CARLOS LOPES
(HP, 02 a 14/04/2010)
Há algum tempo, na campanha eleitoral de 2006, tivemos de abordar a conhecida miséria tucana sobre o Estado, segundo a qual aquilo que é “público” e aquilo que é “estatal” são duas coisas muito diferentes, aliás, completamente distintas.
Naturalmente, se o que é estatal não é público, a consequência é a privatização do Estado, sua posse por alguns grupos que nem mesmo formam uma classe: alguns banqueiros, alguns negocistas, e, certamente, alguns atravessadores, com suas comissões, propinas e subornos auferidos ao mercadejar os bens públicos. À população, além de expropriada, caberia o papel de sustentar, com seus recursos, com seu dinheiro, esse Estado privatizado, isto é, os oligo-parasitas e os oligo-comensais do patrimônio público.
Constitui apenas mais uma infâmia que, ao mesmo tempo, venham pregar uma suposta “transparência” nos negócios estatais, quando tudo o que fazem é torná-los mais opacos para se apropriar do que não lhes pertence.
Na época, essa indigência apareceu numa declaração do então candidato tucano – que poderia ser repetida até com mais ênfase pelo atual candidato tucano – de que o serviço público (isto é, o atendimento à população pelo Estado) não necessita de funcionários públicos. Daí as “oscips” de apaniguados para se apossar de hospitais construídos e sustentados por dinheiro público; as terceirizações, com o amesquinhamento, para dizer o mínimo, da democracia (bem ou mal a população exerce algum controle sobre o Estado; mas quem controla esses receptáculos de recursos públicos, exceto os seus próprios beneficiários?); o arrocho salarial, o trabalho “temporário” (isto é, sem vínculo empregatício), os planos de rebaixamento do mérito e da vida dos professores – e outras formas de privatização e corrupção.
Se os serviços que o Estado deve disponibilizar para a população – porque ela paga por eles – devem ser realizados exclusivamente por particulares, por privilegiados que embolsam o dinheiro do Estado, isso se dá apenas porque tucanos e outros espécimens acham que o Estado deve ser privado, e não público – isto é, deve ser deles e de alguns outros ratos de rabo mais grosso. Não é para melhorar os serviços públicos que se quer privatizá-los, mas para roubar o Estado. Tanto é assim que o resultado dessa política sempre foi a destruição dos serviços públicos. Mesmo se esquecêssemos o inesquecível período em que Fernando Henrique ocupou o Planalto, temos a situação atual em São Paulo para demonstrá-lo, a catástrofe na Saúde, Educação, Transporte, Obras – e em tudo o mais que é, e não pode deixar de ser, público, pois diz respeito, precisamente, à ação do Poder Público, à atividades que afetam de forma geral o conjunto da população (e o pleonasmo ou redundância – “de forma geral o conjunto” – é aqui inteiramente intencional, por razões de clareza).
Hoje, aberrações à parte, é fácil perceber que aquilo que é estatal, inevitavelmente, é público. Mas não é tão imediata a percepção de que tudo o que é plenamente público, necessariamente, terá que ser estatal ou não será plenamente público. Não se pode subestimar o estrago perpetrado pelo neoliberalismo até mesmo na mente de pessoas bem intencionadas – estrago meramente ideológico, sem aderência à realidade, pois até hoje nada do que os neoliberais pregavam, pregaram ou pregam, mostrou-se verdadeiro ou real. Pelo contrário, toda a sua ideologia é mera aparência para ocultar um conteúdo oposto, rigorosamente uma encenação opaca – isto é, nada “transparente” – para esconder a ação de se apossar daquilo que é público.
O fato é que algumas coisas que antes eram óbvias, infelizmente deixaram de sê-lo, não porque deixassem de ser verdadeiras, mas porque foram vítimas de uma clepto-verborréia midiática – evidentemente, neoliberal de cabo a rabo.
Por exemplo: como se chama, até hoje, o regime de exploração dos transportes urbanos ou do espectro eletromagnético (isto é, rádio e TV)?
Como sabe o leitor, chama-se, a esse regime, “concessão pública”.
Por quê? Porque são serviços públicos que o Estado, por não poder realizá-los imediatamente ou por alguma outra razão, “concede” que particulares os façam, os explorem, em seu lugar. Uma “concessão pública”, literalmente, é uma concessão do que é público ao que é privado, do que é estatal ao que não é estatal. Implícita está a ideia – levada ao paroxismo por aqueles donos de Tvs que se acham também donos da parcela do espectro eletromagnético que lhes foi concedida – de que há uma restrição, maior ou menor, ao caráter público do serviço, na medida em que se faz uma “concessão” ao que não é estatal.
Mas, se a ideia básica é que, quando o Estado não realiza diretamente esses serviços, eles são públicos apenas em sentido restrito, conclui-se que esses mesmos serviços somente são plenamente públicos quando é o Estado que os realiza. Realmente, se compararmos a antiga Rádio Nacional com a Rede Globo, restarão poucas dúvidas a esse respeito. A questão é que somente o Estado pode ter uma ação geral sobre a sociedade – tudo o mais, por mais amplas que sejam, são ações particulares, portanto, privadas ou corporativas, como tal de restrito alcance público. Mas, quando o caráter público é restrito, ele deixa de ser público no sentido essencial desse conceito.
MONOPÓLIO
Numa sociedade do tipo da nossa, a existência do que é público e estatal não implica, e jamais implicou, na abolição dos negócios privados. Pelo contrário, a garantia de que certas áreas são públicas, isto é, estatais, faz com que, em torno delas, se desenvolvam os negócios privados.
Em que, por exemplo, o monopólio estatal, público, na área petrolífera impediu o desenvolvimento das empresas privadas? Significativamente, foi depois do fim do monopólio estatal do petróleo – com o ignominioso Repetro – que 5 mil empresas privadas brasileiras dessa área foram destruídas.
Certamente, há uma restrição estabelecida pelo que é público, pelo que é estatal – mas essa restrição diz respeito aos monopólios privados.
Mas nem os neoliberais defendem abertamente o monopólio privado (ao contrário, com uma única exceção importante – a defesa feita por Alan Greenspan do monopólio da Alcoa sobre 100% do mercado norte-americano de alumínio1 – os neoliberais sempre encobrem sua ação pelos monopólios privados com palavras que são, sempre, o inverso do monopólio, como “mercado” – aliás, “livre” mercado – “concorrência” – aliás, “livre” concorrência – “competição”, “competitividade”, etc. & etc.).
Portanto, até a partir do que dizem os neoliberais (embora não do que fazem) pode-se concluir que a restrição do que é público e estatal aos monopólios e cartéis é uma restrição favorável aos negócios privados em geral. Os neoliberais sabem perfeitamente que o monopólio privado é antissocial, antieconômico – e anti-privado, na medida em que destrói a maioria, aliás, quase todos os outros negócios privados.
Por exemplo, já houve várias tentativas de criar indústrias nacionais de automóveis no Brasil. Tecnologicamente, não há grandes dificuldades – não somos inferiores em capacidade aos chineses, aos sul-coreanos ou aos iranianos. Mas, depois que Roberto Campos, no primeiro governo da ditadura, privatizou a Fábrica Nacional de Motores (FNM), o monopólio das montadoras multinacionais passou a esmagar qualquer tentativa nesse sentido.
ESTADO
A ideia de que o Estado administra sempre mal, depois da atual crise norte-americana somente pode caber na cabeça de anormais. No entanto, essa é, exatamente, a ideologia tucana, como mostrou, em São Paulo, o governo Serra. Como disse o engenheiro Virgílio Freire, que conhece bem as multinacionais (foi diretor da Motorola-Nortel, da BellSouth e presidente da Lucent Technologies):
“Quiséramos nós que as telecomunicações em São Paulo tivessem o mesmo nível que a extração, o refino e a distribuição de combustíveis. Logo, não é verdade que ‘o Estado não sabe administrar’. (…) a Petrobrás é eficiente, respeitada aqui e lá fora, e não sofre de apagões de combustível. Apenas para reforçar o argumento, e o Banco do Brasil? É estatal e luta no mercado bancário em condições de igualdade, dá lucros enormes e ninguém acusa a diretoria do BB de ser inepta devido ao fato de a empresa ser estatal. Então, esta ideia de que empresa estatal é por definição lenta, obsoleta, com gente preguiçosa e ineficiente, é uma inverdade”.
Se isso é verdade para as empresas, também o é para a administração direta – aliás, é mais ainda para a administração direta.
Uma empresa privada pode – em regime, evidentemente, privado – ser bem administrada. Já um serviço público, somente consegue ser bem administrado se for administrado publicamente, pelo poder público, com a participação democrática da população. Que controle tem a população sobre as “oscips” tucanas que açambarcam hospitais públicos em São Paulo? Quem as fiscaliza? Onde estão as suas prestações de contas? Quem determina que serviços e em que quantidade elas prestarão? Não é por acaso que esses serviços, logo que são entregues aos apaniguados que embolsam verbas públicas, se deterioram rapidamente – aliás, aceleradamente.
O Estado pode e deve possuir empresas, mas ele, em si, não é uma empresa. Por isso, a ideia de jegue de que o Estado deve ser administrado como uma empresa – ou que, para que ele seja bem administrado, é preciso obrigatoriamente ter um empresário (que não seja “um político”) na cabeça do Estado, jamais teve qualquer sucesso em lugar algum do mundo.
Um empresário, assim como um operário, pode ser um bom governante – desde que, no governo, não substitua os interesses gerais da população pelos interesses particulares das suas empresas ou das empresas de outros. Ou desde que perceba que os interesses das suas e das demais empresas estarão melhor contemplados se assim estiverem os interesses gerais do país.
Nesse sentido, nosso vice-presidente, o empresário José Alencar, é, provavelmente, um modelo para a História do Brasil, alguém que colocou os interesses públicos acima dos seus interesses particulares – ou que percebeu que estes, os interesses de um empresário nacional, não são antagônicos, pelo contrário, aos interesses gerais da nação.
Certamente, Alencar jamais disse que o Estado teria que ser administrado como uma empresa – ou que somente empresários podem bem governar.
Mas essa era a propaganda que cercava o atual senador tucano Tasso Jereissati, desde a primeira eleição em que concorreu – em 1986, para o governo do Ceará. Até hoje, que se saiba, Jereissati sempre usou esse tipo de grife, atribuindo à ela sua eleição – e esquecendo rapidamente o apoio decisivo do então governador Gonzaga Mota, um dos próceres que preferiram unir-se a Tancredo, ao invés de sustentar a ditadura.
Vejamos o resultado desse suposto “Estado-empresa” – que não foi nada aprazível para a terra do quase homônimo de nosso vice-presidente, o primeiro grande romancista brasileiro, José de Alencar.
Um cearense ilustre, mestre Hélder Câmara, glória do xadrez nacional, fez-nos chegar há alguns meses um pequeno balanço, publicado em outubro na imprensa de Fortaleza pelo jornalista Messias Pontes. Permita-nos o leitor a citação mais ou menos longa, porém muito iluminadora sobre o caráter de certos adeptos do “público mas não estatal”, ou, melhor, “estatal mas não público”.
Lembra o jornalista que, em nome de uma suposta eficiência empresarial do Estado, Jereissati,
“desmontou o Estado cearense contra a vontade da maioria dos cearenses: sem consultar quem quer que seja, acabou com o planejamento agrícola ao extinguir a Cepa – Comissão Estadual de Planejamento Agrícola; a Codagro – Companhia de Desenvolvimento Agropecuário – igualmente foi extinta sem dar satisfação a ninguém; a pesquisa também foi mandada pras cucuias com a extinção da Epace – Empresa de Pesquisa Agrícola do Ceará; a assistência técnica e a extensão rural também foram vítimas do descaso do então governador, já que a Ematerce foi totalmente sucateada (…) o Bandece – Banco de Desenvolvimento do Ceará – foi extinto logo no início do seu primeiro governo; a imprensa oficial, que tinha um dos mais modernos parques gráficos públicos do País foi outra vítima fatal, dado que a Ioce – Imprensa Oficial do Ceará –foi extinta para que todo o serviço gráfico dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ficasse com a iniciativa privada.
Jerfeissati também privatizou
“a Coelce – Companhia de Eletricidade do Ceará – por um bilhão de reais quando valia muito mais, já que era uma empresa superavitária e que prestava bons serviços. Tasso prometeu aplicar R$ 600 milhões num fundo previdenciário do Estado, mas esse dinheiro tomou outro rumo. Com a privatização da Coelce, aproximadamente 1.450 funcionários foram demitidos, muitos enfartaram e houve até suicídio por conta das pressões dos novos donos. Isso sem falar da piora substancial na qualidade dos serviços prestados e do abusivo aumento da tarifa. O número de mortes por acidente de trabalho pulou de um para oito por ano, sendo a maioria de funcionários terceirizados, sem a qualificação exigida para atuar no setor. Os desmandos dos novos donos da Coelce foram tamanhos que mesmo a Aneel foi obrigada a aplicar uma multa de R$ 6,9 milhões à empresa.
“Outro grande prejuízo causado por Tasso Jereissati aos cearenses foi a quebra do BEC – Banco do Estado do Ceará. Quando iniciou o seu terceiro mandato, Tasso recebeu o BEC não só completamente saneado, mas principalmente supera- vitário. Em quatro anos o BEC teve de ser federalizado pela importância de R$ 900 milhões para os cearenses pagarem em 30 anos.
Isso tudo em meio a uma sanha verdadeiramente fascista:
“no seu período, decisões judiciais eram simplesmente ignoradas, fato inédito na história do Ceará. A truculência contra grevistas e a todos os movimentos sociais organizados que reivindicavam direitos foram uma constante em seu governo. A repressão aos trabalhadores rurais sem terra foi violentíssima” (cf., Messias Pontes, “A verdadeira força do atraso”, O Estado, 14/10/2009).
Ao que se poderia acrescentar um assalto federal:
“Só o rombo no BNB, deixado por Byron Queiroz, afilhado de Tasso, foi superior a R$ 7 bilhões”.
Diante da eloquência dos fatos, dispensamo-nos de maiores comentários, exceto o de que esse massacre do espaço público, da ação, do patrimônio e do dinheiro do Estado, de nada serviu aos negócios privados no Ceará. Pelo contrário, foi também um massacre sobre esses negócios privados, na medida em que o desmantelamento do Estado impediu que este os incentivasse. Em que beneficia aos empresários serem extorquidos por uma empresa parasitária estrangeira – a ítalo-espanhola Endesa – ao invés de pagarem tarifas de energia razoáveis à estatal Coelce?
A QUESTÃO
Porém, voltemos ao início, e à questão: é possível, na sociedade atual, algo que seja plenamente público e não seja estatal?
Na época em que o medíocre adversário de Lula nas eleições de 2006 fez a sua profissão de fé “pública mas não estatal” – repetindo inteiramente, as bobagens de seu líder, Fernando Henrique Cardoso – planejamos um artigo, depois adiado por falta de tempo, sobre as origens ideológicas (se o leitor quiser, “filosóficas”) dessa indigência.
Havia duas fontes “teóricas”.
Uma, bastante obscura, o alemão Jürgen Habermas, autor de “A Transformação Estrutural da Esfera Pública” – tão citado em certos trabalhos quanto pouco lido, e, menos ainda, entendido, não por culpa dos leitores, mas pelo lastimável estilo de Habermas. Há quem identifique obscuridade com profundidade. Rosa Luxemburg, que podia não estar certa em tudo, como realmente não estava, jamais acertou tanto do que quando disse: “quem se expressa de modo obscuro demonstra que não entende do que está falando, portanto tem todas as razões para não falar claramente”.
Mas existe outra fonte, uma fonte “clara” (isto é, que escreve decentemente) dessa suposta teoria: Hannah Arendt, uma autora que tem como melhor predicado o estilo e não o conteúdo de suas teorias (é possível ler um ensaio de Arendt como se fosse uma espécie de romance – lembro que foi assim que li várias vezes “Anti-semitismo, instrumento de poder”). Arendt, atualmente, é bastante incensada por tucanos metidos a besta, como aquele ministro das Relações Exteriores que se submeteu orgulhosamente a ser revistado pela polícia dos EUA…
Não chegamos ainda nos nazistas e mal começamos o inventário das virtudes da senhora Arendt. Porém, leitores, acabou o nosso espaço. Vamos ter que deixar para a próxima a continuação deste emocionante drama…
1Segundo Greenspan, o processo de 1938, impetrado pelo governo Roosevelt contra a Alcoa, foi uma inustiça, pois o seu monopólio era produto e prova de sua “eficiência”. Mais ou menos – aliás, exatamente – como os bancos e fundos de Wall Street que ele privilegiou durante os 16 anos em que foi presidente do banco central dos EUA (FED), com os resultados que se conhecem (a defesa de Greenspan está em seu artigo “Antitrust”, na infame coletânea “Capitalism: The Unknown“, New American Library, 1966), uma das bíblias (há várias) do neoliberalismo.
2
Hannah Arendt tinha todas as razões para recusar – ainda que pelo motivo errado – o título de “filósofa”, mas nenhuma para achar que sua especialidade era a “teoria política” (“Politische Theorie”).
O motivo errado chamava-se Martin Heidegger, para ela – ao lado, ou, provavelmente, acima de Karl Jaspers – o inalcançável suprassumo da filosofia. Até o final da vida, Arendt jamais conseguiu perceber o vínculo da “filosofia” de Heidegger com sua adesão ao nazismo, em maio de 1933, três meses após a chegada de Hitler ao poder. E não conseguiu perceber – apesar de Heidegger permanecer membro do partido de Hitler até que ele deixou de existir e jamais ter pronunciado qualquer palavra de arrependimento até a morte, em 1976 – porque não queria perceber.
Em seu artigo “O que é o existencialismo?” (1945) ela contorna o problema – bem ao seu modo, evita esse foco, na época mais crítico ainda do que é hoje, e concentra-se em críticas secundárias. Mais de 20 anos depois, ela falaria publicamente em homenagem aos 80 anos de Heidegger, desculpando-o por sua adesão a Hitler – que foi muito além do uso da suástica quando reitor e da notória profissão de fé (“O Führer, e só ele, é a lei e a realidade alemã, hoje e no futuro”) que fez em seu discurso de posse na Universidade de Freiburg, caindo pela ladeira da delação de colegas da universidade.
Nessa homenagem a Heidegger, em 1969, Arendt declarou que “tanto Platão quanto Heidegger, quando entraram nos assuntos humanos, procuraram refugiar-se junto a tiranos e ‘Führem’ [plural de Führer]”. Não sabemos quando é que os filósofos não entram nos “assuntos humanos”, ou como eles fazem para não entrar nesses assuntos, mas trata-se de uma grande injustiça com Platão. Tomar Dionísio I ou Dionísio II de Siracusa – anfitriões do filósofo grego – como se fossem pares de Hitler, é uma monstruosidade histórica. Mas há algo ainda pior nessa comparação: não há notícia de que Platão, ao contrário de Heidegger, tenha delatado alguém. Aliás, ele é o autor da “Apologia de Sócrates” – uma denúncia do poder que levou Sócrates à morte.
Mas, segundo disse Arendt em 1969, o que aconteceu com Heidegger não passou de uma “deformação profissional” (em francês no original alemão: “déformation professionnelle”) dos filósofos porque “a tendência à tirania, teoricamente, pode ser mostrada em quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande exceção)” [uma frase dessas demanda a citação do original: “Denn die Neigung zum Tyrannischen läßt sich theoretisch bei fast allen großen Denkern nachweisen (Kant ist die große Ausnahme)”].
Não é necessário especular se Arendt não sabia o que é um grande pensador, ou, apesar de ser uma alemã de origem judaica, que viveu na época do nazismo, não aprendera o que é tirania. As duas coisas, a julgar pelos seus escritos, são verdade. Mas essas palavras são também uma justificação para a própria adesão de Arendt à tirania – não a nazista, mas a norte-americana, depois da II Guerra Mundial.
Com apenas uma exceção notável, que mencionaremos mais adiante, os escritos de Arendt após a II Guerra pertencem ao campo da propaganda. Alguns leitores talvez estranhem esta afirmação. Porém, não é outra coisa a sua obra mais citada, “As Origens do Totalitarismo” (1951), em especial a última parte, em que, num mundo que acabara de derrotar o nazismo, onde todos sabiam perfeitamente sobre quem recaíra o peso principal, o esforço maior para se chegar à vitória sobre Hitler, ela, sem muitos pruridos, exuma um falso conceito muito propagado por Mussolini – o “totalitarismo” do título da obra – para igualar o socialismo, especificamente o socialismo que existia na URSS, com o nazismo. Tal “conceito”, segundo Arendt, não é aplicável a qualquer outro regime existente na época em que o livro foi publicado – nem mesmo ao fascismo franquista, que subsistia, agora sustentado pelos EUA, na Espanha. Somente dois regimes, diz Arendt, merecem o rótulo de “totalitários”. Um deles, não mais existia – o nazismo na Alemanha. O outro é o socialismo da URSS – precisamente aquele que derrotara, no fundamental, o nazismo.
Outros já apontaram como as duas primeiras partes do livro (“Antissemitismo” e “Imperialismo”) não são coerentes com a última. Diríamos que, a rigor, essas duas primeiras partes nada têm a ver com a última. Esta é uma espécie de improviso feito sob medida para se adaptar ao status quo norte-americano pós-II Guerra Mundial, isto é, à substituição do rooseveltianismo democrata pelo macartismo republicano.
Em 1942, quando já preparava o livro, essa terceira parte não estava em seus planos e Arendt tinha uma opinião inteiramente diferente sobre a URSS, que, segundo escreveu, havia “simplesmente liquidado o antissemitismo” e dado uma “solução justa e muito moderna para a questão nacional”. Três anos depois, em 1945, ela ainda escreveria: “A propósito da Rússia, todos os movimentos políticos e as nações deveriam prestar atenção no seu modo completamente novo, e bem sucedido, de enfrentar os conflitos, integrar as nacionalidades e organizar populações diferentes sobre a base da igualdade nacional. Isso tem sido subestimado tanto por seus amigos quanto por seus inimigos” (cf. Hannah Arendt, “Essays und Kommentare 2. Die Krise des Zionismus”, coletânea editada por Eike Geisel e Klaus Bittermann, Tiamat, Berlin, 1998 – trata-se de um volume muito interessante, com textos de Arendt que não são encontrados facilmente, e que, provavelmente, ela preferiria que fossem esquecidos; mais significativos ainda são esses textos porque o interesse dos editores não é criticar a autora, muito pelo contrário).
Em 1945, a política de Franklin Delano Roosevelt era dominante nos EUA, onde Arendt vivia desde 1941. Pouco tempo depois, no entanto, em 1951, com a onda reacionária que se seguiu à morte daquele grande presidente norte-americano, Arendt estaria surfando em outra onda dominante – a rigor, se agarrando com as unhas na prancha reacionária dos republicanos.
Além dessa incoerência, o totalitarismo de Arendt é um “conceito” suspenso no vácuo – não tem base social, nem econômica, nem política: o fato da Alemanha, entre 1933 e 1945, ser um país selvagemente capitalista e barbaramente imperialista, com uma economia engessada por alguns (muito poucos) monopólios privados, e a URSS das décadas de 30, 40 e 50 ser um país onde, essencialmente, a propriedade dos meios de produção era coletiva, não a inibe de colocar socialismo e nazismo no mesmo saco. Não lhe importa que seu neo-conceito (ou, como ela mesma disse sobre outros, seu “não-conceito”, isto é, seu preconceito) não corresponda a alguma realidade socioeconômica ou política determinada – mas isso é, exatamente, o que se denomina propaganda, no sentido mais vulgar dessa palavra.
Um “conceito” desses era tudo (ou quase tudo) o que os esbirros da muito mal chamada “guerra fria” queriam – sobretudo aqueles que se consideravam muito sofisticados e intelectuais, como George Kennan, McGeorge Bundy, os irmãos Dulles, Spruille Braden e demais participantes do Council on Foreign Relations, de Rockefeller; mas também, é forçoso reconhecer, os capangas de casca grossa como Nixon e McCarthy, que nunca chegaram ao fim de algum livro, acharam que “totalitarismo” era uma palavra muito boa para pespegar na URSS e nos comunistas.
Assim, usaram amplamente a invenção de Arendt. E, sem que ela protestasse, estenderam o “conceito” a qualquer governo com um mínimo de independência, desde o Irã, do primeiro-ministro Mossadegh, à Guatemala, do presidente Arbenz; desde à Indonésia, do presidente Sukarno, a Cuba, do comandante Fidel; depois, ao Chile, do presidente Allende, mais recentemente ao Iraque do presidente Sadam Hussein, e até ao Brasil de Jango Goulart – onde se aplicou um dos filhotes do totalitarismo de Arendt, a “república sindicalista”, originalmente parido por Spruille Braden para a Argentina do presidente Perón.
Em suma, a melhor definição de um regime “totalitário” passou a ser aquele que a CIA quer derrubar.
O IDÍLIO
A primeira parte de “As Origens do Totalitarismo”, sobre o antissemitismo, é até agradável de ler, mas completamente inútil para o conhecimento das causas do problema. Evidentemente, o antissemitismo da Idade Média não tem, nem podia ter, a mesma base social do antissemitismo na França durante o caso Dreyfus (1894-1899); nem este tem a mesma base social do antissemitismo na Áustria-Hungria durante o período final dos Habsburgos (1848-1918); que, por sua vez, não tem a mesma base social do antissemitismo das Centúrias Negras (1900-1917) na Rússia czarista; que também não é a mesma coisa que o antissemitismo na Alemanha, sob Hitler.
No entanto, essas distinções são ignoradas ou tangenciadas por Arendt. Somos informados que os grupos antissemitas não pertenciam à “massa”, mas à “ralé”. Seria excelente se somente o lumpenproletariat (a “banda podre do proletariado”, na definição de Marx) fosse racista, mas, além de não corresponder à realidade, a “ralé” de Arendt não é um sinônimo de “lumpen”. Essa “ralé” se define por seu antissemitismo, assim como este é praticado, por definição, pela “ralé” – e não saímos do mesmo lugar.
Mas, somos também informados, na sociedade capitalista que emergiu na Europa Ocidental no século XIX, “os judeus não formavam uma classe nem pertenciam a qualquer das classes nos países em que viviam” (Hannah Arendt, “As Origens do Totalitarismo”, trad. Roberto Raposo, Companhia das Letras, 3ª reimp., 1998, pág. 33).
Ficamos sem saber como o principal país da Europa Ocidental no século XIX – a Inglaterra – conquistou o seu império colonial sob um primeiro-ministro judeu (Benjamin Disraeli) ou como o proletariado de origem judaica se alistou em massa nos partidos socialistas da época. Tais fatos parecem caídos do céu, sem nenhuma explicação (apesar da autora sempre ter exibido como galardão a sua condição, aliás, verdadeira, de ex-aluna favorita de Karl Jaspers, para quem os fenômenos demandam uma “compreensão” – isto é, uma exposição de sua lógica interna – e uma “explicação” – isto é, uma remissão às suas causas, evidentemente, externas ao próprio fenômeno).
Depois da descoberta de que os judeus na Europa do século XIX eram, literalmente, desclassificados, restam poucas dúvidas de que Arendt não sabe o que é uma classe social. Portanto, não é uma surpresa que ela ignore, também, o que é o Estado – parece acreditar que o Estado é radicalmente separado da sociedade, tal como acreditavam os supersticiosos alemães da época de Kant ou Hegel.
Por exemplo:
… “a estranha capacidade portuguesa de continuar uma luta [pelas colônias], da qual todas as outras potências coloniais europeias já haviam desistido, pode ter resultado do seu atraso nacional mais do que da ditadura salazarista” (op. cit., pág. 147).
A ditadura salazarista, portanto, deve ser um fenômeno separado do atraso nacional de Portugal sob o salazarismo. Talvez, quem sabe, seja um problema racial…
Assim como no caso dos judeus, Arendt acaba por promover um preconceito ao altar da filosofia política, aliás, “teoria política”.
Ela também não entende o que é o “imperialismo moderno”, apesar de escrever um bocado sobre ele – ou, melhor, sobre alguma coisa que não é ele. O império feroz dos monopólios, a exportação de capital, a busca de mercados e matérias-primas, a extração de superlucros e a redivisão do mundo, nada disso é assunto para a “teoria política” de Arendt, exceto marginalmente – e sempre numa versão quase idílica.
Assim, o seu imperialismo é um produto quase automático – isto é, sem que, na maior parte, haja intenção imperialista nos países imperialistas – do “processo de criar nações em áreas atrasadas, onde a ausência de todos os pré-requisitos para a independência nacional é tão marcante” (idem, pág. 148). Logo, a causa do “imperialismo moderno” deve ser a teimosia de povos que querem ser independentes sem que tenham condição para tal – isto é, nós, povos das antigas colônias.
[N.A.: Do ponto de vista filosófico, Arendt jamais contestou ou discutiu um dos postulados básicos – derivado da fenomenologia de Husserl – proclamados por seu professor, Jaspers, segundo o qual nenhum ato pode ser divorciado de uma intencionalidade. Portanto, vendo a sua teoria sob esse ângulo, a intencionalidade do imperialismo, supõe-se, está em suas vítimas, nos que são espoliados por ele.]
Porém, não se pense que o imperialismo em 1951 é o mesmo de antes. Diz Arendt:
… “os investimentos privados em terras distantes, que originalmente constituíam a motivação básica do imperialismo, estão hoje superados pela ajuda externa, econômica e militar, fornecida diretamente aos governos pelos governos” (pág. 149).
Em suma, a ajuda governamental, já em 1951, “superou” (superou historicamente) as multinacionais e a dependência financeira. Como naquele fado, só nós é que sabemos…
O leitor poderá notar, aqui, o parentesco com certas teses (cáspite) tucanas. O desastre do governo Fernando Henrique consistiu, precisamente, em abdicar dos interesses nacionais em prol da “ajuda” (é verdade que não de governo para governo) que o capital externo iria fornecer ao nosso desenvolvimento.
Pareceria uma questão de justiça para com Arendt observar que, ao contrário dos tucanos, pelo menos ela acha – ainda que em versão edulcorada – que o imperialismo existe. No entanto, é melhor examinar o santo mais de perto: o motivo que faz Arendt, no início da década de 50, designar como imperialismo a “ajuda externa, econômica e militar, fornecida diretamente aos governos pelos governos” nada tem a ver com o Plano Marshall, a OTAN, ou a suposta “ajuda” norte-americana a países da América Latina. Seu objetivo é outro: incluir como “imperialismo” a assistência econômica que a URSS, na época, prestava aos países da Europa Oriental, à China e à Coreia.
DESAPARECIMENTO
Em 1958, sete anos depois de “As Origens do Totalitarismo”, Arendt iria chegar à conclusão de que o Estado encontrava-se em franco processo de desaparecimento: “… em nossos dias, [o Estado] começa a desaparecer completamente sob a forma da esfera ainda mais restrita e impessoal da administração” (Hannah Arendt, “A Condição Humana”, trad. Roberto Raposo, Forense, 10ª edição, 2007, pág. 70 – o posfácio dessa tradução é do ministro das Relações Exteriores de Fernando Henrique, Celso Lafer, ex-aluno de Arendt e rara vocação de Cinderela em aeroportos norte-americanos).
Arendt está se referindo ao Estado dos países centrais, especialmente, presume-se, ao Estado do país onde vivia, os EUA – pois não tinha a mesma opinião sobre os Estados dos países socialistas.
O Estado norte-americano, em 1958, mantinha, espalhados pelo mundo todo, três milhões de pessoas nas forças armadas (hoje, esse efetivo total, incluindo funcionários civis, mas não a reserva nem os mercenários, que são cada vez em maior número, é de 2.025.049). Não sabemos quantos funcionários tinham, no final da década de 50, as quase três dezenas de agências de terrorismo e espionagem dos EUA, mas não deviam estar muito longe dos 200 mil revelados pelo governo Carter.
Então, onde foi que Arendt viu esse Estado a caminho do completo desaparecimento?
A pista é dada pela última parte da frase (“sob a forma da esfera ainda mais restrita e impessoal da administração”). Como isso não pode ser uma referência ao número de funcionários, porque isso desmontaria a sua tese, nos parece claro que ela confunde a monopolização crescente do Estado imperialista por um grupo cada vez menor de mandantes, monopolização que deu um salto durante o governo Eisenhower (1953-1961), com o início do “desaparecimento completo do Estado”.
Nesse sentido, Arendt estava à direita do próprio Eisenhower, que, ao passar o cargo para Kennedy, mencionou o “complexo industrial-militar”, fomentado durante o seu governo, como um perigo para o Estado, o país e a democracia. Como um dos generais mais antigos do exército norte-americano, ele sabia do que estava falando – apesar de nada ter feito para impedir a expansão desse “complexo” durante oito anos de governo, preferindo passar o problema ao seu sucessor, que logo perderia a vida ao tentar estabelecer alguns limites para essa hipertrofia.
Esse livro de Arendt, de 1958, tem um interesse especial, pois é nele que faz as suas considerações sobre o “espaço público” – a base de onde tucanos e assemelhados extraíram o seu biombo para o assalto ao Estado: a tese do “público mas não estatal”, ou seja, do “estatal mas não público”.
Arendt coloca tais questões de forma supostamente abstrata – mas é evidente a que realidade concreta elas se referem. Em cada página do livro há, como diria um amigo nosso, um velho truque pseudo-filosófico: quando as coisas tornam-se difíceis de provar, recorre-se à Grécia e aos gregos. Não propriamente ao que sabemos dos filósofos gregos históricos, nem a uma Grécia Antiga que tenha algo de histórico, mas a uma idealização arbitrária da Grécia e dos gregos antigos. Por exemplo: “Os gregos, cuja cidade-estado foi o corpo político mais individualista e menos conformista que conhecemos…” (op. cit., pág. 52). Qual a prova disso, além das lendas que povoam o imaginário do individualista burguês, Arendt dispensa-se de apresentar, exatamente porque esse tipo de afirmação é feita para dispensar provas. Da mesma forma, somos informados que na antiga Grécia “… a sobrevivência da espécie não era assunto político, mas doméstico por definição” (op. cit, pág. 38). Difícil é saber porque os gregos fundaram um Estado (aliás, vários) se a “sobrevivência da espécie” não necessitava dele.
Porém, quando um grego atrapalha demais a idealização que a autora faz da Grécia, e, portanto, a sua tentativa de legislar sobre o nosso mundo, rapidamente é corrigido. Assim, o relato de Xenofonte, segundo o qual numa praça pública de Esparta havia 4.000 escravos para 60 homens livres é, sem maiores delongas, considerado “certamente exagerado” (op. cit., pág. 42, nota). Provavelmente, Arendt estava na praça no mesmo dia em que Xenofonte passou por lá…
Infelizmente, leitores, outra vez nosso espaço acabou – mas tenhamos paciência: já chegaremos à parte boa da senhora Arendt.
3
A importância política do debate sobre a questão do que é – e do que não é – público reside na metamorfose ideológica que apontamos anteriormente: a maneira de tornar “não-público”, isto é, privado – ou, melhor, privatizado – o que é público, o que é estatal, nos últimos tempos, frequentemente tem sido a de propalar a recíproca: “o que é público não necessita ser estatal”.
Não há exemplo mais claro em nosso país – mais claro até do que os escândalos do governo Fernando Henrique – que a administração impressa nos últimos anos ao Estado de São Paulo, que costumava, com toda razão, ser chamado de “o Estado mais rico da federação”. Exatamente para que aquilo que é estatal deixe de ser público, declara-se que aquilo que é público não precisa ser estatal – com funestas consequências para a população e para a economia paulista.
A primeira afirmação equivale, precisamente, à segunda.
Naturalmente, um governo, diante de determinadas circunstâncias, ou seja, diante de uma determinada correlação das forças políticas ou situação econômica, poderá optar pela concessão de um determinado setor público ao empreendimento privado. Será uma questão de avaliar, num momento dado, e provisoriamente, o custo e o benefício a curto prazo. Porém, mesmo isso terá repercussão a longo prazo – isto é, do ponto de vista estratégico – e não somente sobre o setor público, mas também sobre os negócios legitimamente privados, vale dizer, aqueles que têm mais interesse para o país, por serem mais importantes para o desenvolvimento e a independência econômica.
Mas não é circunstancial, ou uma questão de custo/benefício, a privatização tucana. Se fosse, nem as distribuidoras de energia, nem a Companhia Vale do Rio Doce teriam sido privatizadas. Pagar (com dinheiro do BNDES, que não foi ressarcido, de forma alguma, até 2003) para que a AES Corporation levasse a Eletropaulo não é exatamente um benefício. Estrangular a Telebrás para que a Telefónica tomasse a Telesp, e a Worldcom, uma falida companhia norte-americana, e depois a AT&T/Telmex, tomassem a Embratel, também não.
É esta a questão prática que está implícita ou subjacente em termos pseudo-teóricos – numa palavra, ideológicos – tão constantemente assacados na mídia como “esfera pública” ou “espaço público”.
A ESFERA
Hannah Arendt apresentou ao público o seu “espaço público” quatro anos antes de Habermas – que reconheceu sua dívida para com ela – aparecer com a sua “esfera pública”. O tradutor brasileiro de Arendt, compreensivelmente, preferiu igualar os dois – usa sempre a expressão “esfera pública”, ao invés de, como a autora havia usado, “espaço” ou “área” (“Raum”, em alemão; ou, na edição norte-americana, “realm” – “reino”, “domínio” ou “setor”). Devemos convir que isso facilita as coisas e até mesmo tem um efeito elucidativo: tudo são “esferas”; existe uma “esfera privada”, uma “esfera pública”, uma “esfera política” (que, às vezes, é a mesma coisa que a “esfera pública” e outras vezes não é, ou não parece ser), uma “esfera social” e até uma “esfera administrativa” – em suma, tantas “esferas” quantas se quiser, ou quantas a autora quiser. E quando uma dessas “esferas” é inflada, as outras, ou uma delas, ou algumas (também depende da vontade da autora) são desinfladas, como se a sociedade não existisse em vários níveis, mas apenas num único. Em suma, trata-se de uma sociedade – em qualquer época – tão unidimensional quanto as supercordas hoje em moda na física. Mas estas, até o momento, ainda são imaginárias. Aliás, a sociedade de Arendt, também.
Arendt tem a vantagem, sobre Habermas, de escrever melhor, mais claramente. Mas, talvez, naquela época, isso não fosse uma vantagem. No frigir dos ovos, era mesmo uma desvantagem – pois é impossível, quando se fala ou se escreve claramente, dar aparência progressista a uma fantasia reacionária.
AS APARÊNCIAS
Mas ao que corresponde a “esfera pública” ou “espaço público”? Meramente a um mundo de aparências: “Para nós, a aparência (…) constitui a realidade” (pág. 59). Algumas páginas depois: “… a nossa percepção da realidade depende totalmente da aparência, e portanto da existência de uma esfera pública” (Hannah Arendt, “A Condição Humana”, trad. Roberto Raposo, Forense, 10ª edição, 2007, pág. 61 – grifos nossos).
A percepção da realidade não depende totalmente da aparência, porque é evidente que um selvagem e um homem culto percebem a realidade de forma diferente. A percepção é o resultado dos sentidos, mas os sentidos humanos também têm uma história. Porém, a questão decisiva não é a simples percepção da realidade, ainda que esta seja diferente para diferentes estágios do desenvolvimento humano. A questão decisiva é o conhecimento da realidade, isto é, a essência e não a aparência dela.
Arendt considera aqui somente a percepção da aparência, e omite o conhecimento da essência, não por uma questão de princípio filosófico, análogo àquele – defendido e desrespeitado por ela de acordo com as conveniências – de que os textos têm de ser considerados literalmente. Ela considera somente a percepção e omite o conhecimento porque isso deixaria a sua “esfera pública” imediatamente sem gás: toda ela é recheada pela concepção de que não existe uma verdade comum a todos os seres humanos (“Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes. É este o significado da vida pública” – pág. 67). Por isso, não somente a violência, mas o conflito, estão ausentes da sua “esfera pública”: “a esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer” (pág. 62).
Evitando comentários sobre essa dialética do “por assim dizer”, o que salta aos olhos (já que estamos falando em percepção) é que não há algo mais distante da política do que essa “esfera pública”, apesar de Arendt utilizar a palavra “política” verdadeiramente a torto e a direito. Se o leitor lembra de ter ouvido algo semelhante ao trecho que acabamos de citar, lhe será fácil notar o parentesco com certa ideia capenga de “diversidade” que circula em alguns meios. Mas Arendt prefere outro termo: “pluralidade”.
Para que serve essa “esfera pública”? Para uns ouvirem e verem outros, sem nunca chegar a nenhuma concordância sobre nada, portanto, sem nunca se unirem para um objetivo comum. Mais parece – e, no fundo, é isso mesmo – um festival de ONGs de todos os setores possíveis. Naturalmente, essa “esfera pública” nada tem a ver com o Estado, com o poder real. O que é mais claro ainda em outra ficção sobre os gregos antigos: “A igualdade [na antiga Grécia] longe de ser relacionada com a justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade; ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de comandar, e mover-se numa esfera onde não existiam governo nem governados” (op. cit., pág. 42 – grifo nosso).
Sócrates, que foi obrigado a beber cicuta pela “esfera pública” dos gregos, sabe o quanto era assim naqueles tempos… Infelizmente ele não está em condições de dar o seu depoimento pessoal sobre o idílio que eram as reuniões na Ágora de Atenas, com cada um tolerando a diversidade, perdão, “pluralidade” do outro. Mas há o relato de Platão – no entanto, não vimos a correção que certamente Arendt fez nos autos do processo de Sócrates.
Assim, a “esfera pública” nada tem a ver com a luta pelo poder (isto é, a política). Existe no livro, antes que se monte uma falsa polêmica sobre o que acabamos de dizer, a afirmação de que “é o poder que mantém a existência da esfera pública”, mas, além do mistério que é o significado de “manter a existência”, esse poder não é o que as pessoas comuns chamam de poder, isto é, poder de Estado, e, sim, “o espaço potencial da aparência entre homens que agem e falam. (…) O poder é sempre um potencial de poder” (pág. 212 – grifo nosso). De onde se conclui que qualquer “aparência” tem chance de ser um “poder”, uma vez que este é sempre potencial, isto é, nunca se torna real.
E, na verdade, a “esfera pública” de Arendt também nada tem a ver com a ação, apesar de elevá-la à categoria distintiva da espécie humana. Examinaremos depois esta questão. Aqui, o que importa é que ação implica em luta, contradição, e, mesmo, em antagonismo – bem sabiam os gregos antigos verdadeiros, de quem nós herdamos a palavra “antagonismo”.
Sendo assim, não é surpreendente que o mundo de aparências que Arendt chama de “espaço público” não tenha substância. Nada une aqueles indivíduos, exceto a infinita paciência de ouvir suas diferenças sem jamais dirimi-las. Daí, o amor entre os seres humanos é expulso dessa “esfera”, como sentimento que não só é exclusivamente privado, mas que “morre ou, antes, se extingue assim que é trazido a público. (…) o amor só pode falsificar-se e perverter-se quando utilizado para fins políticos, como a transformação ou salvação do mundo” (op. cit., pág. 61 – grifo nosso).
Se o amor “só pode falsificar-se e perverter-se quando utilizado para fins políticos, como a transformação ou salvação do mundo”, supõe-se que a política seja eternamente, e por definição, o reino do egoísmo, da ganância, do pisar-o-pescoço dos outros, uma reserva de mercado para os achacadores, os parasitas, em suma, os mercenários e os monopolistas. Portanto, o mundo não tem salvação, nem pode ser transformado. Sintomaticamente, segundo Arendt, o amor na política – isto é, a luta de seres humanos movidos, como disse o Che, por “grandes sentimentos de amor” – só pode ser uma “utilização”.
[Estamos fazendo um especial esforço para não entrar em certos detalhes – nem tão detalhes assim, pois as repercussões políticas são mais do que conhecidas – da vida de Arendt, em particular seu relacionamento pessoal com Heidegger. Mas que às vezes é difícil, lá isso é. Existe a possibilidade de que ela, neste trecho, esteja apenas tornando “questão filosófica” algo que é um problema privado seu. Mas isso seria muito pior para ela do que a interpretação que consideramos acima.]
Mas não há problema algum na despolitização completa da “esfera pública”, pois os seres que por lá deambulam já têm todos os seus problemas resolvidos. Portanto, não precisam do poder para que a vida seja melhor – na verdade, a vida deles já é a melhor possível, porque já estão no poder. Por isso, todos que se reúnem na Ágora são “iguais”, apesar dos 400 mil escravos que, dizem, existiam na Atenas de Péricles, pois só os senhores de escravos podem lá se reunir; do mesmo modo, na Ágora não existe “governo nem governados”, pois só os que governam se reúnem lá.
Se é assim, a “ação” na “esfera pública” é meramente retórica, limitando-se à audição e contemplação de diferenças. O resto já foi resolvido – ou não são um problema – para os participantes desse colóquio.
O leitor poderia arguir: mas isso, certa ou errada, Arendt acha da antiga Grécia; e sobre a sociedade de hoje, ela acha a mesma coisa?
Entre imprecações contra a “sociedade de massas”, que estaria acabando com a “esfera pública” (graças aos céus, isto é, às “massas”), na atual sociedade, segundo Arendt, “a contradição entre o privado e o público, típica dos estágios iniciais da era moderna, foi um fenômeno temporário que trouxe a completa extinção da própria diferença entre as esferas privada e pública, a submersão de ambas na esfera do social. (…) a esfera pública (…) se tornou função da esfera privada, e a esfera privada (…) se tornou a única preocupação comum que sobreviveu” (pág. 79).
Podemos resumir as considerações sobre a “submersão na esfera do social”, pois essa despolitização do político (desculpem, leitores, mais essa expressão algo barroca) é por conta de Arendt, não por conta da realidade. Além disso, uma vez que estamos falando de sociedades – seja a nossa ou a dos gregos antigos – o que é “social”, ainda que não apareça com esse nome, se expressa de tal ou qual jeito: política, social, econômica e culturalmente. Por isso, os latinos não viram problemas em traduzir a definição do homem como “zoon politikon”, de Aristóteles, pela expressão “sociale animal”, ou seja, “animal social”, o que, segundo Arendt, seria um “profundo erro de interpretação” (op. cit., pág. 36 – nos parece algo incrível que Arendt resolva deblaterar contra uma tradução que é costumeira desde o ano 56 D.C., como se nos 1.900 anos que se passaram entre a obra de Sêneca onde – ao que sabemos – essa tradução apareceu pela primeira vez, e o seu livro, ninguém tivesse estudado grego antigo e, especialmente, Aristóteles – e sem nem mesmo perguntar-se qual o motivo do suposto “erro de interpretação”. Mas assim é, caro leitor).
Porém, continuando: o que Arendt chama de “esfera privada” é, exatamente, o reino da propriedade. A “esfera pública” só admite a propriedade na medida em que, hoje em dia, “a esfera pública se tornou função da esfera privada” e “a esfera privada se tornou a única preocupação comum”. A questão é: para quem a “esfera privada” se tornou a “única preocupação comum”? Certamente não para aqueles que foram excluídos, pela própria Arendt, da “esfera privada”, pois não possuem nada ou não possuem o suficiente para ficarem tão preocupados.
Logo, essa “esfera pública”, na atualidade, como também no passado, tem como forma de existência uma utópica igualdade entre os proprietários, e não quaisquer proprietários, mas entre aqueles que, em conjunto, teriam se saciado com o monopólio da propriedade, e, portanto, não teriam razão para “colidir uns com os outros”. Trata-se de uma idealização da casta economicamente dominante nos EUA, assim como ela idealiza a “esfera pública” dos senhores de escravos na antiga Hélade. Para essa nova idealização, ela tomou até mesmo a providência de excluir os “estágios iniciais da era moderna” – isto é, o capitalismo de livre-concorrência. Somente sobraram os monopolistas, a cúpula do capital financeiro, a acrópole (?) do capital imperialista. Que isso nunca tenha existido, nem seja possível entre os Rockefellers, Morgans e Dupont (aliás, entre eles é que não é mesmo possível), que esse pessoal prefira, ao invés de ficar ouvindo a “pluralidade” dos outros, cortar o pescoço do próximo para ganhar um pouco mais que uns trocados – ou até uns trocados, como o velho Rockefeller, que cobrava a comida dos convidados a jantar em sua casa – não é problema que tenha afligido essa ilustre “teórica política”.
O CONFORTO
O fundador da HORA DO POVO, Cláudio Campos, disse uma vez que a única propriedade que o povo tem é exatamente a propriedade pública.
Se isso é verdade para a maioria esmagadora das pessoas, também, embora de outra maneira, é verdade para aqueles que são empresários nacionais em um país como o Brasil. Sem a propriedade pública eles, rapidamente, perderão a sua propriedade privada. Não precisamos prová-lo através de argumentação lógica: foi exatamente isso o que ocorreu durante todo o governo Fernando Henrique Cardoso.
Por isso, a privatização do Estado, o “estatal mas não público”, sob suas diversas modalidades, é uma tragédia tão grande para o país – e, evidentemente, para as pessoas que formam o país. O Estado – sua ação, inclusive produtiva – é a única barreira possível ao assalto monopolista, sobretudo externo, não somente sobre os trabalhadores, mas sobre os empresários nacionais, principalmente os não-monopolistas – embora, até mesmo os grupos brasileiros com vocação monopolista não fiquem indenes diante dos grandes monopólios industrial-financeiros imperialistas. Tanto isso é verdade que eles só conseguem sustentar a sua vocação monopolista nos cofres do BNDES, isto é, do Estado.
A adesão de Arendt a essa máfia norte-americana, muito pior do que aquela que declara o seu nome, foi completa na década de 50. Daí a sua colaboração com a CIA, que se estendeu pela década de 60 (cf. Frances Stonor Saunders, “Quem pagou a conta? – A CIA na guerra fria da cultura”, Record, 2008, págs. 129, 373, 444, 445) – e temos razões, como o leitor verá, para duvidar que algum dia essa colaboração tenha se encerrado completamente, apesar de sua oposição à guerra no Vietnã.
Ela, que sempre afetou desapego por bens materiais, parecia especialmente fascinada com os confortos que esse esquema lhe proporcionava. O resto, conferências, discursos, revistas e outras criações originadas em Langley, na Virginia, ela achava “insípido”, “tedioso”, etc., o que era verdade, mas nem por isso ela deixava de comparecer. Hospedada na Villa Serbelloni, um palacete renascentista usado pela CIA à beira do lago de Como, na Itália, de propriedade da Fundação Rockefeller, Arendt escreveu à sua amiga Mary McCarthy: “A sensação é de estar subitamente hospedada numa espécie de Versalhes. O lugar tem 53 criados, incluindo os homens que tomam conta dos jardins. Os funcionários são chefiados por uma espécie de maître, que data dos tempos da ‘principessa’ e tem as feições e os modos de um fidalgo da Florença quatrocentista” (Saunders, pág. 373). A “principessa” mencionada é a ex-proprietária da Villa, princesa della Torre e Tasso – que não era uma princesa italiana legítima, mas a milionária americana Ella Walker.
O extraordinário nessa carta é a data: 22 de agosto de 1972, apenas três anos antes da morte de Arendt e cinco anos depois da revista “Ramparts” e em seguida o “The New York Times” publicarem detalhes do esquema “cultural” da CIA – e de Hannah Arendt garantir, em declaração na “Partisan Review”, assinada com 16 outros intelectuais, que nada sabia do dinheiro da agência e que era contra o “subsídio” (sic) porque “a subvenção regular pela CIA só pode desacreditar, intelectual e moralmente, tais publicações e organizações” (grifo nosso – os signatários, pelo visto, nada tinham contra subvenções da CIA que não fossem “regulares”).
Em 1996, quando Frances Stonor Saunders perguntou a Thomas Braden, ex-chefe da Divisão de Organizações Internacionais (IOD) – o departamento da CIA encarregado de “operações encobertas” com entidades e ONGs – se aqueles que assinaram a declaração da “Partisan Review” sabiam que a CIA estava por trás daquelas benesses, ele “soltou uma gargalhada [e] simplesmente disse: ‘É claro que eles sabiam’” (Saunders, pág. 445).
No caso de Arendt, sabe-se que em 1952 – um ano após a publicação de “As Origens do Totalitarismo” – ela trabalhava com o IRD (Information Research Department – a seção do serviço secreto inglês encarregada de fabricar e plantar notícias em jornais e revistas. V. nosso artigo “Os censos da URSS e a fraude do holocausto ucraniano – parte 3).
No dia 27 de junho de 1952, um agente inglês relatou por escrito a um colega norte-americano que conversara “longamente com Hannah Arendt e a apresentei a um ou dois de nossos especialistas do Ministério das Relações Exteriores, e em consequência disso venho lhe fornecendo muito material de consulta de que ela necessita para seu novo livro” (Saunders, pág. 129).
A função do IRD era falsificar material contra a URSS e os comunistas – o que incluía todo aquele que não rezasse por essa cartilha, até mesmo, por exemplo, Jean Paul Sartre.
Teremos que deixar outra vez para a próxima a (mais ou menos) feliz conclusão deste artigo. Jornal é assim mesmo, leitor. Não se escreve sempre o que se quer. É preciso também caber na página.
4
O livro de Hannah Arendt sobre o julgamento de Eichmann é frequentemente citado, na mídia e em trabalhos acadêmicos, por sua tese a respeito da suposta “banalidade do mal”.
Essa tese não tem a menor importância. Até mesmo porque é apenas uma generalização indevida. O que houve de “banal” naquele julgamento foi Eichmann – não o mal, muito menos o mal que os nazistas perpetraram contra a Humanidade. Como o relato de Arendt mostra, o establishment israelense tentou promover um elemento que nunca passou de um “fichinha” (como se dizia entre os gangsters) a gênio do mal. Com a frustração de tal expectativa, foi inevitável a deprimente sensação de banalidade que o julgamento causou – o que é mais um desserviço que os sionistas prestaram à luta contra o nazi-fascismo.
Para ser justo, até os juízes do tribunal israelense perceberam, quando uma das testemunhas de acusação, um juiz norte-americano que estivera nos julgamentos de Nuremberg, depôs que “Ribbentrop lhe dissera que Hitler teria sido uma boa pessoa se não tivesse sido influenciado por Eichmann”, que as coisas, apesar dos imensos sofrimentos e crimes relatados, ameaçavam escorregar para a galhofa. E respiraram aliviados quando outro norte-americano presente em Nuremberg, o psicólogo Gustave M. Gilbert, contestou o depoimento de seu compatriota, declarando que “Eichmann não era considerado grande coisa pelos grandes criminosos nazistas na época” (Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém”, trad. José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 2ª reimp., 2000, pág. 232).
Mas, então, por que montar tal circo para condenar uma nulidade?
ACUSAÇÃO
Como obra filosófica, “Eichmann em Jerusalém” (1963) é um livro pífio. Porém, lido como reportagem, o que originalmente ele era – Hannah Arendt cobriu o julgamento para a revista “The New Yorker” – é uma obra demolidora sobre o caráter do sionismo. E talvez a autora tenha conseguido escrever essa obra porque, além de conhecer o assunto – ou exatamente por causa disso – não conseguiu se conter.
Certamente, Arendt não percebe toda a política por trás do julgamento – apesar de suas pretensões, política jamais foi o seu forte. Outros autores, vários de origem judaica, inclusive israelenses, já examinaram com muito mais profundidade os motivos políticos da montagem do julgamento (V., em especial, no livro de Nathaniel Braia, “O Apartheid de Israel”, o sintético capítulo “O processo Eichmann: manipulação e catarse”, Alfa-Omega, 2ª ed. rev., 2002, págs. 19-28).
No entanto, algo estranhamente, o pouco entendimento de Arendt sobre a função política do julgamento de Eichmann pelos sionistas – isto é, a política de Ben Gurion, primeiro-ministro israelense – tem o efeito, no livro, de tornar mais contundente o que ela expõe, talvez porque pareça mais absurdo.
A começar pela acusação: a procuradoria, isto é, a representação oficial do Estado israelense no tribunal, recusou-se a acusar Eichmann de crimes contra a Humanidade, como havia acontecido em todos os outros julgamentos de criminosos nazistas anteriores, preferindo acusá-lo de “crimes contra os judeus” (como se estes não fizessem parte da Humanidade, ou, o que é a mesma coisa, como se os crimes contra os judeus não fossem crimes contra a Humanidade – e como se Eichmann não tivesse cometido crimes contra os não-judeus), “porque essa acusação tem por base o que os judeus sofreram, não o que Eichmann fez”. Aliás, o procurador-chefe, Gideon Hausner, declarou que “‘se tivermos que acusar Eichmann também por seus crimes contra não-judeus, isso não ocorrerá porque ele os cometeu, mas porque não fazemos distinções étnicas’” (Arendt, op. cit., pág. 16 – grifo no original).
Portanto, o que menos importava eram os crimes de Eichmann – isto é, a justiça. Ou, como disse e repetiu várias vezes o então primeiro-ministro Ben Gurion: “a punição não é essencial, essencial é que Eichmann seja julgado em Jerusalém”. Mas, quando a punição (ou o “veredicto”, como também disse o primeiro-ministro) não tem importância, os crimes cometidos pelo réu, por mais hediondos que sejam, também deixam de ter importância.
No entanto, Israel violou abertamente as leis internacionais ao raptar Eichmann na Argentina – o que, como diz Arendt, equivalia a uma sentença antes do julgamento: “Em Israel, como na maioria dos países, uma pessoa (…) é considerada inocente até prova em contrário. Mas no caso de Eichmann isso era uma evidente ficção. Se ele não fosse considerado culpado antes de aparecer em Jerusalém, culpado além de toda dúvida, os israelenses jamais teriam ousado, nem desejado, raptá-lo” (Arendt, op. cit., págs. 230-231). O que, nota também ela, Ben Gurion confirmou por escrito, na carta, em que justificou o rapto, ao presidente argentino Arturo Frondizi.
Não se trata aqui de formalismos jurídicos, mas do conteúdo político do julgamento. Poucos se incomodariam caso Eichmann fosse alvo de algum ato de vingança, isto é, de alguma punição extrajudicial. Mas por que o governo de Israel ordenou uma ação do Mossad para trazê-lo a Jerusalém se, como observa o historiador israelense Tom Segev, até então “os israelenses tendiam a ignorar o Holocausto. O Holocausto era um tabu. As pessoas não conversavam sobre ele com seus filhos; os filhos não se atreviam a perguntar. Esse foi um período de grande silêncio. O Holocausto quase não existia” (cf. “Conversation with Tom Segev”, Institute of International Studies, Berkeley, 2004)?
TABU
O nazismo foi derrotado em 1945. Israel foi formado em 1948. No entanto, durante 11, 12, 15 anos o genocídio perpetrado pelos nazistas sobre os judeus foi “tabu” em Israel. Por quê? Outro autor, também de origem judaica, como Arendt e Segev, escreve:
“… os sionistas ainda não tinham chegado a um consenso sobre como lidar com ele [e por isso] o establishment de Israel tinha freado o uso do holocausto (…) na formação de um consenso nacional. (…) Nas escolas, o assunto mais relevante era Israel, sua ‘independência’, o futuro do novo país… No entanto, os sionistas que dirigiam o país pressentiam que faltava algo mais forte, do ponto de vista emocional, que servisse de amálgama para a formação artificial de um sentimento nacional o qual pudesse tornar coesos seres com formações culturais e históricas tão díspares, como o que ocorria com os judeus que chegavam dos quatro cantos do planeta. Depois dos primeiros anos de empolgação com a mal denominada ‘guerra de independência’ e com as ‘vitórias’ na guerra do Sinai, em 1956, a inexistência de laços reais entre judeus do Curdistão e da Hungria, e entre judeus da Tchecoslováquia e da Índia, foi se evidenciando, principalmente à medida que cada grupo nacional percebia as diferenças sociais e econômicas que estavam se configurando. Entre os judeus de origem russa e polonesa, das vizinhanças da efervescente Rua Dizengolf, em Tel Aviv, até os de origem marroquina, nos Taamonim (favela em formação nos arredores de Jerusalém), já havia um fosso intransponível” (Nathaniel Braia, “O Apartheid de Israel”, pág. 20).
Um dos méritos do livro de Hannah Arendt está, precisamente, em revelar por que os sionistas transformaram, durante uma década e meia, o genocídio em tabu. No entanto, ela somente conseguiu fazê-lo porque Eichmann era o nazista mais inadequado para que esse tabu fosse quebrado, pois nenhum outro esteve tão envolvido com os sionistas. Porém, a situação em Israel, provavelmente, era desesperada – ou assim consideravam Ben Gurion e colegas. Além da situação interna, a mencionada invasão do Sinai, em 1956, foi um vexame estrondoso, afastando os EUA do país, quebrando a imagem de Israel diante de outros povos, em especial dos judeus de outras partes do mundo – e, provavelmente, diante da parcela mais consciente dos israelenses, inclusive de parte da base do Partido Trabalhista, que governava o país desde sua formação.
Até 1956, apesar de episódios como o massacre de civis, inclusive crianças, da aldeia palestina de Qibya (outubro de 1953 – “As ordens eram completamente claras: Qibya devia ser um exemplo para todo mundo”, escreveu depois o oficial que comandou a chacina, Ariel Sharon), o Partido Trabalhista sempre conseguira apresentar a sociedade israelense – em especial os kibutzim – como uma alternativa “de esquerda”, “socialista” ou “socializante” para os judeus de todo o mundo. Nem mesmo a política em relação aos palestinos destruíra essa imagem, apesar de provocar protestos inclusive entre os judeus – ainda em 1948, antes de sua conversão à “guerra fria”, a própria Hannah Arendt denunciou o “terrorismo” sobre a população árabe (v. “Frieden oder Waffenstillstand im Nahen Osten?”, na já citada coletânea “Essays und Kommentare 2. Die Krise des Zionismus”, Tiamat, Berlin, 1998) e esteve entre os intelectuais judeus que assinaram carta ao “The New York Times” protestando contra a coleta de fundos que Menachem Begin, naquele momento, fazia para o seu partido nos EUA.
Em 1956, a propaganda ruiu de forma retumbante, quando o presidente Gamal Abdel Nasser nacionalizou o canal de Suez, até então um enclave anglo-francês no Egito, e o exército israelense serviu como horda de conveniência para a Inglaterra e a França, invadindo a península do Sinai até o canal, onde, depois de um bombardeio triplo, paraquedistas ingleses e franceses ocuparam Suez.
O escândalo foi tão extraordinário, o repúdio de todos os países foi tão imenso (até na OTAN houve proposta – aliás, duas – de expulsar a Inglaterra e a França), que Eisenhower fez os EUA juntar-se à URSS num ultimatum – e Israel, a Inglaterra e a França saíram do Egito rapidamente.
CONVERSÃO
A cúpula israelense sabia, havia muito, que Eichmann estava em Buenos Aires. Além de ter sido diretamente informada nos anos 50 por, pelo menos, duas fontes (Simon Wiesenthal e Lothar Hermann, argentino de origem judaica, que, quando prisioneiro em Dachau, conhecera Eichmann, e o reencontrara em Buenos Aires como… pai do namorado de sua filha), ele fazia muito pouco para esconder sua identidade. Eichmann era, na comunidade alemã da capital argentina, um contumaz contador de vantagens sobre seu papel durante a guerra. Dizia, frequentemente, até mesmo, que queria ser julgado pelos israelenses. A julgar por sua conduta, e sem perder tempo com as motivações, parece que queria mesmo. Havia registrado o filho na Argentina como Ricardo Francisco Eichmann e sua mulher sempre usou o nome de casada. Eichmann até mesmo concedeu uma entrevista – ao traidor nazista holandês Willem Sassen, depois assessor de Stroessner e Pinochet – que foi publicada na “Life”.
No entanto, o governo israelense permaneceu impassível durante toda a década de 50. E nada indica que tenha sido para colaborar com os norte-americanos, que, depois de localizar Eichmann, resolveram ignorar a sua existência para acobertar Hans Globke, principal articulador político do primeiro-ministro da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer – e contato entre a CIA e os “ex” nazistas. Globke servira com Eichmann no “departamento de assuntos judaicos” nazista.
Mas, quando a situação interna e externa de Israel tornou-se crítica – não havia nem uma guerra para distrair a atenção do povo – os sionistas resolveram julgar Eichmann.
Como Arendt descreve, Eichmann era quase um oligofrênico, elemento de baixíssima inteligência, que não havia conseguido completar o ensino médio e era incapaz de usar a própria língua natal exceto pauperrimamente, tanto em vocabulário quanto em sintaxe, demonstrando em tudo um raciocínio absolutamente rasteiro. Até nas SS, não conseguira passar do quinto posto (SS-Obersturmbannführer) entre os oficiais, numa hierarquia de 23 níveis. Aliás, um de seus desgostos era não ter chegado a SS-Standartenführer (mais ou menos o equivalente a coronel). Na verdade, foi afastado de todas as funções antes do final da guerra (Arendt, pág. 255).
Eichmann merecia julgamento e sentença – inclusive a pena de morte – por seus crimes. Mas o que o livro de Arendt revela é que sua fama inicial como “especialista em questões judaicas” entre os nazistas surgiu após sua leitura de “O Estado Judeu”, de Theodor Herzl, o livro básico do sionismo, “que converteu Eichmann ao sionismo, imediata e definitivamente” (Arendt, pág. 53). Seu ódio estaria voltado contra os judeus não sionistas, aqueles que se integravam na cultura e nos povos dos países em que viviam.
Esses eram a parcela cultural e cientificamente mais importante entre os judeus, desde Uriel Acosta e Spinoza, no século XVII, ao proletariado judeu da primeira metade do século XX, passando por Marx, Freud, Mahler, Einstein, Zweig, e milhares de outros, para quem o sionismo não era apenas uma ideia estranha, mas uma tentativa de fazer os judeus retrocederem aos preconceitos e à superstição religiosa – o fato de Israel, até hoje, ser um Estado religioso demonstra que eles não estavam errados.
Assim, até 1942, quando Hitler decidiu que o extermínio era a “solução final”, a política nazista foi a de estimular o sionismo entre os judeus. Eichmann contribuiu para isso com a propaganda do sionismo – por alguma esquisita razão, ele, que nunca antes lera um livro, achou genial os escritos de Herzl. Mas, realmente, o sionismo correspondia à política nazista de “limpar” a Alemanha de judeus. Daí o sucesso de Eichmann, durante algum tempo.
O problema é que, se desde o início o sionismo significava não resistir ao nazismo (para que, se o sionismo assumia que os judeus alemães eram estrangeiros na Alemanha?), transformou-se rapidamente em colaboracionismo – e pior ainda quando começaram as deportações para os campos de extermínio (além do livro de Hannah Arendt, aconselhamos ao leitor que estiver interessado nesses acontecimentos a leitura do livro de Nathaniel Braia, que já citamos: “O Apartheid de Israel”, editado pela Alfa-Omega).
O genocídio teria, portanto, que se tornar um tabu para os sionistas após a guerra – até que, depois de conduzir Israel a uma situação crítica, perderam completamente essa última inibição.
RESCALDO
Quando tentamos pela primeira vez escrever algo sobre a suposta base “filosófica” das esferas e espaços “públicos” que os tucanos importaram de outras plagas, uma das coisas que nos fizeram adiar a intenção foram as agressões contra Hannah Arendt por conta de “Eichmann em Jerusalém”. Afinal, ela havia feito algo de bom – e de importante – ao escrever este livro. Certos fatos que foram atirados contra ela – basicamente o seu relacionamento com Heidegger – revelam debilidades que vão além do puramente pessoal, mas já eram conhecidos antes da publicação do livro. No entanto, somente então alguns indivíduos lembraram-se de assacá-los – e ao modo imundo da imprensa marrom.
Tudo isso é repugnante, “mas não podemos permitir”, como já se disse, “que uma reflexão como esta nos induza a pôr de lado a verdade (…); além disso, pode-se esperar que o esclarecimento de um conjunto de fatos nos traga um ganho em conhecimento” (Sigmund Freud, “Moisés e o Monoteísmo”, 1939, Ed. St. XXIII).
Por isso, resta-nos terminar este artigo com um pequeno rescaldo.
Arendt sempre teve o bom senso de não se dizer marxista, se bem que isso não a conduziu a ficar longe do marxismo. Naturalmente, a adesão ao lado imperialista durante a “guerra fria” não teria efeitos agradáveis se não fosse uma adesão antimarxista, ou seja, anticomunista.
Mas houve época em que considerou Marx uma grande figura da cultura alemã e universal. Depois, mudou de opinião:
“O que Marx não compreendeu – e em seu tempo seria impossível compreender – é que os germes da sociedade comunística estavam presentes na realidade de um lar com dimensões de nação, e o que impedia o completo desenvolvimento de tais germes não era qualquer interesse de classe como tal, mas somente a já obsoleta estrutura monárquica do estado-nação. Obviamente (sic), o que impedia que a sociedade funcionasse suavemente eram apenas certos resquícios tradicionais que interferiam e ainda influenciavam a conduta de classes ‘atrasadas’” (Arendt, “A Condição Humana”, Ed. cit., pág. 54 – grifos nossos).
Marx não enxergou (ela tem a delicadeza de acrescentar: “em seu tempo seria impossível”) o óbvio (sic): para uma nação “funcionar suavemente”, basta acabar com o Estado-nação (pois o que ela chama de “estrutura monárquica do estado-nação” é o próprio Estado-nação), isto é, acabar com o Estado nacional… e com “apenas” certos “resquícios tradicionais” – em suma, para que tudo andasse bem, Karl Marx só tinha de convencer o Rothschild a não amealhar o dinheiro dos outros, o Krupp a não escalpelar os trabalhadores do Ruhr e o Lesseps a não especular com papéis do canal do Panamá. Realmente, é de se perguntar como é que Marx não compreendeu coisa tão evidente…
Porém, ela ainda estava longe de chegar ao final dessa viela. Cinco anos depois, em “Sobre a Revolução”, iria dizer que Marx produziu a “doutrina politicamente mais danosa da idade moderna, ou seja, que a vida é o bem supremo e que o processo vital da sociedade é o próprio centro de todo o esforço humano”.
Nós não necessitamos de esforço polêmico diante dessa confissão de que a vida, isto é, a vida em sociedade, a vida da espécie humana, a vida humana, para ela, não era (ou não tem que ser) “o bem supremo”. Naturalmente, não era ao lado da vida que ela tinha aderido – logo, apenas era capaz de repetir Heidegger, que define o homem como “um ser que vive para a morte”.
Assim se explica que ela não considere o pensamento como distintivo da espécie humana, mas a “ação” – porque para ela a “ação” não é a realização do pensamento, a transformação deste em atos e objetos concretos, mas a mera expressão, aliás, verbal, da “pluralidade”, isto é, de diferenças intrínsecas que separam os seres humanos, e não do que é comum a eles – e os unem.
Se o leitor notou a parecença com a aldrabice tucana no Brasil, damo-nos por satisfeitos. Se não, haverá outras oportunidades de demonstrá-lo, paciente leitor. Mas, convenhamos, já basta. Pelo menos, por enquanto.