Por 27,4% dos votos válidos a 24,0%, o presidente francês Emmanuel Macron se vê diante de um cenário difícil no qual vai enfrentar a candidata do Rally Nacional (RN), ex-Frente Nacional, Marine Le Pen.
O terceiro colocado nas eleições de domingo (10), Jean-Luc Mélenchon, alcançou 21,6%. Na eleição de 2017, esses números haviam sido, 24,0% para Macron, 21,3% Le Pen e 19,6% Mélenchon.
Macron e Le Pen disputarão o segundo turno dentro de duas semanas, no domingo dia 24. O comparecimento às urnas foi de 73,7%.
Literalmente, Mélenchon, candidato do partido França Insubmissa, legenda de esquerda, sucumbiu na beira da praia de novo, a pouca distância de Le Pen.
No primeiro turno, o que chegou a ser uma diferença de 12 pontos percentuais nas pesquisas encolheu para menos de quatro pontos percentuais, quando Le Pen, deixando mais de lado seus temas habituais, como imigração, Islã e segurança, focou na denúncia da carestia, em razão da alta do gás e combustível bem como dos alimentos, enquanto visitava vilas e cidades chamando Macron de “presidente dos ricos”.
Assim, a deterioração das condições de vida na França – como ‘dano colateral’ das sanções desencadeadas pelos EUA contra a Rússia e endossadas pelo bloco europeu, diante da operação militar especial para ‘desmilitarizar e desnazificar’ a Ucrânia, – é o pano de fundo das eleições na segunda maior economia da Europa.
Em suma, uma eleição sob os tremores sísmicos na Europa, devido à recusa da Rússia de se sujeitar à expansão da Otan até à Ucrânia e, ainda pior, com o regime de Kiev de forte componente neonazista disposto a dar uma ‘solução final’ aos russos, para impor seu delírio de uma “Ucrânia racialmente pura” e sem ‘moscovitas’.
Enquanto Macron posava de estadista em reuniões e telefonemas com o presidente Putin, ao mesmo tempo em que seus ministros ameaçavam a Rússia com a “guerra total”, os outros candidatos a presidente, que inicialmente buscaram manter distância da crise na Ucrânia, passaram, após a provocação em Bucha, sob intensa pressão da mídia da Otan, a endossar a culpabilização da Rússia antes de qualquer investigação. Os mais afoitos deles, Mélenchon, Hidalgo, Pécresse e Jadot.
PELO CAMINHO
O xenófobo renitente Eric Zemmour, várias vezes indiciado por incitação ao ódio racial e religioso, que chegara a ameaçar Le Pen pela direita, pelo frenesi anti-islâmico, e visto como o ‘Trump francês’, desmilinguiu-se e ficou nos 7%.
Reeditando 2017, quase sumiram nas urnas três dos mais tradicionais partidos franceses. A socialista e ex-prefeita de Paris, Anne Hidalgo, com 1,8%, ficou em 10º entre 12 candidatos. A candidata do gaullismo, sob a fachada dos Republicanos, Valérie Pécresse, ficou com 4,8%.
Os verdes, com Yannic Jadot, chegaram a 4,5%. O candidato comunista, Fabien Roussel, contentou-se com 2,4%. Foi Roussel que disse que “Macron promete mais cinco anos de infortúnio para o mundo do trabalho. Cinco anos de reformas antipopulares. Cinco anos de serviços públicos ainda mais degradados”.
DISPUTA MAIS ACIRRADA?
Analistas advertiram que o confronto entre Macron e Le Pen poderá ser muito mais acirrado do que em 2017, quando o atual presidente a derrotou com 66% dos votos. Pesquisas recentes colocaram Le Pen apenas 3 pontos abaixo de Macron no segundo turno – dentro da margem de erro – e uma das enquetes até a registrou batendo o atual presidente por 50,5% a 49,5%.
Em favor de Macron, conta o fato de que a grande maioria dos oponentes derrotados no primeiro turno, em nome do antifascismo, de forma mais ou menos explícita declararam apoio para derrotar Le Pen, enquanto apenas dois o fizeram em relação à líder do Rally Nacional.
No primeiro caso, estão gaullistas, socialistas, comunistas, verdes e outros agrupamentos menores. O França Insubmissa anunciou que vai consultar as bases, mas em seu discurso do resultado das urnas, Mélenchon instou a “nenhum voto para a sra. Le Pen”.
Nos últimos dias antes do primeiro turno, sob os golpes de Le Pen denunciando a inflação galopante, Macron a acusou de “mentir para as pessoas” e apontou sua “«complacência» com a Rússia no contexto da crise ucraniana.
A candidata Valérie Pécresse, prevendo que uma eventual eleição de Le Pen levaria à “discordância, impotência e fracasso” internamente e ao desaparecimento da França “do cenário europeu e internacional”, anunciou que iria votar em Macron para “evitar o caos”.
CONTORCIONISMOS
Em um breve discurso no final da noite de domingo, Macron afirmou que construiria um “grande movimento de unidade”, reunindo o povo francês “para bloquear o caminho da extrema direita”. Ele afirmou: “Estou pronto para inventar algo novo para reunir diferentes convicções e sensibilidades para construir com elas uma ação comum a serviço de nossa nação nos próximos anos. Está em nosso poder.”
Por sua vez, Le Pen se dirigiu aos franceses se dizendo pronta para encabeçar um ‘governo popular e democrático’ (sic) e chamou a uma aliança “todos contra Macron”, juntando os eleitores “da direita, da esquerda, de outros lugares, de todas as origens”.
Diante de duas alternativas tóxicas como Macron e Le Pen, resta ver por onde se decidirá o eleitorado francês. Disputando a presidência pela terceira vez, depois de maquiar alguns dos aspectos mais aberrantes do partido fundado por seu pai, paulatinamente Le Pen passa a ser vista como parte – embora incômoda – do establishment político francês, ainda mais depois da aparição de Zemmour.
Quanto à coerência dos candidatos nas questões de princípios, foi exatamente seu oponente Macron que faz algum tempo tentou tirar do opróbrio a que foi relegado pela história o marechal Pétain, chefe de Vichy e do colaboracionismo com a ocupação hitlerista.
“PRESIDENTE DOS RICOS”
No esforço para deter a ascensão de madame Le Pen, os até ontem oponentes de Macron vão ter que apertar o nariz. “O projeto Macron é um abuso social generalizado. E a destruição de serviços públicos fundamentais. Uma política que data dos loucos anos 20 do liberalismo”, havia denunciado Mélenchon.
Quanto ao que defende o atual inquilino do Palácio Élysée, nada melhor do que o próprio Macron, que se manifestou contra o aumento do salário mínimo, alegando que se este aumentar, “a inflação [que já aumentou] vai aumentar”.
Elevar o salário mínimo, advertiu o ex-banqueiro presidente, iria também “reduzir a competitividade de nossas empresas e destruir empregos”.
Macron também quer obrigar os beneficiários do programa social RSA a realizar “15 a 20 horas de trabalho por semana”. O que levou um deputado socialista, Boris Vallaud, a ironizar: “além da aposentadoria aos 65 anos, Macron quer inventar o trabalho a 7€ por hora”.
SANÇÕES
Outro tema que está subentendido na campanha de segundo turno é o das conseqüências, para as famílias trabalhadoras, das sanções contra a Rússia tão entusiasticamente abraçadas por Macron, que estão sendo o combustível que alimenta a fogueira da inflação.
Já madame Le Pen reiterou sua oposição às sanções contra a Rússia que teriam “as consequências de destruir a economia francesa”.
Nos debates de primeiro turno, Mélenchon, havia observado que “somos nós que vamos pagar” pelas sanções. “Não sou daquelas pessoas ingênuas que se divertem no quarto decidindo embargos aqui, embargos ali”. Ele propôs também que a UE – “somos 450 milhões [de habitantes], quem poderá resistir?- trabalhasse em conjunto para estabelecer um patamar de preço no atacado para o petróleo mais condizente com as necessidades europeias.
OTAN
Como – diante da estatura do refundador da República francesa pós-Hitler – todo líder francês gosta de ter seus 15 minutos de De Gaulle, Macron, quanto à Otan, até já decretou sua “morte cerebral”, além de tentar, junto com Berlim, abrir espaço para um “exército europeu”.
Le Pen, que se propôs a retirar a França da estrutura de comando da Otan, agora, diante da crise na Ucrânia, diz que isso deve ficar para depois, quando a questão se resolver, apesar de asseverar que “não é o DNA do nosso país não ser independente”.
“A França deve ser vista como um possível árbitro, com neutralidade”, acrescentou Le Pen, segundo a qual Macron foi recebido por Putin “como representante da Otan” e não como presidente da República Francesa.
Sobre a questão, Mélenchon afirmou que continua a favor da saída da França da Otan, dizendo contraditoriamente, poém, que “estava ‘do lado’ do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky contra Putin”.