Ministro disse que apesar de indígenas sofrerem esbulho de suas terras, marco temporal deve “conciliar interesses”. Julgamento foi suspenso depois de pedido de vista de Alexandre de Moraes
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Kassio Nunes Marques, abriu divergência com o relator, Edson Fachin, e votou para reafirmar o marco temporal na demarcação de terras indígenas. O julgamento foi novamente suspenso após o pedido de vista realizado pelo ministro Alexandre de Morais.
Em um posicionamento que se alinha aos interesses do Palácio do Planalto, o ministro indicado por Bolsonaro defendeu que estabelecer a tese do marco temporal como parâmetro para as demarcações indígenas, mesmo reconhecendo que os indígenas tiveram sofreram o esbulho de suas terras, é a melhor forma de “conciliar os interesses” com os que disputam as áreas. O argumento do ministro corrobora a tese de que indígenas só poderão requisitar o direito às áreas que estavam ocupadas por eles no ano de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Na avaliação de Nunes Marques, a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas, entre outros pontos, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas essa proteção constitucional depende do marco temporal. Segundo ele, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial, sendo necessária a comprovação de que a área estava ocupada na data da promulgação da Constituição ou que tenha sido objeto de esbulho, ou seja, que os indígenas tenham sido expulsos em decorrência de conflito pela posse.
No primeiro voto do julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, processo que envolve um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Santa Catarina, contra a comunidade Xokleng da Terra Indígena (TI) Ibirama-Lã Klãnõ, também habitada por comunidades guarani e kaingang, o ministro Edson Fachin se colocou favorável aos direitos constitucionais indígenas e contrário à tese do marco temporal.
O caso ganhou status de repercussão geral no Supremo e terá efeitos para as demarcações de terras indígenas de todo o país.
No caso específico dos Xokleng, Nunes Marques votou pelo desprovimento do recurso, ou seja, votou pela anulação da demarcação da terra indígena e a favor da reintegração de posse movida pelo estado de Santa Catarina. O argumento de Marques é de que as comunidades não ocupavam as áreas reivindicadas em 1988. Embora anteriormente em seu voto tenha reconhecido que os Xokleng tiveram suas terras esbulhadas, demonstrando ser contraditório seu argumento.
Nunes Marques apresentou tese a favor do marco temporal como forma de “conciliar interesses”. Segundo a interpretação, os direitos territoriais dos povos indígenas estariam restritos àquelas áreas que estivessem em sua posse ou disputadas judicialmente até 5 de outubro de 1988, ignorando, e ao mesmo tempo legitimando, o histórico de expulsões e violências sofridas pelos povos indígenas antes da data.
Nunes Marques reconheceu que a tese significaria anistiar esbulhos ocorridos antes da data de promulgação da Constituição Federal.
“A teoria do fato indígena, que embasa o posicionamento do STF no caso já referido [caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol], é a que melhor concilia os interesses em jogo na questão indígena. Por um lado, admite-se que os índios remanescentes em 1988 e suas gerações posteriores têm direito à posse de suas terras tradicionais, para que possam desenvolver livremente seu modo de vida. Por outro, procura-se anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, e já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica”, declarou Nunes Marques.
Seguindo o mesmo roteiro de setores ruralistas e do agronegócio, o voto de Nunes Marques repetiu as condicionantes utilizadas na votação do caso da Terra Indígenas Raposa Serra do Sol. A decisão do STF de uma década atrás estabeleceu 19 condicionantes, mas sem efeitos para as demarcações de outras Terras Indígenas.
Além do marco temporal, Nunes Marques votou por vedar a ampliação de terras indígenas, o que restringe os direitos territoriais das comunidades que tiveram suas terras demarcadas fora dos parâmetros estabelecidos pela Constituição de 1988.
No sentido contrário do que apontam todos os estudos sobre a preservação das florestas nos territórios indígenas, o ministro considerou ainda a incompatibilidade das demarcações de terras sobrepostas com áreas de preservação, considerando que deve prevalecer a administração dos parques e unidades de conservação sobre as terras indígenas.
“Ouvindo o voto do ministro Nunes Marques, não vi nada de novo. Vi apenas um ministro repetindo os velhos argumentos dos ruralistas. Pareceu-me um copia e cola, das petições dos fazendeiros. Nunes Marques conhece que o direito indígena é imprescritível, mas aplica o marco temporal, anistiando os crimes perpetrados contra os povos indígenas. Voto Teratológico!”, comentou o coordenador jurídico da Apib, Eloy Terena.
Voto de Marques não surpreende indígenas
“Os argumentos do Nunes Marques não inovaram em nada, foi um voto que não nos surpreendeu. Ele trouxe basicamente os argumentos que os ruralistas defendem. Ele desconsidera o indigenato, traz o indigenato como um instituto defasado, que traz insegurança jurídica, e defende a tese do marco temporal”, avalia a advogada Samara Pataxó, da assessoria jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“Quem deu a terra para nós foi deus, não o homem. Estamos a 500 anos lutando e vamos seguir lutando. Nossa luta não é só para o povo Xokleng, é para todos os povos indígenas, para a sociedade brasileira e para o mundo”, afirmou Brasílio Priprá, liderança do povo Xokleng.
Na tarde desta quarta-feira (15), cerca de 150 lideranças indígenas acompanharam a sessão em frente ao STF, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Após a interrupção do julgamento, prometeram dar continuidade à mobilização, que já dura quatro semanas e reuniu mais de 6 mil indígenas na capital federal, além das diversas manifestações realizadas nos territórios e em todas as regiões do país.
“É um processo doloroso, cansativo, mas assim como a gente acredita em Topé, Nhanderu, temos que continuar acreditando que dali do Supremo saiam os votos necessários para garantir nossos direitos”, afirma Kretã Kaingang, que integra a coordenação da Apib.
Continuidade
Depois de devolvido por Alexandre de Moraes, o processo precisa ser recolocado na pauta pelo presidente da Corte, Luiz Fux. O regimento interno do STF estabelece um prazo de 30 dias para a devolução do processo sob vista, prorrogável por mais 30. A Corte, contudo, não prevê sanções em caso de descumprimento do prazo, e é comum que ele seja estendido para além desse período. Quando for reiniciado, o julgamento deve retornar com o voto de Moraes, que será seguido pelos outros oito ministros e ministras, do mais novo na Corte ao decano, Gilmar Mendes. O último a votar é o presidente do STF, Luiz Fux.