“O serviço de juros da dívida pública brasileira continua sendo uma anomalia, fora do padrão internacional. E esse é o “nó górdio” da questão fiscal que o recém-instalado governo Lula vai ter que desatar: controlar o gasto catastrófico com juros”, diz o pesquisador do Ipea Luís Carlos Magalhães
Reproduzimos, na sequência, o artigo de Luís Carlos G. de Magalhães, técnico de Pesquisa e Planejamento do Ipea, publicado no Valor Econômico nesta quarta-feira (1).
JUROS, OUTRA VEZ E NOVAMENTE
LUÍS CARLOS G. DE MAGALHÃES*
Em artigo recente, André Lara Rezende (Valor, 26/12) defende que existe uma despesa pública “ausente” no debate fiscal brasileiro: o serviço de juros e seu impacto na trajetória da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi). No final de 2022, essa métrica da dívida pública – que expressa o estoque de títulos federais em mercado – respondia por 69,57% da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG). Por sua vez, a DBGG é o indicador de endividamento público adotado pelo mercado financeiro para monitorar a sustentabilidade da dívida pública.
Portanto, é importante analisar, ainda que brevemente, os determinantes da dinâmica DPMFi para compreender que um ajuste fiscal baseado somente na compressão dos gastos primário é insuficiente – se não for considerado o componente financeiro decorrente do serviço de juros. Por prudência, optamos por examinar a evolução da DPMFi entre 2011 e 2019, em razão das diversas medidas fiscais implementadas a partir de 2020 para combater efeitos econômicos da pandemia de covid-19. Como se sabe, as finanças públicas são pródigas em apresentar “esqueletos” inesperados.
Os Relatórios da Dívida Pública do Tesouro Nacional apontam um aumento contínuo do estoque da DPMFi, passando de R$ 1,603,9 para R$ 3,728 bilhões entre 2011 e 2019. Isso representa, em termos nominais, uma variação de 132,6% – contra uma inflação acumulada de 66,4% no período, medida pelo IPCA. Vale destacar que o estoque da DPMFi cresceu mesmo nos anos em que houve maior montante de resgastes do que emissões de títulos. A razão disso é que o serviço de juros da DPMFi sempre superou o saldo positivo de resgates menos emissões. O acréscimo de R$ 2,125 bilhões no estoque da DPMFi decorreu do saldo líquido dos juros apropriados – juros reais e correção monetária – pelo carregamento de títulos federais em carteira no mercado.
Desse modo, a dinâmica de crescimento da DPMFi ocorreu pela incorporação do serviço de juros nominais, inclusive quando se apurou superávit primário corrente no período. É evidente que a reversão dos superávits primários, a partir de 2014, impactou negativamente a dinâmica de crescimento da DPMFi. No entanto, mesmo com déficit primário, foi possível observar resgate líquido positivo com uso dos recursos da Conta Única em 2016 e 2018.
Na análise dos relatórios do Tesouro Nacional, chama atenção o crescimento quase ininterrupto das disponibilidades da Conta Única, entre 2011 e 2019 (com exceção de 2014). Os depósitos passam de R$ 475,6 milhões para R$ 1,438 bilhão, o que significa um crescimento nominal de 202% no mesmo período, muito superior à variação do IPCA e mesmo da DPMFi. A Conta Única se expandiu, inclusive, nos anos em que se apurou déficit primário. E a questão que se coloca é: por que não se utilizou maior volume de recursos da Conta Única para acelerar o resgate de títulos?
A explicação plausível é que acelerar o resgate de títulos implica aumentar a liquidez da economia. A expansão da liquidez dificulta atingir a taxa Selic necessária para as expectativas convergirem para a meta de inflação, em um contexto de relativa ineficiência da política monetária e da convenção conservadora sobre os juros que vigora no mercado financeiro. Portanto, o resgate de uma quantidade maior de títulos da DPMFi resulta na expansão das operações compromissadas, que têm prazo médio mais curto e remuneração praticamente idêntica a uma Letra Financeira do Tesouro (LFT), título indexado pela taxa Selic.
Como consequência, temos que a gestão da liquidez – na presença de uma taxa Selic estruturalmente elevada – representa uma trava para uma política mais agressiva de resgates de títulos da DPMFi, pois dificulta a gestão das reservas bancárias por parte do Banco Central. Isso ocasiona problemas adicionais, no caso brasileiro, de coordenação entre a política monetária e fiscal, em razão do trade-off entre os custos financeiros e o encurtamento de prazos no resgate da dívida pública, por meio da expansão das operações compromissadas. De qualquer forma, o aspecto relevante é que esses fatores condicionantes do crescimento da DPMFi – e, portanto, da DBGG – não têm a ver com a evolução das despesas primárias.
Sempre se pode argumentar que o componente financeiro do problema fiscal brasileiro decorre do próprio crescimento descontrolado das despesas primárias. Essa “gastança” exigiria o pagamento de juros maiores para os agentes privados que financiam a DPMFi. Entretanto, esse argumento é questionável, pois houve períodos em que se observou, superávits primários sistemáticos – ainda assim a taxa Selic permaneceu suficientemente elevada para o serviço de juros continuar pressionando o crescimento da DBGG.
Ademais, países que passaram por sérios problemas fiscais por causa da crise de 2008 apresentaram serviço de juros muito menor. A Grécia, por exemplo, incorria num serviço de juros líquidos de 2,74% para uma DBGG de 185,61% do PIB em 2019. Para o Brasil, os mesmos indicadores eram de 4,27 % e de 88,94%, respectivamente, no mesmo ano. O que surpreende ainda mais é que a taxa Selic média atingiu 4,4% ao ano em 2019, o menor valor da série histórica, e mesmo assim o serviço de juros continuou pesando desproporcionalmente mais no Brasil.
Enfim, o serviço de juros da dívida pública brasileira continua sendo uma anomalia, fora do padrão internacional. E esse é o “nó górdio” da questão fiscal que o recém-instalado governo Lula vai ter que desatar: controlar o gasto catastrófico com juros. Essa tarefa vai exigir uma agenda de reformas complicadas – em razão dos grupos de interesse envolvidos – que altere o arranjo institucional da gestão da dívida pública e sua governança. Mas é inadiável que essa agenda de reformas esteja presente no debate público, pois são necessárias para que o Brasil escape da armadilha do baixo de crescimento.
Luís Carlos G. de Magalhães é técnico de Pesquisa e Planejamento do Ipea. As opiniões expressas aqui não representam a da instituição que o autor é filiado