Na recente agenda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Londres, o ex-secretário de Estado dos EUA, John Kerry, hoje enviado especial do governo norte-americano para o Clima, foi flagrado, esbaforido, por jornalistas nas ruas da capital inglesa.
“Estou focado no clima, e, obviamente, o presidente Lula tem um papel muito importante nisso. Estamos ansiosos para trabalhar com ele, com Marina Silva e com toda a equipe”, disse ele.
A ansiedade de Kerry para se encontrar com o presidente brasileiro não é gratuita.
No tabuleiro mundial, o Brasil continua sendo um dos alvos prediletos dos interesses geopolíticos dos EUA desde o processo de industrialização que experimentamos a partir da Revolução de 30, algo que se estendeu em outras fases de nossa história política, como na instituição do monopólio estatal do petróleo nos anos 50, na deposição do presidente João Goulart, nos longos 21 anos de ditadura e tem sido assim mesmo depois da redemocratização do País.
Razões não faltam para a cobiça estratégica desmedida dos EUA: imensas riquezas naturais, da fauna e da flora; minérios abundantes, dos mais rudimentares, como o minério de ferro, aos mais raros, como o grafeno; prodigalidade incomum em água doce e vasto litoral; fontes variadas de energia, a começar pelo potencial hídrico invejável, e muito petróleo, muito mesmo, especialmente depois da descoberta do pré-sal.
Se por um lado abordamos com orgulho nossas inigualáveis riquezas naturais e humanas, é óbvio, pela reconhecida criatividade e capacidade de trabalho do povo brasileiro, por outro, nos deparamos com a melancólica realidade da economia nacional, em especial do setor mais dinâmico, a indústria e, nela, a de
transformação, essencial à produção dos bens de capital inerentes ao processo industrial.
Os números denunciam essa clamorosa situação. “A indústria virou pó”, dizem os especialistas diante do acelerado processo de desmanche das empresas do segmento industrial.
Com o setor de ponta da economia sucateado, o País, há décadas, fez a opção por aprofundar sua inserção comercial com o mundo através de seus produtos primários, com destaque para o agronegócio e a mineração, segmentos de baixo uso de tecnologia de ponta, que podem continuar tendo um papel importante em nossa balança de pagamentos, mas insuficiente para nos transformar em uma nação plenamente desenvolvida e próspera.
O Brasil, crescentemente, está se tornando um país primário e menos tecnológico. A dura e cruel constatação é do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ao apontar o fenômeno do ‘encolhimento’ avassalador da participação das exportações nacionais no mercado mundial, de 12% para ínfimos 2%, no período de 20 anos.
Em consequência de um modelo exportador mais restrito, que se acentuou desde meados da década de 2000, o País mergulhou num ‘funil econômico’ classificado por economistas como ‘reprimarização’, o que significa uma ‘volta ao passado’ – e que passado, o da República Velha, no que se refere ao seu desenvolvimento econômico, que hoje pauta toda a estrutura produtiva nacional.
O fato é que a desindustrialização, uma das tragédias denunciadas pelo presidente Lula durante a campanha e, agora, no início de seu governo, se aprofundou a partir do início dos anos 80 e não foi interrompida, sequer, depois da redemocratização do país, com raríssimos lampejos ao longo desses mais de 40 anos.
Os motivos apontados pelos economistas são os mais variados: ausência de planejamento a longo prazo, redução drástica dos investimentos públicos (vamos tratar desse fator mais à frente) e perda do protagonismo da indústria como centro da política de desenvolvimento do País.
A decadência econômica pode ser medida quando, ainda em 1995, logo após a criação do Plano Real, lastreado pela predominância do pensamento fiscalista (é desse período a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), a indústria de transformação participava com 16,8% do PIB nacional, dez pontos percentuais superior à soma daquelas que apresentavam, na época, os setores agropecuário e de mineração (6,5%). (ver gráfico)
AGRO E MINERAÇÃO SUPERAM MANUFATURA
Parcela das atividades no PIB em %
Outro dado alarmante é que, em preços correntes, a indústria de transformação é reduzida de 36%, percentual que chegou a alcançar em 1985, para 11%, em 2021.
Pois bem, nessas últimas décadas, à medida que essa diferença entre os setores se reduz, acentua a desindustrialização e aumenta sua dependência das importações de produtos primários. A situação se agravou com o avanço das commodities devido à forte demanda mundial por esses produtos durante a pandemia, fato agravado pelo conflito da Ucrânia.
Em sentido oposto seguem os países centrais, mesmo que suas economias, como a dos EUA, estejam crescentemente dominadas pelo fenômeno da oligopolização e financeirização das cadeias produtivas.
Então, qual o interesse de Kerry em falar com Lula e Marina, se de alguma forma o País já está fazendo o dever de casa, ou seja, se integrando na economia mundial como supridor de produtos primários ou fracamente industrializados de baixo valor agregado?
O governo Lula anunciou que uma de suas prioridades é a reindustrialização da economia. Certamente, isso deve preocupar os interesses geopolíticos da Casa Branca, que não se choca abertamente contra esse legítimo postulado, nem poderia, por conta de nossa soberania política, mas adota novas formas e narrativas para, no máximo, manter o Brasil nos limites de uma industrialização reducionista.
Talvez o exemplo mais evidente disso é o uso da pauta ambiental para limitar e restringir a capacidade industrial no setor do petróleo, que continua estratégico – e o será por muito tempo.
De alguma forma, a Petrobrás, ao empoderar seus espaços institucionais que cuidam das chamadas fontes limpas de energia, menosprezando o minério fóssil, absorveu, nos últimos tempos, esses contrabandos que vieram de fora para dentro.
Além de um retrocesso cavalar, trata-se de uma imbecilidade sem tamanho abandonar crescentemente o refino, deixando essa tarefa para as corporações multinacionais do petróleo, e se dedicar às chamadas “fontes limpas de energia”, afinal, por esses contrabandos, são essas companhias que detém as técnicas mais avançadas e modernas, não a Petrobrás que descobriu, por si só, com sua tecnologia, o pré-sal.
Um amesquinhamento inaceitável do papel dessa empresa estratégica ao interesse nacional, à sua história e à luta do povo brasileiro que a conquistou como o maior símbolo material de nossa soberania!
Cabe à Petrobrás, nesse cenário que tentam nos impor, continuar exportando óleo bruto e importando a gasolina e outros produtos a preços dolarizados, renunciar crescentemente ao refino, como já vem acontecendo, vender seus ativos para fundos bilionários internacionais e se dedicar à tarefa de extrair energia dos ventos que sopram pelo país afora… Um escárnio!
A Petrobrás, antes de mais nada, pela sua vasta cadeia produtiva, é estratégica não apenas do ponto de vista energético, mas no processo de reindustrialização do País.
Abrir mão desse papel da Petrobrás é renunciar à própria tarefa da reindustrialização.
Não seria o caso de perguntar ao sr. Kerry os motivos pelos quais os governos que ele serviu ou apoiou nos EUA não adotam a mesma postura no seu próprio país ou não a adotaram quando se apoderaram, ao arrepio da lei internacional, do petróleo iraquiano, líbio ou afegão, quando macularam a soberania desses países sob o cínico, patético e criminoso pretexto do combate ao terrorismo?
No caso brasileiro, agora, a pauta ambiental passou a ser o pretexto e o instrumento para frear a retomada da nossa indústria, narrativa, aliás, replicada por setores do próprio campo progressista.
No entanto, os tentáculos do império continuam sem nenhuma cerimônia na hora de se apropriar de nossos recursos naturais para prover a sua indústria. Estão aí os exemplos da indústria de medicamentos, que já foi predominantemente nacional, e a indústria de produtos cosméticos, que detêm em todo mundo, através de seus monopólios, uma vasta reserva mercado, restando-nos a condição de exportadores ou meros supridores das matérias primas que temos em abundância.
Daí a importância estratégica, por exemplo, da pauta pela construção de um grande complexo industrial da saúde, um dos elementos que ajudaria o Brasil a se libertar da sua condição, hoje, predominantemente, primária. A dependência com os insumos para a fabricação da vacina durante a pandemia deve ter um sentido pedagógico para o País.
Recentemente, a ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, denunciou na Câmara dos Deputados que o Brasil, “embora seja o 13º país nos indicadores mundiais do setor, ao mesmo tempo é o 64º na tradução desse desenvolvimento em produtos e serviços que possam contribuir com o nosso crescimento econômico e social”, numa prova cabal de que não falta conhecimento científico ao País, muito menos cientistas, mas, sim, a ausência de políticas públicas que sejam capazes de incorporar as nossas conquistas tecnológicas à tarefa da industrialização.
Muitos projetos científicos e de inovação, paridos nos centros de pesquisa ou nas universidades brasileiras, acabam mofando nas gavetas por absoluto descaso com o projeto industrial do País, quando o desenvolvimento tecnológico, associado a consistentes investimentos públicos, são decisivos para a desejada reindustrialização.
O professor Edson H. Watanabe, em recente simpósio da Rede de pesquisa aplicada da FGV, acrescentou que não basta inovar, sendo necessário transformar a inovação em produto e, no caso, em produto industrial, com valor agregado, destinado, prioritariamente, às necessidades da indústria e do mercado interno, e, secundariamente, à mudança no perfil de nossa pauta de exportação.
O fato é que a trajetória da Indústria de Transformação no país é muito crítica como demonstra o gráfico sobre a Participação do Valor Adicionado (VA) da Transformação no VA total da economia. Os dados mostram uma participação que passou de 35% na década de 80 para pouco mais de 10% em 2021.
Outro dado importante apurado pelo IBGE é a trajetória da participação indústria de transformação na pauta de exportações e importações brasileiras. Como pode ser visto em outro gráfico, as exportações de produtos da indústria de transformação eram, de 1997 até 2005, responsáveis por aproximadamente 74% do total das exportações brasileiras. A partir de 2006, a participação das exportações começou a declinar até chegar a 54,2%, em 2011. Embora tenha tido discreto aumento para 58,2%, em 2016, chegou a 2021 no menor nível da série histórica com 47,5%.
Por outro lado, as importações de produtos da indústria de transformação apresentaram relativa estabilidade em torno de 68% do total das importações brasileiras de 1997 a 2017 e, a
partir de 2018, chegou ao maior nível da série histórica em 2021, com 77,6% de participação no total da pauta de importações.
Em resumo, os produtos da indústria de transformação perderam 27,5 pontos percentuais (p.p.) em participação nas exportações entre 1997 e 2021, enquanto as importações de produtos dessa indústria cresceram 7,0 p.p.
INVESTIMENTO PÚBLICO X JUROS ALTOS
Outro elemento importante para a reindustrialização é a retomada dos investimentos públicos em níveis compatíveis com as reais necessidades do País.
Nesses últimos tempos, em que tem prevalecido a visão fiscalista, pouco ou nada focada no interesse social ou da economia nacional, a trajetória dos investimentos públicos obedece, cronicamente, um viés de baixa.
No ano de 2021, o investimento do governo totalizou 2,05% do PIB, segundo menor índice da série histórica que ocorreu em 2017, quando atingiu 1,94% do PIB. A consolidação inclui o governo central, estados, municípios e as estatais federais.
Investimento Público (% do PIB)
Determinante para essa queda foi o desempenho dos investimentos das empresas estatais que atingiram o menor valor da série histórica, conforme mostra o gráfico a seguir que apresenta as informações a partir de 1995, o que apenas reforça a importância da recuperação de companhias públicas estratégicas, como a Petrobrás, ou, mesmo, a retomada do controle de outras que foram alienadas ao capital privado monopolista, como a Eletrobrás.
Mesmo a Petrobrás, que perdeu alguns ativos importantes na área do refino durante o governo Bolsonaro, embora responda pela maior parte do orçamento dos investimentos, executou apenas 38% do planejado.
Investimento das empresas estatais (% do PIB)
A corrosão do investimento público, nos dias de hoje, está diretamente relacionada, também, à política monetária ortodoxa operada pelo Banco Central, que deixou de ser dependente de um governo eleito por milhões de brasileiros, deslocando essa dependência, que já existia antes da famigerada autonomia, para os bancos e rentistas em geral.
A manutenção da taxa Selic nos atuais patamares (13,75%) coloca o Brasil no topo dos países que pagam a maior rentabilidade aos portadores de seus títulos e papéis, fator que estimula a especulação, sufoca o emprego e a renda das famílias, captura o orçamento público e, consequentemente, o investimento do Estado, reduzindo, cada vez mais, o espaço para as políticas públicas que dizem respeito à qualidade de vida da população e transferindo, criminosamente, os frutos do trabalho e da produção para os que vivem das rendas fáceis.
Nesse contexto, a proposta de arcabouço fiscal apresentada pelo Ministério da Fazenda, embora mais tênue que a perversa lei de teto de gastos e mais agressiva na arrecadação, pela essência também fiscalista, não parece, isoladamente, reunir as condições para contribuir com a indução da reindustrialização do país.
Se a sua adoção se destinava a criar um ambiente propício a, pelo menos, ter início a queda dos juros, a última reunião do COPOM mostrou tratar-se de uma ilusão diante da resiliência doentia do sr. Campos Neto, decidido a fazer com que o Banco Central, na prática, opere política fiscal, uma atribuição de governo, em absoluto descabo com outras responsabilidades do banco como a defesa do emprego.
Aliás, a ata da última reunião que decidiu por manter os juros na estratosfera denunciou de forma clara o que então era tácito: o objetivo da ‘política monetária’ do atual BC é o aprofundamento da recessão e da corrosão, já acentuada, do poder de compra dos salários. Estão aí os dados alarmantes da inadimplência dos brasileiros como prova cabal dessa realidade.
Pergunta que não quer calar: como operar o crescimento da economia a reindustrialização com os juros nas alturas e a política de governo ainda predominantemente fiscalista? Impossível!
Outra ilusão que devemos abolir é a de que o capital externo será a âncora central da recuperação econômica e da reindustrialização no atual cenário de crise do sistema capitalista mundial.
A China pode, como é, ser um parceiro estratégico nessa tarefa, mas não será essa âncora, que deve ser recuperada com as nossas próprias forças produtivas, como nos ensinou Barbosa Lima Sobrinho – o capital se faz em casa! – e os 50 anos de nossa história, a partir da Revolução de 30, quando o Brasil exibiu o mais notável desempenho econômico, com ênfase no industrial.
Esses são os desafios e o fato positivo é que o presidente Lula tem revelado disposição de fazer o País crescer e se reindustrializar, liderando, ele próprio, a cruzada patriótica que envolve amplos setores da sociedade contra os juros extorsivos praticados por uma instituição que se transformou em poder paralelo, sabotando abertamente os planos desenvolvimentistas do governo e o interesse nacional.
MARCO CAMPANELLA