
Em uma eleição marcada crise econômica e pela “autodestruição do MAS” – o Movimento ao Socialismo, que por 20 anos encabeçou a transformação da Bolívia em uma pátria plurinacional, incorporando os indígenas à cidadania, nacionalizou o gás e o petróleo, triplicou o PIB e reduziu a pobreza -, o país irá a segundo turno com o filho do ex-presidente Jaime Zamora Paz, o senador Rodrigo Paz, que teve 32,18% dos votos disputando com o ex-vice do ex-ditador Hugo Banzer e ex-presidente, Jorge “Tuto” Quiroga, com 26,94%, de acordo com a preliminar do Tribunal Supremo Eleitoral.
Os eleitores também elegeram 26 senadores e 130 deputados. Quase oito milhões de eleitores compareceram às urnas (83%). “Venceu a democracia”, se pronunciou o presidente de saída, Luis Arce. O segundo turno ocorrerá no dia 19 de outubro.
A mídia boliviana descreve Paz como “centrista” e “conciliador”, enquanto o veterano Quiroga é visto como “direita tradicional” e o “anti-MAS”.
Nenhuma pesquisa antecipou a passagem para o segundo turno de Paz, que cresceu no exílio por causa da perseguição que seu pai, então fundador do MIR – Movimento de Esquerda Revolucionária, sofreu durante a ditadura militar. Ele concorreu sob a legenda do Partido Democrata Cristão.
“TERAPIA DE CHOQUE DE 100 DIAS” NÃO PASSA
O resultado deixa de fora o candidato que vinha sendo apresentado pelas pesquisas como o primeiro lugar. O homem mais rico da Bolívia, Samuel Doria Medina, que recebera apoio do golpista de Santa Cruz, atualmente preso, Luis Camacho, e que em 2020 chegara a se apresentar como vice de uma chapa que não vingou com a ‘presidente’ do golpe, Jeanine Añez, com 20% dos votos.
Sua “proposta” era uma terapia de choque de 100 dias sob o FMI. Medina também se dizia favorável a entregar o lítio a Elon Musk. Segundo a mídia, ele já teria oferecido apoio a Paz no segundo turno. Outros candidatos de direita tiveram votações menos expressivas, como Manfred Reyes, Max Jhonny Fernández e Pavel Antonio Aracena.
Dos candidatos egressos do MAS, Andrónico Rodriguez tem 8,1% e o ex-ministro do presidente Arce, Eduardo del Castillo, 3,1%. Abalroado pelo agravamento da crise na Bolívia e com enorme rejeição nas pesquisas, o presidente Arce havia desistido de concorrer à reeleição.
VITÓRIA EM EL ALTO
Para o Página 12, “Paz conquistou uma parcela considerável do eleitorado que historicamente votou no MAS”. Ele chegou a dizer em uma entrevista que “o novo projeto do MAS se chama Andrónico Rodríguez”, em um aceno a esse eleitorado. Paz venceu em El Alto, uma cidade populosa e operária muito próxima da capital e também em La Paz.
A derrota estrondosa dos candidatos com vínculos com o MAS não é propriamente uma surpresa. Como descreveu O Globo, “crise econômica afunda Bolívia e agrava filas por pão, gasolina e dólares. Sem moeda forte e com escassez de produtos básicos, a crise econômica afunda Bolívia e coloca a população em situação crítica no dia a dia”.
Assim, a Bolívia está às voltas com o retorno ao neoliberalismo, agravado em maior ou menor grau, com chamados insistentes aos corte de gastos sociais e à reaproximação à órbita de Washington. No ano passado, a Bolívia foi acolhida como parceira dos BRICS.
EVO EM SEU LABIRINTO
O ex-presidente Evo Morales não pôde concorrer porque a Constituição só permite dois mandatos, contínuos ou não, cláusula que ele tentou reverter – e perdeu – no referendo de 2016.
Ele denunciou que a atual eleição é “fraudada” e chamou ao voto nulo, que alcançou 19%. Conclamação a que Rodríguez respondera apontando que “o voto nulo ou em branco não é neutro; é um favor à velha direita, que privatizou nossos recursos, excluiu a maioria e abandonou a Bolívia”.
Em 2019, Morales concorreu à reeleição após autorizado pela Corte Constitucional, venceu, mas foi derrubado com um golpe desencadeado a partir do questionamento – em falso – do resultado pela OEA. Retrocesso só barrado um ano depois pelos massivos protestos da população boliviana, que levou a nova eleição, vencida por Arce com o apoio de Morales.
O golpe teve um papel chave em desorganizar a economia, o que só se agravou sob a pandemia, e atrasou medidas que eram essenciais diante do processo já em curso de esgotamento das reservas de gás, cujas receitas – principal fonte de obtenção de dólares – caíram de US$ 6,6 bilhões em 2014 para US$ 2 bilhões dez anos depois, e para impulsionar a industrialização do país e gerar novo ciclo de crescimento, inclusive quanto ao lítio.
FILAS, CARESTIA E VOLTA DA POBREZA
Assim, o resultado do primeiro turno reflete o descontentamento popular com a crise econômica e política em curso, com o quase colapso das reservas de divisas em paralelo ao esgotamento das reservas de gás, o que gerou uma corrida aos dólares no mercado paralelo; alta no preço dos alimentos, especialmente o pão – entre janeiro e julho a inflação dobrou até 25%, a mais alta desde 2008; filas para reabastecimento de combustível; e volta da pobreza ao patamar de quase 40%, em profundo contraste com quase duas décadas de prosperidade econômica, distribuição de renda, inclusão da maioria indígena e crescimento do PIB a 5% ao ano.
Em paralelo, o racha no MAS acabou por bloquear na Assembleia Plurinacional qualquer iniciativa voltada a evitar o colapso econômico, bastando juntar os votos da direita com os parlamentares a favor de Morales, enquanto bloqueios de estradas e outras manifestações para exigir sua candidatura agravavam os problemas.
“FRATRICÍDIO MISERÁVEL”
O ex-vice-presidente Álvaro Garcia Linera, que vinha se mantendo em silêncio diante da crise no MAS, em artigo publicado no jornal mexicano La Jornada na véspera da eleição, descreveu o que aconteceu na Bolívia como “uma guerra política interna.”
“De um lado, um economista medíocre que por acaso é presidente e acreditava que poderia desbancar o carismático líder indígena (Evo) banindo-o do cargo. Do outro, o líder que, em seu crepúsculo, não pode mais ganhar eleições, mas sem cujo apoio ninguém pode vencer, vingando-se ajudando a destruir a economia sem entender que, nessa hecatombe, sua própria obra também está sendo demolida.”
“O resultado final desse fratricídio miserável é a derrota temporária de um projeto histórico e, como sempre, o sofrimento dos humildes, que nunca foram levados em conta pelos dois irmãos intoxicados por estratégias pessoais”, conclui Linera.
Ainda segundo o ex-vice, faltou à esquerda – e não só na Bolívia – um projeto que fosse além do redistributivismo graças ao boom das commodities, e avançasse para o estabelecimento de uma base produtiva, capaz de sustentar as conquistas sociais.
SEM DÓLARES
Já para Arce cabe a Morales a responsabilidade pelo desastre. “O problema da economia resume-se a: de onde tiramos os dólares?”. Em entrevista à RTP no ano passado, ele alertou que “a solução é resolver o problema da retenção de dólares no Banco Central, e esses são os empréstimos internacionais que temos exigido desde 2023”.
Arce denunciou que “a oposição de direita e os congressistas alinhados ao ex-presidente Evo Morales uniram-se para bloquear” empréstimos negociados com entidades multilaterais e a China, totalizando mais de US$ 1,8 bilhão, o que permitiria recompor as reservas e dar alívio à crise.
O país precisa, até dezembro, de US$ 2,6 bilhões para a importação de combustíveis e o pagamento da dívida externa. A pergunta é: a nova Assembleia também recusará ao presidente que tomará posse em novembro a recomposição de reservas que negou a Arce por meses?
O mesmo se repetiu quanto a deslanchar o aproveitamento do lítio, com a Assembleia emperrando a aprovação de projeto de lei do governo Arce para um contrato com a empresa chinesa CBC Investment Limited e com a empresa russa Uranium Ore Group, para iniciar a produção industrial de carbonato de lítio, com uma tecnologia conhecida como EDL (Extração Direta de Lítio).
Após uma sessão tensa na Assembleia em julho sobre as propostas do governo em relação aos convênios com as empresas estrangeiras, o ministro de Hidrocarbonetos e Energia da Bolívia, Alejandro Gallardo, denunciou que alguns parlamentares têm “interesses partidários, políticos e pessoais”. “Agora, a bola está com a Assembleia”, explicou o ministro. “Eles serão os responsáveis sobre a vinda ou não destes investimentos e amanhã o povo irá julgar.”
Segundo Arce, Morales atacou nos últimos anos “com toda a sua artilharia o governo nacional”, no momento em que sua administração “começava a decolar”. “Se estamos abrindo caminho para a direita entrar nas próximas eleições (…), é o povo boliviano que vai sofrer, e não Morales”, ele acrescentou.
“VAMOS DAR O GOLPE EM QUEM QUISERMOS”
Durante o golpe de 2019, ficou famosa a postagem de Elon Musk, o bilionário dono da fábrica de carros elétricos Tesla em que este dizia que “vamos dar golpe em quem quisermos”, em resposta a alguém que o acusou pelo golpe com o objetivo de controlar a extração do lítio no país, insumo primordial para a produção de baterias de alto rendimento para carros elétricos. O mesmo Musk que comemorou com uma motosserra a visita aos EUA de Milei, presidente da Argentina.
Em depoimento à Câmara dos Representantes em março de 2023, a chefe do Comando Sul do Pentágono, general Laura Richardson, disse que o triângulo do lítio é tratado como uma questão de “segurança nacional sobre o nosso quintal dos fundos”.
De acordo com estimativas do Serviço Geológico Nacional dos EUA, a região da Bolívia conhecida como Salar do Uyuni, com 23milhões de toneladas, forma um triângulo de grandes reservas com Argentina – que tem 17 milhões de toneladas – e Chile, com mais 9,3 milhões de toneladas.
Para analistas, é cedo para falar em ocaso do MAS ou de Evo Morales, já que o novo governo não terá facilidade em resolver a crise econômica. “Se for muito difícil solucionar a crise, haverá muito mal-estar, muito empobrecimento, muita perda de direitos. Enfim, Evo Morales pode canalizar isso, e já está se preparando para isso”, afirmou o escritor Fernando Molina.
BREVIÁRIO DA IMPLOSÃO DO MAS
Uma rápida consulta à extensa cobertura do El País sobre a crise política na Bolívia registra a dramaticidade dos acontecimentos nas fileiras do MAS, até a mais recente “Bolívia vira à direita” (18 de agosto).
“O Tribunal Constitucional da Bolívia confirma que Evo Morales não pode mais ser candidato à presidência” (9 de novembro de 2024). “O MAS boliviano, antes imbatível nas urnas, está sangrando até a morte devido às suas fraturas internas” (16 de novembro de 2024). “Evo Morales cria um novo partido e desafia o governo de Luis Arce” (2 de abril de 2025). Lança o grupo Evo Pueblo. O partido governista o critica por seu “culto à personalidade” e seu “personalismo antidemocrático“.
Evo Morales impulsiona sua candidatura eleitoral com uma grande marcha em La Paz (17 de maio de 2025). Cocaleros bloqueiam a Bolívia: “Sem Evo Morales, não haverá eleições” (4 de junho de 2025 ). “O governo boliviano denuncia Evo Morales por ‘tentativa de golpe de estado'” (6 de junho de 2025). “A escalada da violência pré-eleitoral na Bolívia piora com a morte de cinco pessoas” (12 de junho de 2025). “A classe política boliviana cerra fileiras contra os bloqueios de Evo Morales” (13 de junho de 2025). “O governo retoma o controle da maioria das estradas bloqueadas por movimentos indígenas que exigem autorização eleitoral do ex-presidente. (14 de junho de 2025). “Os bloqueios exigindo a aprovação eleitoral de Morales foram suspensos” (17 de junho de 2025).
Particularmente daninha foi a reedição da acusação contra Evo Morales, por ter tido um filho supostamente com uma menor de 15 anos, que a direita levantou em 2016 e retomou no ano passado. “Evo Morales se defende de acusações de estupro de menor: ‘É tudo mentira, não mexam com a família’” (20 de setembro de 2024). “Evo Morales se refugia em seu reduto de cultivo de coca em meio a um mandado de prisão por suposto abuso infantil”(12 de outubro de 2024). “Evo Morales pede aos seus seguidores que levantem os bloqueios aos quartéis e inicia uma greve de fome” (1 de novembro de 2024).
A crise econômica irrompe: “Escassez de combustível na Bolívia abastece protestos de caminhoneiros contra Arce” (14 de março de 2025). “Bolívia entra para o clube sul-americano de países com maior inflação (6 de maio de 2025). “A crise econômica é o principal árbitro das eleições na Bolívia” (11 de maio de 2025). “Arce renuncia à candidatura e pede unidade da esquerda boliviana” (14 de maio de 2025).