
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), cassou as decisões da 3ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus, que censuraram reportagens do jornal O Globo sobre inconsistências e suspeitas de fraude em um ensaio clínico da proxalutamida.
“Na presente reclamação, entendo que a veiculação das matérias jornalísticas ocorreu dentro de parâmetros normais, de modo que a ordem judicial reclamada se afigura injustificável à luz do direito fundamental à liberdade de expressão e de imprensa”, argumentou o ministro.
O ensaio clínico envolvendo o medicamento, que não tem eficácia comprovada para o tratamento de pessoas diagnosticadas com a Covid-19, foi patrocinado pela rede privada de hospitais Samel.
Com as decisões proferidas pelo juiz de Manaus Manuel Amaro Lima, da Justiça de Manaus, a empresa e seu dono tinham obtido liminarmente o direito de resposta às reportagens veiculadas no blog da jornalista Malu Gaspar e a remoção dos textos.
A Justiça determinou inicialmente que o jornal retirasse três reportagens do ar e depois, atendendo novo pedido dos autores, determinou a despublicação de outras matérias e a publicação de um direito de resposta da Samel.
Proibiu ainda o jornal de publicar qualquer outro material associando o nome e imagem da Samel a fatos atinentes à medicação proxalutamida. O jornal acatou a decisão judicial. Depois, em nova decisão, o juiz acolheu um novo pedido da empresa e determinou que o jornal publicasse a nota de direito de resposta pela segunda vez e aplicou multa de R$ 210 mil.
As reportagens do jornal sobre a proxalutamida foram baseadas em investigação independente conduzida pelo repórter Johanns Eller a partir de documentos públicos divulgados pela própria equipe de estudiosos.
As denúncias contidas nas reportagens originaram a abertura de uma investigação pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), um inquérito civil público e de um procedimento criminal no Ministério Público Federal do Amazonas, que ainda estão em andamento.
As ilegalidades apontadas foram publicadas em revistas científicas, como a “Science” e agências de notícias internacionais, BBC e Reuters.
A proxalutamida é um bloqueador hormonal sintético desenvolvido na China, que vinha sendo testado contra o câncer de próstata. Nunca foi usado em escala comercial e ainda não tem eficácia comprovada contra nenhuma doença.
Em 2 de setembro, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu suspender a importação e o uso da substância proxalutamida no Brasil, em uma decisão unânime da diretoria tomada.
O produto foi exaltado por Bolsonaro e seus filhos como um novo remédio supostamente milagroso contra a Covid-19.
Em outubro, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) considerou a denúncia de 200 mortes de voluntários de pesquisa clínica com a proxalutamida feita no Amazonas uma violação aos direitos humanos e uma das infrações éticas mais graves e sérias da história da América Latina.
“É ética e legalmente repreensível, conforme consta do ofício da Conep, que os pesquisadores ocultem e alterem indevidamente informações sobre os centros de pesquisa, participantes, número de voluntários e critérios de inclusão, pacientes falecidos, entre outros”, diz comunicado.
A declaração foi divulgada por meio da Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética-Unesco) e se refere à denúncia feita pela Conep à Procuradoria-Geral da República em setembro.
“Qualquer alteração em um protocolo de pesquisa deve ser aprovada pelo sistema de ética em pesquisa local”, continua o texto.
“É urgente que, em caso de irregularidades comprovadas, todos os atores sejam responsabilizados, não só de forma ética mas também legalmente, incluindo as equipes de investigação, as instituições e patrocinadores responsáveis, nacionais e estrangeiros”.
“É urgente identificar as causas das mortes ocorridas durante os estudos. É inaceitável que esses tipos de eventos, se verificados, estejam acontecendo no ano de 2021”, conclui.