
Publicamos, a seguir, artigo de Cássio Casagrande, Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). O texto foi publicado originalmente no portal JOTA.
Suprema injustiça: STF cassa direitos de entregador de pizza e de pedreiro
Lenon Moreira da Silveira é um jovem carioca que foi contratado supostamente como “autônomo” para entregar pizzas para a Pizzaria A Lenha Artesan, situada em endereço nobre na Gávea. Atenção: não estamos falando de um entregador do iFood. Lenon trabalhava exclusivamente para o restaurante citado, comparecendo diariamente, de terça-feira a domingo, em horário de trabalho fixo, laborando sob orientação e ordens do estabelecimento comercial.
Nenhum contrato formal foi assinado, ele apenas era considerado como um autônomo, recebendo diárias de cerca de R$ 55 e mais uma comissão de R$ 3 por entrega. No fim do mês, totalizava cerca de R$ 2.000. A pizzaria possuía outros entregadores contratados com carteira de trabalho assinada, que faziam exatamente o mesmo trabalho de Lenon. Depois de um ano de trabalho contínuo, Lenon foi dispensado.
O trabalhador ajuizou ação trabalhista com pedido de reconhecimento de vínculo de emprego, julgado procedente pela 7ª Vara do Trabalho, decisão que foi confirmada, à unanimidade, pela 7ª Turma do TRT da 1ª Região. Como se vê, tratava-se de caso típico de aplicação do artigo 3º da CLT, pois inequívocos e incontroversos os requisitos da relação de emprego: trabalho subordinado, não eventual, mediante remuneração.
A Justiça do Trabalho, ante a pretensa alegação de que se trataria de trabalho autônomo, corretamente aplicou o artigo 9º da CLT, que determina que são nulos os atos de dissimulação tendentes a mascarar uma relação de emprego.
Observe-se que nem sequer havia alegação, por parte da empresa, de terceirização ou pejotização, já que a contratação se deu sem qualquer formalidade, diretamente pela pessoa física do trabalhador, como se autônomo fosse.
Apesar disso, a empresa apresentou reclamação constitucional perante o STF, alegando violação aos precedentes consolidados no Tema de Repercussão Geral 725. Evidentemente que não era a hipótese, pois, repita-se, não estava em questão terceirização e nem ao menos pejotização (hipótese esta que em si já é um alargamento indevido dos precedentes originários pelo STF).
Pois bem, por absurdo que possa parecer, o ministro André Mendonça, em decisão monocrática, julgou a reclamação procedente! O mais curioso é que em seu voto, transcreveu trechos do acórdão relativos à prova colhida nos autos nos quais ficava evidente, incontroverso e inquestionável que o trabalhador era de fato um empregado da pizzaria.
Para justificar o injustificável, o ministro saiu-se com essa: “(…) entendo que os elementos fáticos analisados pela Justiça do Trabalho sucumbem ao contexto de vínculo de natureza civil de prestação de serviços de entrega, formalizado entre a reclamante (pizzaria) e o beneficiário (motoboy). Referido mecanismo de contratação perfaz necessariamente questão subjacente ao reconhecimento do vínculo de emprego”.
O voto do ministro Mendonça parece uma peça de ficção kafkiana, mas juro que se trata de reprodução fiel que o leitor pode conferir aqui (mas evite fazê-lo se possui estômago fraco, porque a decisão poderá lhe provocar engulhos). Veja-se o absurdo, o ministro sustenta que o contrato (sequer formalizado ao contrário do que ele alega) prevalece sobre os elementos fáticos da realidade.
Ou seja, Sua Excelência sustenta tese contra a lei, a doutrina, a jurisprudência e a Recomendação 198 da OIT, negando que nas relações de trabalho a realidade deve prevalecer sobre a forma (princípio de Direito do Trabalho que vale em todos os países civilizados, inclusive os EUA).
Os próprios precedentes que deram origem ao verbete 725 ressalvavam de forma expressa que a validade de terceirização de atividade fim per se (que sequer ocorre no caso) não obstava que os casos de fraude continuassem a ser examinados pela Justiça do Trabalho.
Nesta linha de raciocínio e parafreaseando Ferdinand Lassalle, se o ministro André Mendonça comprar uma caixa de laranjas e em sua casa for entregue uma caixa de pregos, ele não poderia jamais reclamar, porque vale o que está escrito na embalagem. É impressionante como esse argumento é tosco e psicodélico.
Será que não há ninguém na assessoria do ministro para adverti-lo de que está passando vergonha em público? Se alguns anos atrás o ministro desse uma resposta em um caso como esse em prova de concurso público, seria reprovado e o examinador ainda teria um ataque nervoso.
O mais ridículo de tudo é que os próprios ministros do STF haviam estabelecido nos primeiros casos sobre pejotização de que a validade dos contratos civis de trabalho pejotizado deveria prevalecer somente nos casos de trabalhadores hipersuficientes, com grau superior e de remuneração “expressiva”, como médicos, jornalistas de renome, engenheiros etc.
No entanto, com frequência cada vez maior e assustadora, o STF tem cassado decisões da Justiça do Trabalho que haviam reconhecido vínculo de trabalhadores das classes mais subalternas, sem instrução e que recebem de um a três salários mínimo, até um pedreiro teve seus direitos suprimidos na semana passada (Reclamação 78.953), por decisão do ministro Dias Toffoli!
Nossa Corte Constitucional está negando aos trabalhadores mais humildes do país os seus direitos constitucionais com o argumento de que eles assinaram um contrato civil, como se essas normas não fossem de ordem pública, imperativas e insuscetíveis de acordo privado.
As decisões do STF sobre pejotização são, sem dúvida, a página mais vergonhosa do tribunal desde 1988. O que o seu presidente, o “iluminista” Luís Roberto Barroso, tem a dizer sobre isso? Alguém sabe onde ele se encontra? Roma, Madri, Nova York?
Cássio Casagrande
Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022).