(HP 17-18/12/2014)
O “Cântico do Calvário”, com seus conhecidos versos iniciais (“Eras na vida a pomba predileta/ Que sobre um mar de angústias conduzia/ O ramo da esperança. Eras a estrela/ Que entre as névoas do inverno cintilava“), talvez seja a elegia mais famosa da literatura brasileira. Seu autor, Fagundes Varela, tinha pouco mais de vinte anos quando, em 1863, a escreveu, em homenagem ao filho que morrera.
O texto que publicamos hoje, do crítico e tradutor Emílio Carreira Guerra, é parte de seu trabalho sobre Fagundes Varela, escrito para a edição das “Poesias Completas”, publicadas na década de 50 do século XX por Miécio Tati, e analisa um aspecto particular – embora, provavelmente, decisivo – não apenas da obra quanto da vida de Varela e outros poetas românticos brasileiros: a influência de Byron.
Falecido em 1824, quando lutava pela independência da Grécia, então ocupada pela Turquia, o poeta inglês – especialmente por “A Peregrinação de Childe Harold” e “Don Juan”, mas não somente – manteve seu prestígio no Brasil ao longo do século XIX. Em 1875, quando Alencar publicou seu último romance, “Senhora” (depois desse ainda haveria “Encarnação”, mas a publicação foi póstuma), ainda é Byron que aparece repetidamente citado – na composição de Seixas, o personagem principal do romance, sua preferência pelo poeta inglês tem uma função chave.
É essa questão, literária e histórica, que Carreira Guerra aborda.
C.L.
E. CARREIRA GUERRA
A geração de Fagundes Varela se formou pelos modelos românticos e, particularmente, sob o signo de Byron. Childe Harold é o seu modelo e herói, não por acaso. A nossa cultura, de raízes europeias transplantadas, sempre padeceu das imitações dos figurinos de além-mar. Mas a simples imitação não poderia explicar um movimento nacional da importância do romantismo, ou sequer, um dos seus aspectos, o byronismo.
A estranha aclimatação do byronismo no Brasil é um fato, e, como tal, contém em si mesmo suas razões. É preciso discerni-las. Reduzam-se, primeiro, as suas proporções no tempo e no espaço. Duas gerações de estudantes paulistas foram atingidas. Apenas estudantes e da cidade de S. Paulo apenas. O germe trazido por Tibúrcio Craveiro, tradutor de Lara, na segunda década do século, propagado depois pelas traduções de Vieira Bueno e de José Pinheiro Guimarães, não medraria sem condições propícias. Dava-lhes o ambiente colonial da Paulicéia de então. Feia, modorrenta, desconfortável, triste e fria, era a S. Paulo daqueles tempos, na opinião unânime dos que a viram e descreveram. Casas velhas a pique de cair, a escorarem-se umas nas outras, ruas mal calçadas, esburacadas, em que se estropiavam os pés, raros lampiões mortiços dentro da noite, nenhuma paisagem, escassos vinte mil habitantes fechados em seus pardieiros ou empenhados nas fainas rudes de tropeiros e comerciantes. Cidade severa e beata, sem festas populares além das de igreja, sociedade inculta e ciosa de seus preconceitos. Não é preciso insistir. Basta ler as cartas deixadas pelo jovem Álvares de Azevedo, o maior dos nossos byronianos.
Os cursos jurídicos fundados em 1827 trouxeram para S. Paulo um novo núcleo de população: os estudantes. Haviam eles de modificar a fisionomia da cidade. Não poderiam aceitá-la sem reagir, seria morrer de tédio. A estudantada jovem, com os ímpetos próprios da idade, queria horizontes mais largos, para sua expansão. Childe Harold foi o lúgubre espantalho, que lhes serviu para afugentar o aborrecimento paulistano. O perfil do herói cínico, o procedimento desabusado e cruel do “peregrino audaz” não respondia apenas à provocação de todo aquele ambiente pesada e sobriamente prosaico. Correspondia, outrossim, à situação particular dos estudantes paulistanos, vindos de todos os cantos do país, longe de suas famílias, segregados ali como numa ilha, formando uma sociedade à parte, no aglomerado boêmio das “repúblicas”, que tendiam a degenerar em seitas à margem ou fora da lei, out-law como o seu herói. A essa inquietação, a tais circunstâncias veio casar-se o byronismo. Do conúbio nasceram as doidas extravagâncias da “Sociedade Epicureia”, as festas macabras, as libações exóticas, o culto do lupanar e do cemitério, e o desgaste precoce da vida. A par disso, foi dos estudantes a vida cultural da cidade, a metade ou mais da metade de sua imprensa, o comando dos espetáculos circenses ou teatrais, as iniciativas editoriais, a alegria e a irreverência nos saraus familiares ou nas festas religiosas, o costume das serenatas, a agitação das ideias e toda a produção literária, sobretudo a poética. Foram “sinceros até a loucura”1.
A criatura literária confundia-se com o seu criador. A vida imitava a arte. Byron era tomado por Childe, Lara, Manfredo, D. Juan, ao pé da letra. E, em certa medida, era isso verdade. O poeta-lorde fez de suas contradições insolúveis, levadas à extrema intensidade, um tipo universal de sua época, que modelou tanto o seu próprio criador, quanto um Púchkin e um Lérmontov na Rússia ou um Álvares de Azevedo e um Varela, no Brasil.
A “justaposição de características românticas e clássicas, em sua vida e sua arte, constitui a principal e mais conhecida das contradições byronianas, conforme assinala E. Bostetter, num brilhante ensaio2. E, ao lado desta, muitos outros “paradoxos” alinha o crítico, desde os pessoais aos psicológicos e destes aos históricos.
É extraordinariamente belo e, ao mesmo tempo, coxo, aleijado. É puritano e imoralista. De formação calvinista, simpatizante do catolicismo, é “livre-pensador”, materialista e cético, em filosofia. Byron é aristocrata e partidário ardente da Revolução Francesa. Capaz de entusiasmos efusivos, de amizade calorosa e impulsos generosos, é também misantropo, cínico, vingativo, cruel até a selvageria.
Até a manhã em que, segundo seu próprio dizer, acordou célebre com a publicação do Childe Harold, é provável – considera Bostetter – que a conduta de Byron pouco diferisse da de seus pares.
“A diferença residia – continua o crítico – no seu faro de autodramatização, na mórbida sensibilidade de sua consciência, na ‘hipocrisia ao revés’, que o levavam a difundir, a gabar-se ou mesmo a inventar malfeitos, que seus contemporâneos mais hipócritas e insensíveis perpetravam sem pensar”3.
Historicamente, Byron era “o completo gentleman e homem de letras da Regency4. Pugnava ainda pelos ideais da Revolução Francesa, mas já a via desmentida nos fatos, com o refluxo monárquico por toda parte. Contemporâneo de Napoleão, Byron, tempos depois da derrota, atravessou a cavalo os campos de Waterloo, trauteando uma marcha turca e recolhendo pelo chão sabres e capacetes, despojos da batalha5. O episódio tem o valor de símbolo de toda uma geração.
Vinte anos de guerra haviam cansado todo o Continente. Amesquinhava-se a vida no prosaísmo mercantil. O poeta que gozara da proteção tranquilizadora dos príncipes, adquirira a “sua” liberdade e fora lançado às feras, isto é, às incertezas do mercado. Daí porque não lhes era estranha, nas atitudes e nas obras, uma como que insuspeitada nostalgia dos “velhos bons tempos”… verdadeiramente aristocráticos e … poéticos. Ainda não se abrira nova perspectiva histórica e os laivos aristocráticos, comuns a todos os românticos, acentuam-se no byronismo com maioria de razões.
O descenso da onda revolucionária deixara naquela geração frustrações, desesperanças, ressentimentos, impossibilidades práticas imediatas. É a geração de Julien Sorel, obrigada a trocar o vermelho da farda dos exércitos napoleônicos, pelo negro das sotainas6. Os filhos do povo, a gente sem estirpe, tinham perdido de novo as possibilidades de rápida ascensão social, que a revolução e a era napoleônica lhes proporcionara. Rememorando os tumultos heroicos da tempestade revolucionária, suas perspectivas democráticas, sua crônica recente de mil aventuras gloriosas, haviam de sentir-se roubados, decepcionados, assim como quem chega tarde para o banquete.
Notas:
1 V. Fagundes Varela, de Edgard Cavalheiro, Liv. Martins Ed., p. 107.
2 Edward E. Bostetter, Introduction, in “George Gordon, Lord Byron, Selected Poetry and Letters”, Rineharts Editions New York, 1953, p. v.
3 Id., ib., p. xii.
4 Id., ib., p. vi. Assim se denomina (Regency) o período 1810-1820 da História da Inglaterra.
5 Roger Martin, Introduction, “Lord Byron – Chevalier Harold”, Aubier, Ed. Montaigne, Paris, p. 28.
6 Aragon, “Stendhal en une heure et quart”, in La Nouvelle Critique, n.° 64, p. 54.