SIDNEI SCHNEIDER
Raízes
O Sr. Agudá veio ao Brasil em busca de suas raízes. Trineto de escravos brasileiros que retornaram à África depois da abolição da escravatura, recebeu aqui a alcunha, em referência a como lá são chamados. Quando aportou em Santos, esperava-o uma comissão de insignes pesquisadores negros com os quais se correspondia. Naquela tarde, um dos amigos, estudioso dos agudás, pespegou-lhe o apelido. De tal modo este se associou a sua pessoa, que preferiu omitir para sempre o seu verdadeiro nome. Ao chegar, celebrou a travessia:
– Finalmente, na terra dos ancestrais!
Jornal
“Este diário está cada vez melhor”, disse o Sr. Clemêncio. “Assim, daqui a pouco, não vai existir quem não o queira ler”, completou com a sua característica forma enviesada de falar. Um jornalista informava que digitara sua crônica na mesa de um luxuoso café de Copenhagen. Recomendava aos leitores de passagem por Copenhagen, que visitassem exatamente o mesmo café, na rua tal do charmoso centro antigo. E sugeria que era imprescindível levar uma garrafa de vinho Brebebé, que podia ser adquirida em Paris por módica fortuna, bastava planejar o roteiro e anotar o endereço. O Sr. Clemêncio disse ter apenas uma pergunta: “Quantos brasileiros ele acha que irão lá? Escreve apenas para emular inveja? Pensa mesmo que nos esnoba? Acredita que seja relevante? Ou se alugou pelo café e a garrafa? ”
Contestado, o Sr. Clemêncio garantiu que era uma pergunta só.
Dúvidas
Quando sentia dúvidas acerca da melhor posição a assumir, o Sr. Agudá consultava o mais sábio dos seus amigos, geralmente o mais velho entre eles, seguindo longa tradição de sua cultura. Este amigo era o Sr. Arguí, liderança experiente de carapinha branca, voz calma e pele vincada.
O Sr. Agudá queria saber por que no Brasil, país que o recebera, ainda havia tanto subdesenvolvimento e racismo? Queria combater ao lado dos brasileiros as representações políticas atrasadas, mas precisava definir quem era o inimigo principal a ser isolado e vencido, para mais facilmente fazer avançar o conjunto: o povo branco em geral, os setores médios, os empresários nacionais ou o chamado capital financeiro, os bancos e cartéis internacionais e locais? Entendia o Benin, país de onde viera, mas não totalmente o Brasil.
Depois de refletir, o Sr. Arguí respondeu, conforme era do seu costume, fazendo novas perguntas:
– Temos que combater a coisa quando e com quem ela se dá, mas quem mais lucra com a divisão do povo? Ao final de muito passa e repassa, quem recolhe o resultado do esforço de todos? A quem mais interessa jogar ou manter uma parte do povo contra a outra? A persistência do racismo não seria também consequência de outra dominação, mais atual e profunda, que explora, impede e estrangula nossa gente?
Da beleza
O Sr. Clemêncio passeava pelo parque, quando percebeu uma jovem mulher sentada em frente ao espelho d’água. Ela usava um brinco minúsculo no nariz, o que acentuava o delicado porte. Alguns rapazes, entre os que andavam por ali, viravam o rosto em sua direção. O Sr. Clemêncio esteve a ponto de concordar que era muito bonita, mas resolveu suspender seu julgamento, pois não a conhecia. Estabeleceu, pelo menos, que ela devia se achar bonita. Que sabia muito bem disso, em função do olhar dos rapazes.
Ao retornar pelo mesmo caminho, o Sr. Clemêncio viu uma criança jogar algo no espelho d’água. Antes que afundasse, a pedrinha quicou três vezes sobre a superfície. Ele percebeu que o gesto e as três ondas que se abriam feito olhos a deixaram extasiada. Era bonito de ver, ela devia ter gostado muito do que obteve. Uma voz severa, no entanto, contraiu a beleza da sua expressão:
– Que é isso, menina? Jogando coisas na água, o que vão pensar de ti? – dizia a mulher do brinco delicado, enquanto pegava a criança pela mão e a arrastava para longe.
O Sr. Clemêncio congratulou-se por ter postergado sua decisão.
Mágica
Após ouvir longa exposição de um amigo, repleta de denúncias contundentes e verídicas, que concluía afirmando ser o branco o principal inimigo da população negra, o Sr. Agudá ergueu o braço e perguntou:
– E se amanhã, num passe de mágica, acabasse o preconceito e a discriminação, os negros pobres teriam mais chances de melhorar de vida do que os brancos pobres?
O Sr. Clemêncio, também presente, achou oportuna a colocação do Sr. Agudá e defendeu que os grandes líderes negros do último século não se eximiram da luta mais profunda, enfrentaram o colonialismo e o imperialismo buscando, ativamente, trazer para o seu lado todos os que estivessem minimamente dispostos a somar forças, e finalizou dizendo que hoje o principal inimigo era o império financeiro norte-americano e suas adjacências.
Diante disso, o Sr. Agudá formulou nova pergunta:
– E se amanhã, num passe de mágica, terminasse essa dominação, mas nada se fizesse contra o preconceito e a discriminação, o império financeiro não voltaria a dominar no dia seguinte?
Como o interlocutor nada objetava, o Sr. Agudá arrematou:
– Não há passes de mágica.
Povo
O Sr. Clemêncio foi vivamente questionado pelo fato de abordar aspectos da cultura e das lutas do povo negro, índio e imigrante, não sendo ele nem negro, nem índio, nem imigrante. Alguns do auditório o consideravam progressista, pois não podiam negar o que tinha feito na luta contra a ditadura e o entreguismo subsequente, mas perguntavam se, em relação a esses temas, ele não tinha medo de errar, se estava posicionado em lugar apto a exercer fala, se não etc, etc, muitos etc. Em resposta, o Sr. Clemêncio disse que todo o povo brasileiro deve manifestar, cada vez mais, sua própria e sonora voz, e que se alegrava quando percebia que isso acontecia, e era também o que modestamente tentava fazer. Considerava, igualmente, que todo indivíduo era capaz de revelar aspectos de vida que só a sua experiência comportava, citando como exemplo o seu amigo Agudá, o qual estava ausente nesse dia, mas que todos ali conheciam. Então, após um rápido silêncio, completou:
– Num país como o Brasil, quem não trata dos temas do povo, é porque não se sente integrado a ele. E o erro e a imprecisão podem estar em qualquer lugar. Não há julgamentos a priori, é preciso examinar as posições. E não em abstrato, mas ante os fatos e a realidade.
Algumas pessoas aplaudiram, outras ficaram em silêncio.
O Sr. Agudá apareceu enquadrado pela luminosidade da porta. Olhava para os lados com grande interesse, tentando presumir o que o seu amigo, como de praxe, acabara de revelar.
Detalhes
O Sr. Agudá, já naturalizado brasileiro, recebeu convite de uma amiga, militante do movimento negro, para o lançamento de uma candidatura negra às eleições legislativas daquele ano. O evento se daria num bar chamado Ghetto Club. Amplamente favorável à representação política do povo e considerando esta luta também sua, o Sr. Agudá murmurou:
– Não pretendo desperdiçar meu voto, terei que encontrar outro candidato.
***
Serviço: Sr. Clemêncio e Sr. Agudá é um capítulo de À linha d’água do rio, livro de minicontos, poemas em prosa, observações crônicas e pequenas ficções, em processo de finalização.