
Venda foi realizada por R$ 17,1 milhões, cerca da metade do valor de mercado, segundo a Associação dos Pesquisadores Científicos
O governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) entregou 350 hectares de uma fazenda pública em Pindamonhangaba, pertencente à principal rede de pesquisa agropecuária do Estado, para empresários do agronegócio ligados a seu partido. A venda foi realizada por R$ 17,1 milhões, cerca da metade do valor de mercado estimado entre R$ 35 e R$ 45,5 milhões, segundo dados da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC).
A área integra a Unidade Regional de Pesquisa e Desenvolvimento, vinculada à Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), que desde 1938 realiza estudos sobre pecuária, aquacultura, rizicultura e agroecologia. Além da produção científica, o local mantém convênios com cooperativas que atendem centenas de pequenos produtores rurais.
Quem comprou a terra foi a SFA Agro Empreendimentos, empresa formada em 2022 por Paulo Skaf – ex-presidente da Fiesp e hoje filiado ao Republicanos, mesmo partido do governador. Também são sócios o filho de Skaf, Gabriel, e dois empresários da região. O negócio foi feito por meio do Fundo de Investimentos Imobiliários do Estado de São Paulo (FIISP), sem transparência e sem audiência pública, como determina a Constituição Estadual.
A justificativa do governo é a de que se trata de um imóvel “subutilizado”, mas o histórico de pesquisa e a importância estratégica da unidade desmentem o argumento. O local é referência em reprodução bovina, genética de arroz e preservação ambiental – situado, inclusive, em zona de proteção.
O modelo de venda foi viabilizado por meio de um fundo imobiliário estadual, administrado pela corretora privada Singulare. A utilização desse instrumento tem dificultado o acesso a informações sobre os valores envolvidos e as propostas recebidas. Órgãos públicos como a Câmara Municipal de Pindamonhangaba e a Assembleia Legislativa de São Paulo encaminharam pedidos de esclarecimento, mas não obtiveram respostas até o momento.
A falta de publicidade e os laudos ocultos levantaram suspeitas sobre favorecimento. A própria cooperativa Comevap, que atua com os pesquisadores e quis comprar o terreno para expandir seus trabalhos, apresentou proposta – mas os valores não foram divulgados. A SFA Agro foi declarada vencedora, segundo o governo, “por ter feito o maior lance à vista”. Porém, até hoje, não se sabe quais foram os outros lances.
Além da subavaliação do terreno, que ficou abaixo do valor corrigido pelo IGP-M (R$ 18,5 milhões), entidades alertam que a alienação fere frontalmente o artigo 272 da Constituição Estadual, que exige audiência com a comunidade científica antes da venda de áreas de pesquisa. A única audiência feita ocorreu em 2017, sem quórum e marcada às pressas –sem legitimide.
O Ministério Público foi favorável à tese da APqC. Mesmo assim, o Tribunal de Justiça de São Paulo aprovou a venda, alegando que o Estado “não poderia obrigar os cientistas a comparecerem à audiência”. A decisão revoltou pesquisadores, que denunciam a destruição sistemática de décadas de trabalho público em nome de interesses privados.
A visita de Skaf e sócios à área, montados a cavalo antes mesmo do anúncio oficial da venda, reforçou a suspeita de conluio entre Tarcísio e empresários. Funcionários da fazenda relataram que pensaram se tratar de invasores, pois o grupo entrou pelos fundos com caminhões e cavalos.
A pressão da comunidade científica forçou o Governo a recuar temporariamente em algumas áreas, como a Fazenda Santa Elisa e Jundiaí. Situada em Campinas, interior do Estado, a fazenda representa o berço da pesquisa do café no Brasil, e abriga o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), com campos experimentais considerados referências internacionais. Unidades em São Roque, Cananéia, Jundiaí, Piracicaba e outros 23 municípios.
No entanto, a negociata com Skaff significa apenas a primeiro de uma ofensiva de Tarcísio para liquidar áreas públicas de pesquisa. Ele já encomendou estudos para a venda de 80 imóveis rurais do Estado, incluindo a histórica Santa Elisa. A meta é vender até o fim de 2025 pelo menos 27 propriedades, totalizando 1.300 hectares de solo público.
Um projeto de lei deve ser enviado à Assembleia Legislativa sob a alegação destinar 20% da receita com a venda das áreas para as pesquisas agrícolas e à valorização de carreiras do setor. “Essa foi também a promessa em 2016 com a alienação de outras áreas, porém, nunca se concretizou”, observa Helena Goldman, da APqC.
A Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) está conduzindo estudos para desmembrar e vender as terras públicas, começando por São Roque, onde 82% da unidade é composta por Mata Atlântica secundária. A APqC alerta que esses levantamentos sinalizam os primeiros passos para a alienação das terras.
A vice-presidente da entidade, Dora Colariccio, chamou a atenção para o risco ambiental que isso representa: “Todas têm remanescentes de cerrado, de mata nativa. Diante do pouco que resta no estado desses biomas, seria importante preservá-las em vista das mudanças climáticas”.
Para agravar o quadro, o governo estadual também aprofundou a legalização da grilagem no Pontal do Paranapanema, vendendo terras devolutas com até 90% de desconto a usurpadores de terras públicas. A manobra, viabilizada em 2022 e agora reforçada por Tarcísio, representa a entrega do patrimônio fundiário paulista ao capital privado.
No início de abril, o Governo paulista convocou uma audiência com pesquisadores para tratar da venda de áreas experimentais, mas a reunião foi suspensa por decisão da Justiça, que exigiu do Estado a apresentação de um estudo técnico que justificasse a comercialização dessas terras públicas.