Certas coisas parecem muito absurdas porque são muito absurdas.
Que movimento existia (ou existe) dentro do país para tirar do Código de Trânsito a obrigatoriedade da “cadeirinha” para conduzir crianças, nos automóveis?
Aliás, apesar de algumas reclamações de motoristas de táxi, que movimento existia no país para aumentar o número de “pontos” – ou seja, o número de infrações – com que a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) é suspensa?
Que movimento existe para aumentar o prazo de validade da carteira de cinco para 10 anos (dois anos e meio para cinco anos, no caso dos idosos)?
Nenhum.
Ou, também podemos perguntar, qual o bem para os caminhoneiros – e para a sociedade – que traria o fim dos exames toxicológicos (o que é, na prática, a liberação do “rebite”, da anfetamina ou da anfepramona, e seu uso por motoristas acossados pelos prazos de entrega)?
Exceto para os traficantes de anfetamina, nenhum.
Portanto, por que Bolsonaro resolveu apresentar um projeto alterando o Código de Trânsito Brasileiro (CTB)?
Um projeto que ele considera tão importante, que foi pessoalmente ao Congresso entregá-lo ao presidente da Câmara.
Um projeto que não contou com qualquer estudo ou fundamento técnico que o justificasse.
Como pode ser isso?
O negócio é tão absurdo que somente restou, a nós, uma hipótese: Bolsonaro estava, outra vez, usando a Presidência da República para expelir os seus rancores pessoais e familiares.
Não seria a primeira vez.
Um dos primeiros atos de Bolsonaro, mal assentado na Presidência, foi a demissão do chefe do Centro de Operações Aéreas do IBAMA, Joaquim Olímpio Augusto Morelli.
Motivo da demissão: em 2012, Morelli multou o então deputado federal Jair Bolsonaro, que estava pescando, ilegalmente, em uma área ambiental protegida (v. Funcionário concursado do Ibama que multou Bolsonaro em 2012 é exonerado, HP 30/03/2019).
Então, somente nos restou essa hipótese: a de que Bolsonaro estivesse outra vez usando a Presidência em causa própria – ou, mais exatamente, para expelir os seus rancores, usando para isso a máquina pública e o cargo que ocupa.
Era ainda uma suposição. Não tínhamos lido uma interessante reportagem, publicada no final de abril, portanto, um mês antes que Bolsonaro entregasse o seu projeto de alterações do Código de Trânsito ao presidente da Câmara.
Eis alguns trechos:
“O presidente Jair Bolsonaro, três de seus filhos e sua mulher, Michelle, receberam ao menos 44 multas de trânsito nos últimos cinco anos, segundo registros do Detran-RJ (Departamento de Trânsito do Rio de Janeiro).
“Os prontuários da primeira-dama e do senador Flávio têm infrações que extrapolam o limite de 20 pontos permitido por lei para o período de um ano, o que, em tese, pode resultar na suspensão do direito de dirigir. Os dois são os que mais colecionam pontos na carteira ao longo dos cinco anos, com 41 e 39 pontos, respectivamente.
(…)
“O presidente acumulou seis infrações nos últimos cinco anos, segundo o Detran-RJ. Todas já foram pagas e resultaram em 18 pontos na carteira.
“Duas infrações, em 2016 e 2018, foram do tipo ‘gravíssima’, que contam 7 pontos. Na primeira, o Detran registrou que Bolsonaro dirigiu em faixa exclusiva para ônibus, em Niterói. A segunda foi por avançar sinal vermelho na Barra da Tijuca, zona oeste, em 7 de janeiro de 2018. O restante das multas do prontuário de Bolsonaro são pelo mesmo motivo: excesso de velocidade.
“No total, as multas enviadas pelo Detran Rio para a família somam R$ 5,8 mil.
“Até agora, considerando que há infrações ainda em fase de notificação prévia ou em prazo de recurso, o clã Bolsonaro soma 129 pontos e já pagou R$ 4,7 mil aos cofres públicos pelo mau comportamento. As violações ao Código de Trânsito Brasileiro ocorreram no Rio, São Paulo e Brasília.
“A maior parte das multas da família do presidente é por excesso de velocidade — 24 das 44. O recordista é Flávio [Bolsonaro], autuado 13 vezes por estar acima do limite permitido.
“Segundo os dados do Detran, Michelle e o senador têm em seus nomes infrações que extrapolam os 20 pontos em um período de 12 meses. As notificações enviadas a Flávio somaram 39 pontos de março de 2018 a março de 2019. Todas por excesso de velocidade.
“O senador levou ao menos seis multas por acelerar além do limite e por avançar o sinal na avenida das Américas, no Rio, região de sua casa. Em 2016, em cinco dias, duas foram aplicadas por excesso de velocidade na mesma via.
“Já Michelle superou o limite de 20 pontos de janeiro de 2017 a janeiro de 2018. Nesse período, ela tomou cinco multas, três consideradas ‘gravíssimas’, uma por dirigir enquanto falava ao telefone, outra por avançar o farol vermelho e a última por estar com o carro sem licenciamento.
“As outras duas foram por parar em cima da faixa de pedestres na mudança de sinal. Em outros períodos, também cometeu deslizes como estacionar sobre a calçada” (cf. Camila Mattoso e Fábio Fabrini, Em guerra contra radares, Bolsonaros somam mais de 40 multas de trânsito, FSP, 28/04/2019).
QUANTO CUSTA
Em suma, Bolsonaro quer adaptar as leis do país às conveniências suas e de sua família – ou, no máximo, daquele entorno que é o seu círculo íntimo.
Obviamente, “adaptar” as leis quer dizer tornar “legal” aquilo que é ilegal, inclusive as ilegalidades já cometidas, e, claro, também as futuras.
Não é por acaso que até seus apoiadores se mostram escandalizados.
“Quanto custa uma cadeirinha? Eu não sei o valor de uma cadeirinha, mas sei o valor de um terreno no cemitério. Eu sei quanto custa um caixão, eu paguei o caixão do meu filho. Eu sei quanto custa choro, flores”, disse, na Câmara, a deputada Christiane Yared (PL-PR), que teve um filho morto em um desastre de trânsito.
A deputada é pastora evangélica e apoia, na Câmara, o governo Bolsonaro.
Mas, em relação a essa tentativa de fazer com que a lei do trânsito seja moldada pelos afãs da família Bolsonaro, ela é contra:
“… os valores desses dispositivos de segurança para crianças são valores mínimos, que a gente poderia até conseguir algumas reduções com isenções de impostos, projetos que já foram apresentados. Sem contar que há ONGs no Brasil inteiro que providenciam esses equipamentos para famílias que não têm possibilidade de comprar.
“Também vemos com preocupação a questão dos dez anos para renovar uma habilitação. Às vezes, em questão de dois anos as pessoas podem ter um glaucoma, um prejuízo de visão sério e continuar dirigindo. No meu caso, o jovem que matou o meu filho teve a habilitação concedida aos 18. Quando ele fez a renovação estava com 23 anos, e quando fez 26 era um drogado. Ele tinha um problema sério com alcoolismo, tinha bebido quatro garrafas de vinho. Ele já tinha um histórico de pontos assustador na carteira e continuava dirigindo. Matou duas pessoas” (v. Mariana Haubert, ‘Valor da cadeirinha é irrisório comparado ao de um caixão’, diz aliada de Bolsonaro, OESP 07/06/2019).
Segundo Bolsonaro, não é preciso que a obrigatoriedade da “cadeirinha” para conduzir crianças esteja na lei: “Está mexendo com o seu filho. Precisa estar na lei algo para o seu filho ser protegido? Nem precisava de lei. Quem tem responsabilidade sabe disso, vai lá e bota a cadeirinha atrás e leva o bebê ali atrás”.
Também não deve ser necessário, portanto, que a lei proíba os motoristas de trafegarem embriagados ao volante.
Aliás, pelo que disse Bolsonaro, o que não é necessário é a lei.
CARLOS LOPES