-no, pagaram por ele e o admitiram publicamente.”
“Então, todos sabemos o que aconteceu em Donbass durante oito anos. Oito anos de guerra sangrenta contra, essencialmente, a população civil. E passamos oito anos tentando chegar a um acordo para resolver essa questão pacificamente.”
“Fomos enganados: tanto a ex-chanceler alemã quanto o ex-presidente francês declararam publicamente que não tinham intenção de cumprir os acordos de Minsk e assinaram tudo isso apenas para entupir de armas o regime ucraniano. E travaram essa guerra não declarada por oito anos. E nós, para pôr fim a essa guerra, fomos forçados a usar as Forças Armadas, reconhecendo a independência de ambas as repúblicas em estrita conformidade com a Carta da ONU”.
Putin registrou que os porta-vozes do Ocidente Coletivo vivem dizendo que em breve conseguirão “uma derrota estratégica da Rússia”. “E, ao mesmo tempo, estão transmitindo que vamos atacar os países da OTAN. Onde está a lógica? Se tudo está desmoronando, por que vamos atacar a OTAN?” Eles – acrescentou – estão falando bobagens, “tentando convencer a população disso para arrancar mais dinheiro das pessoas, para que concordem em arcar com os cortes na esfera social”.
Ele observou que a Rússia gasta na “manutenção do nosso complexo militar-industrial, em nós mesmos, em nossos entes queridos e parentes”. “E em que eles gastarão os 5%? Em compras dos EUA e no apoio ao seu complexo militar-industrial. Esta não é uma questão nossa, é deles. Se eles querem fazer, que façam”.
“Mas agora o mais importante. Estamos planejando reduzir os gastos com defesa, e estamos planejando para o próximo ano, para o ano seguinte e para os próximos três anos. E a Europa está pensando em como aumentar seus gastos com defesa. Então, quem está se preparando para ações agressivas, nós ou eles? Portanto, todo o seu raciocínio sobre o que vão elevar — que o façam. Mas isso não melhorará a situação deles na esfera da segurança, e inevitavelmente a piorará nas esferas econômica e social”.
“PAPI” TRUMP
A aprovação da meta de Trump na cúpula da semana passada em Haia foi um show de sabugice, com direito ao recém trocado secretário-geral, o ex-primeiro-ministro holandês Mark Rutte, enviar uma “doce cartinha” ao “querido Donald”, como ironizou o jornalista José Goulão, do portal português abrilabril. Rutte até viu nele um “Papai”, enquanto não deixou de assacar sobre a “ameaça russa” e o “perigo amarelo”.
“Rutte explica a arte de prestar vassalagem com alegria, emoção e gratidão. Ensina-nos a rastejar com estilo e elegância. Isto é, demonstra que pode fazer-se o que sempre se fez na sua posição, quando se dirige ao bom padrinho das Américas, com sensibilidade e até com ternura, sem temores, nem dores de barriga. Ir de joelhos a Washington é duro, mas não há recompensa e glória sem sangue e sacrifício”.
Como é do seu feitio, Trump recorreu às redes sociais para divulgar tão oportuno pleito de vassalagem, tornando pública todo esse empenho. “Senhor Presidente, querido Donald”, começa a missiva. “Felicitações e agradecimentos pela tua ação decisiva no Irã, algo verdadeiramente extraordinário e algo que ninguém podia, jamais, atrever-se a fazer”. E mais escreveu: “Donald conduziu-nos a todos a um momento muito, muito importante para América, a Europa e o mundo”.
Acrescenta Goulão: “A gratidão do secretário-geral não tem fim, e ele faz questão de manifestá-la com promessas assumidas em nome de todos nós. ‘A Europa irá pagar-te em GRANDE, como deve, essa será a tua vitória’”.
Em resumo, é hora de aliviar a “carga norte-americana”. “Os países da Otan pagarão cerca de três vezes mais caro pelas tropas, os mísseis, as bombas e o (decadente) know-how militar dos Estados Unidos. Ser uma colônia está a tornar-se uma comodidade cada vez mais dispendiosa.”
Além, claro, de pagar sua parte no tarifaço.
Margarita Robres, ministra da Defesa da Espanha, o único país que obteve uma exceção à regra dos 5%, assinalou em discurso ao parlamento espanhol que essa meta é “absolutamente impossível” porque os fabricantes de armas europeus não seriam capazes de absorver tal aumento.
“Todos estão absolutamente convencidos de que, neste momento, não há indústria [europeia] capaz de absorver 5%”, disse ela à Comissão de Defesa do Senado do país. “Podemos dizer o que quisermos, podemos disfarçar, mas nenhuma indústria pode assumir.”
O que é verdade, mas não é problema, pelo menos do ponto de vista de Washington – que quer mesmo é usar os 5% para manter sua ânsia de domínio hegemonista ao encher as burras do complexo industrial-militar norte-americano e melhorar o saldo comercial.