Após mais de 8 anos, começa o julgamento dos responsáveis pelo incêndio que causou uma das maiores tragédias do país
O primeiro dia de julgamento do incêndio da boate Kiss aconteceu na quarta-feira (1º) no Foro Central de Porto Alegre.
Os empresários e sócios da casa noturna, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor musical Luciano Bonilha Leão são acusados pelo Ministério Público (MP) pelos crimes de homicídio simples com dolo eventual de 242 pessoas e tentativa de homicídio de outras 636 que sofreram ferimentos na tragédia.
Na parte da manhã foram sorteados os sete jurados que compõem o conselho de sentença. São seis homens e uma mulher. No total, 150 pessoas foram convocadas a comparecer no Foro Central. Parte delas, 85, solicitou dispensa ao juiz Orlando Faccini Neto, que foram acatadas. Com isso, 65 participaram do sorteio.
Vinte e dois nomes passaram pela avaliação das quatro defesas e do Ministério Público. Isso ocorre porque defesa e acusação têm o direito de fazer as chamadas “recusas”, que podem ser motivadas ou imotivadas. Cada parte pode recusar três pessoas sem apresentar motivo para isso.
A previsão inicial de oitivas com três sobreviventes não se cumpriu e duas pessoas foram ouvidas.
DEPOIMENTOS
A primeira a se manifestar foi a ex-funcionária da Kiss, que trabalhava no bar e na cozinha do local, Kátia Giane Pacheco Siqueira. A fala da sobrevivente durou, aproximadamente, 4h40, com perguntas do juiz, dos promotores e das defesas.
“Estava cheio porque eu não parei um minuto. Normalmente, quando a festa não dava movimento, o gerente pegava e dispensava tantos funcionários. Era festa de turma de faculdade [no dia do incêndio], normalmente enchia de gente”, relata.
A promotora Lúcia Helena de Lima Callegari considerou o depoimento longo, mas ressaltou a importância da fala de Kátia.
“Perguntas, na minha opinião, desnecessárias. Nós estávamos com uma mulher grávida, a gente via que ela estava cansada, não aguentava mais, perguntas repetitivas. Mas entendo que o depoimento dela foi superimportante”, avalia.
De acordo com Kátia, quando o tumulto começou muitas pessoas gritavam que estava pegando fogo e outras que era uma briga.
“Estava escuro, escutava gente gritando que era fogo e gente gritando que era briga. Quando senti que era fogo mesmo tentei respirar fundo. Os guris que trabalhavam no bar já tinham pulado o balcão e tinham saído. Estava eu e outra menina, que morreu também, ela tinha 17 ou 18 anos na época. Na hora que a gente viu o que estava acontecendo, ela perguntou o que a gente faz. Eu tentei sair”, relata.
Conforme Kátia, ela foi colocada em uma maca e desmaiou. “Me colocaram numa maca, eu apaguei ali e acordei aqui em Porto Alegre, no hospital”. Questionada pelo juiz Orlando Faccini Neto sobre quanto tempo depois ela acordou, a resposta foi: “Vinte e um dias depois”.
“Apesar de ser uma pessoa com um sofrimento muito grande e de estar grávida, esteve muito disponível e solícita. Respondeu a muitas perguntas”, considerou o advogado Jader Marques, que representa o ex-sócio da Kiss, Elissandro Spohr.
Kátia teve 40% do corpo queimado e fez cinco cirurgias de enxerto de pele. Disse que sessões de fisioterapia propiciaram não ficar com sequelas em relação ao movimento.
O Ministério Público e os advogados dos réus fizeram questionamentos para a ex-funcionária, principalmente sobre a rotina de trabalho na Kiss, as atribuições funcionais dos réus e de outros trabalhadores da boate, a estrutura do local e o incêndio em si.
Advogados de Elissandro Spohr, ex-sócio da boate, alegaram que foi o réu quem resgatou a sobrevivente do interior do estabelecimento.
O depoimento que fechou a noite foi da terapeuta ocupacional Kelen Giovana Leite Ferreira. Ela teve 18% do corpo queimado no incêndio, ficou 78 dias internada e precisou amputar parte da perna direita.
“Cirurgias várias, inúmeras. Fiz enxerto de pele, tirei pele das próprias pernas”, relata
Kellen estava na festa com sete pessoas: duas amigas e cinco rapazes. Três faleceram: duas amigas de 18 anos e um dos homens, de 19 anos. Ela conta que, quatro dias depois, os médicos que passavam os boletins para o pai e a irmã perguntaram se tinham alguma religião.
“Ele disse que éramos católicos, e ele disse ‘só Deus, porque a medicina já fez de tudo'”, relata Kellen.
No momento mais emocionante, em que relembrou da madrugada, ela chorou e o juiz Orlando Faccini Neto interrompeu para que ela se recompusesse. Kellen criticou um vídeo divulgado pelo advogado do sócio da casa noturna, Kiko Spohr.
“Dor não é gravar um vídeo e chorar. Dor é passar esses oito, quase nove anos, o que eu passei lá dentro, o que eu passo na minha pele, o que eu passo andando na prótese, machuca. Isso é dor”, emocionou-se.
O depoimento dela foi encerrado às 22h10, depois que os advogados dos quatro réus se abstiveram de fazer mais perguntas a ela.
Nesta quinta (2), o júri ouve os sobreviventes Emanuel Almeida Pastl e Jéssica Montardo Rosado, pela manhã, e Lucas Cauduro Peranzoni, Érico Paulus Garcia e Gustavo Cauduro Cadore durante a tarde. Uma testemunha de acusação, Miguel Angelo Teixeira Pedroso, também será ouvida no turno da tarde.